Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Já falei dos meus passeios entre Vila Nogueira e Aldeia de Irmãos, já vos lembrei um poeta árabe do século 11 que viveu em terra de saloios, e devo recordar a série de 32 postais sobre diversas formas de encarar o património cultural. Recebo, porém, no meio do correio, três cartas intrigantes. Os meus leitores A. Silva (será António, Arnaldo, Asdrúbal?), J. Eustáquio (será José, João) e a Mariana B. Lopes perguntam-me quem sou. Julgo que é o que menos importa, mas não me escondo. Dir-vos-ei sumariamente a minha identidade… O meu nome, já o sabem, é Agostinho de Morais. Meus pais foram económicos. Sou afilhado de Frei Agostinho da Cruz graças a uma licença especial e de uma tia Maria Olímpia, de antigos pergaminhos. Sou um vetusto interessado por muitas coisas. Fiz jornalismo económico no velho “Jornal do Comércio”, como comentador da conjuntura, com base nas publicações mensais da Estatística. Todos os meses, tinha à minha porta um paquete do jornal, para que eu pudesse debruçar-me sobre fastidiosos quadros que tinha de comparar com os meses anteriores e os anos transatos, cabendo-me escolher ainda um número em cada publicação, para que se compreendesse um pouco o que mudava e o que ficava na realidade económica. Previ muitos disparates, mas enganei-me às vezes (quem não se engana? Talvez os tontos?). As várias bolhas que foram surgindo eram detetáveis (do imobiliário à informática) – e não esqueço aquelas duas caricaturas de um grande jornal de Wall Street – em 1929, viam-se vários capitalistas, gordos e de charuto a atirarem-se das janelas dos arranha-céus de Nova Iorque; enquanto em 2008, os tais capitalistas de charuto estavam à janela, impávidos, a ver os pobres corretores e empregados a saltarem para a morte, agarrados aos seus parcos haveres, como os do Lehman Brothers, depois de terem sonhado enriquecer rapidamente… O certo é que há muito esqueci esse tempo em que usava mangas de alpaca, literalmente. E não foi há tanto tempo assim. Agora dedico-me ao meu jardim, às minhas rosas, que têm segredos inconfessáveis, que tenho estudado aturadamente. Há mesmo uma rosa-chá que leva o nome Morais e está devidamente registada. O cultivar o jardim é o ponto em que concordo com o “Cândide”, já que detesto a imagem do Dr. Pangloss, que as más línguas dizem ser o Leibniz… Não pode ser. Todos os dias leio um pouco de Leibniz, e em cada dia mais me convenço de que foi um dos maiores génios da humanidade de sempre… Adoro matemática, e tantas vezes dedico-me a fazer a análise matemática dos poemas de Camões – de facto, todos os grandes poetas e músicos têm a matemática dentro de si… A biblioteca é o meu refúgio favorito. Que mais vos posso dizer? Jogo xadrez com os amigos, mediocremente, porque sou distraído quando quero. Sou arqueólogo nas horas vagas – procurando afanosamente a chave da nossa misteriosa escrita do Sudoeste. Por isso tenho estudado a escrita fenícia. E tenho esperança de que avancemos proximamente para a descoberta da chave. Não sou solitário nem misantropo. Tenho uma família razoável e gosto da animação. Eis quem sou, não há muito mais a dizer. O relógio marca os meus passos. Sou um maníaco dos horários e fico desesperado quando há atrasos injustificados! O relógio que trago comigo é um Longines histórico de várias gerações que se mantém fiel à certeza e ao rigor. Parece mesmo ter havido um antepassado meu que teve como função manter os relógios certos no Paço Real… Sinto na minha ancestralidade algo que anima meus passos.
E, como habitualmente, cito um poema.
Desta feita da autoria de Pedro Tamen.
“A Luz vem das Pedras” de 1975:
«A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra, tu a colhes, mulher, a distribuis tão generosa e à janela do mundo. O sal do mar percorre a tua língua; não são de mais em ti as coisas mais. Melhor que tudo, o voo dos insetos, o ritmo noturno do girar dos bichos, a chave do momento em que começa o canto da ave ou da cigarra — a mão que tal comanda no mesmo gesto fere a corda do que em ti faz acordar os olhos densos de cada dia um só. Quem está salvando nesta respiração boca a boca real com o universo?» (Agora, Estar).
Não sou do tempo da Porcalhota, mas a minha idade permite-me ter ouvido e lido muitas histórias sobre os passeios lisboetas às hortas, para ir comer o famoso coelho à caçadora… E bebi muita água de Caneças. Para lá das portas de Benfica era outro mundo. As portas separavam as duas zonas de Benfica (dentro e extramuros). Foram posto da guarda fiscal, herdeira dos guarda-barreiras, até 1892. Por lá passavam os aguadeiros, os pastores, os comerciantes, os ferro-velhos, as lavadeiras com os seus róis (é assim mesmo o plural de rol) de roupa, lençóis, fronhas, guardanapos, toalhas… E havia os figos de capa-rota, as maçãs de roer, a fruta da época e os pregões. A-ú, para a água, Azeitonas a 30 réis, petroline, fava rica, quem quer figos quem quer almoçar, quem tem trapos e garrafas para vender, esticadores para os colarinhos… Caneças, Venda Seca, Assafora, Belas – tudo nomes bem conhecidos, com águas puríssimas e lugares de grandes convívios e comezainas. E havia ainda os célebres burros, com cangalhas, albardas e gorpelhas… A Porcalhota tornou-se Amadora em 1907 por solicitação dos fregueses da terra, em nome da dignidade do lugar e para pôr fim a um velho rol de chistes. E em 1919 aí se instalou a Esquadrilha de Aviação República. Vasco Porcalho, herói de Aljubarrota, está na origem da designação primitiva… Oiçamos, no entanto, Raul Proença no seu “Guia de Portugal” falar-nos dos saloios: “Quando D. Afonso Henriques tomou posse de Lisboa consentiu-se ao mouro que refluísse para os subúrbios da cidade, e ele aí se estabeleceu, entregue ao cultivo das hortas, com a água a escorrer da nora gemedora. É desta população consentida, mourisca e subalterna, que deriva o mais da gente que habita os contornos de Lisboa – o saloio de tez morena, pele tisnada, olhos e cabelos negros ou castanhos, membros secos, tipo sem finuras de raça e beleza plástica de linhas, tão afastado em verdade da gente bela e robusta do Norte, como um berbere dum dos melhores rebentos de gente circassiana. Psicologicamente, caracteriza-o o espírito de rotina, a curteza de vistas, a avareza levada à sordidez, e essa sistemática atitude de desconfiança, que, sob o nome esperteza saloia, tomou foros de proverbial e foi filão aproveitado por muita veia cómica nos teatros de Lisboa”. O falar castiço vai-se perdendo, mas ainda é lembrado… Os berberes são os bárbaros do sul, a etimologia é a mesma. Çaloio ou Çalaio era o tributo que os mouros pagavam para comerciar em Lisboa. Daí talvez a designação desses habitantes dos arrabaldes de Lisboa… Proença exagera. Os moçárabes têm características várias e o certo é que todo o povoamento do sul e o municipalismo contaram muito com eles. Há dias, olhando um boneco de Leal da Câmara recordei-me disto tudo, mas quando passo pela floresta de cimento dos arredores de Lisboa sinto que tudo mudou. E quando lemos Ramalho a falar dos passeios às hortas ou das conversas dos saloios, sentimos que tudo é diferente. Os casais saloios foram demolidos, os burros foram-se, os pastores e os seus rebanhos ou os perus do Natal desapareceram… Mas se tivermos olhos de ver, descobriremos pequenos apontamentos – e se bem insistirmos na descoberta reencontramos uma boa e inesperada receita de coelho à caçadora, em que os saloios eram exímios ou uma pequena romaria que os jovens teimam em não deixar morrer… Os moinhos são raros, as noras desvaneceram-se, mas não podemos esquecer um genuíno poeta árabe estudado nas escolas marroquinas e que é muito nosso…
Ibn Mucana (século XI), o poeta árabe de Alcabideche, dá-nos o tom e a lembrança – onde os moinhos, as noras e os engenhos agrícolas têm uma presença essencial. Ah, mas onde estão eles?
«Ó tu que vives em Alcabideche, oxalá nunca te faltem
nem grãos para semear, nem cebolas nem abóboras Se és homem decidido precisas de um moinho que trabalhe com as nuvens sem dependeres dos regatos. Quando o ano é bom a terra de Alcabideche não vai além das vinte cargas de cereais. Se rende mais, então sucedem-se, ininterruptamente e em grupos compactos, os javalis dos descampados. Alcabideche pouco tem do que é bom e útil. como eu próprio quase surdo como sabes. Deixei os reis cobertos com os seus mantos e renunciei a acompanhá-los nos cortejos… Eis-me em Alcabideche colhendo silvas com uma podoa ágil e cortante. Se te disserem: gostas deste trabalho?, responde; sim. O amor da liberdade é o timbre de um carácter nobre. Tão bem me governam o amor e os benefícios de Abu Bacre Almofadar que parti para um campo primaveril."
Calcorreando pachorrentamente por Vila Fresca, gozo este fim de Verão, em que os dias se alternam entre o calor e a brisa enevoada. Um velho amigo encontrou-me e, inesperadamente, perguntou-me pelo meu velho “carocha”. Surpreendeu-me a questão. Parece-me que inventaria antiguidades… Disse-lhe que estava de boa saúde, bem guardado e em funcionamento. É das coisas em que tenho mais orgulho, uma vez que é um original raro, com o óculo traseiro ainda dividido e com matrícula das séries antigas, que já poucos identificam, anterior a 1955, portanto identificável pelo número central. É um verdadeiro clássico, com um motor muito simples e fiável, apesar da dor de cabeça que sempre me deu a bateria, por ser muito fraca… Ligo-o sempre que posso e dou uma volta para gáudio de todos. E como quis preservar o original, mantive esse velho defeito de origem, ou seja, a bateria pindérica… No fim da guerra foram os ingleses que deram um impulso decisivo à popularidade desse pequeno automóvel. Hitler inventou-o, mas não lhe deu condições de persistência. E é mesmo de património cultural que falamos. Quantos de nós, da minha geração, pudemos gozar as vantagens desse carro modesto, mas de indiscutível qualidade… Devo, porém, dizer que é raríssimo o modelo que tenho de cor original preta… O meu amigo ficou contente por ter boas notícias desse caso mítico na história do automóvel, e combinámos, um dia destes, ir à minha garagem de Vila Nogueira, visitar e dialogar com o meu “carocha”, que faço questão de manter brunido e impecável, como nos tempos em que me foi vendido pela velha Guérin. Mas também esclareci que ao lado dele está um Morris 8 de 1948, igualmente como veio de origem, com uma vaquinha por símbolo. Esse era um carrinho nervoso, mas bom amigo, que me pregou sustos na serra de Sintra por causa dos travões, mas no qual aprendi sobretudo que o melhor auxiliar de um bom condutor é a caixa de velocidades, que me permitiu sempre sair-me bem (diabo seja surdo…) de várias atrapalhações. Abençoada caixa de três velocidades… Nestas crónicas, já vos falei das inesquecíveis jornadas das corridas de Monsanto, em que vi em carne e osso Stirling Moss, Jack Brabham, Jim Clark e o nosso Nicha Cabral. Já não vi cá Juan Manuel Fangio, que veio dois anos antes de eu ter ido a Montes Claros pela primeira vez. As corridas de automóveis eram fantásticas, sobretudo num tempo em que não podíamos ver as transmissões televisivas e tínhamos de ir aos locais para gozar o prazer do movimento e do ruído ensurdecedor das máquinas. Sim, o património cultural material e imaterial faz-se também de recordações da tecnologia, do desporto, dos heróis e das tragédias. . E ficámos os dois ali esquecidos do tempo, a recordar. Meu amigo lembrou-me ainda um primo meu e homónimo. Quantas recordações? E voltamos a falar do «joaninha» de outro familiar nosso, com que seguia a temporada espanhola dos touros. Onde estará esse Renault – dito joaninha? Na sucata por certo. Quanta coisa fica esquecida pelo caminho? E que importa? Conversa de velhos. E falar dessas coisas e pessoas é melhor do que nos atermos às maleitas e às doenças, que é o verdadeiro tédio. Despedimo-nos – Até ver!
E continuo a andar, pelas ruas de Vila Fresca sem destino certo. A andar para ir lembrando e para pensar com meus botões.
Já se notam os dias mais curtos. O sol desce no horizonte.
Como é bom percorrer as ruas e olhar em volta e gozar o tempo antigo da serra.
E dou-me de súbito a recitar intimamente.
Como gostaria de encontrar agora o meu amigo António.
Escrevo ainda de Vila Nogueira de Azeitão, junto de meus Manes e Penates. Há uma leve brisa, mas o calor ainda se não desvaneceu, apesar de estarmos a caminhar para o Equinócio de Outono. Ao fim de trinta e três postais e de outras tantas citações de poemas ou textos de referência, escolhi agora para terminar a série este coelho atrevido de Amadeo de Souza-Cardoso. Acompanha-me há muito. É o símbolo de um entendimento do património cultural em que os tempos se associam e dialogam – ligando sempre o antanho e a contemporaneidade. Procurei, ao longo deste tempo, dizer que o património cultural, começa nos nossos genes que se transmitem pelas gerações, continua no que somos e fazemos, dando vida ao que recebemos e transmitimos e termina na nossa vida do dia a dia. Ontem quando caminhava pela minha querida Arrábida, dei-me a dialogar com Frei Bernardino, cujo espírito está bem presente por aqui. E recitei intimamente um poema de meu padrinho e homónimo Frei Agostinho da Cruz. Mas quando cheguei a casa corri a reler Pedro Tamen e algumas recordações de João Bénard da Costa… Com deleite ali fiquei. Que é a vida da cultura senão esta possibilidade de gozar a paisagem, de percorrer os caminhos ancestrais, de dialogar com os espíritos e de regressar à terra, aos nossos dias. Antes de entrar em casa tive dois dedos de conversa com um vizinho simpático, preocupado com a mudança da hora que me disse ser a ignorância muito atrevida: “Venham aqui para o campo às nove da manhã com noite fechada no inverno e digam-me se isso está bem?”… Dei-lhe uma nota do meu amigo Rui Agostinho a dizer que tinha toda a razão – e acabámos a falar do tempo em que era o relógio de sol que marcava o tempo… Hoje, aqui estou com um bom pão caseiro como já só encontro aqui, boa compota de marmelo, um queijinho delicioso e um moscatel… Folheio papeis antigos e dou-me com o meu querido Padre António Vieira, que é a melhor maneira de ver com olhos de ver o que nos rodeia…
«E quando os homens são de tal condição, que cada um quer tudo para si, com aquilo com que se pudera contentar a quatro, é força que fiquem descontentes três. O mesmo nos sucede. Nunca tantas mercês se fizeram em Portugal, como neste tempo; e são mais os queixosos, que os contentes. Porquê? Porque cada um quer tudo. Nos outros reinos com uma mercê ganha-se um homem; em Portugal com uma mercê, perdem-se muitos. Se Cleofas fora português, mais se havia de ofender da a metade do pão que Cristo deu ao companheiro, do que se havia de obrigar da outra metade, que lhe deu a ele. Porque como cada um presume que se lhe deve tudo, qualquer cousa que se dá aos outros, cuida que se lhe rouba. Verdadeiramente, que não há mais dificultosa coroa que a dos reis de Portugal: por isto mais, do que por nenhum outro empenho. (...) Em nenhuns reis do mundo se vê isto mais claramente que nos de Portugal. Conquistar a terra das três partes do mundo a nações estranhas, foi empresa que os reis de Portugal conseguiram muito fácil e muito felizmente; mas repartir três palmos de terra em Portugal aos vassalos com satisfação deles, foi impossível, que nenhum rei pôde acomodar, nem com facilidade, nem com felicidade jamais. Mais fácil era antigamente conquistar dez reinos na Índia, que repartir duas comendas em Portugal. Isto foi, e isto há de ser sempre: e esta, na minha opinião, é a maior dificuldade que tem o governo do nosso reino».
Chego ao fim deste Diário de Agosto. Muito ficou por dizer.
Hoje falo do Bruxo de Seide. Sim dum bruxo, que soube usar a língua e a narrativa como um modo de enfeitiçar… Camilo Castelo Branco é, por certo, o escritor português que mais sistematicamente cultivou o património e a memória. Ah, como é enganadora a sua fama! Profundo conhecedor do Portugal profundo, deu-nos nos seus romances um retrato rigoroso sobre as tradições, as angústias e as aspirações mais inóspitas e escondidas. Conheceu bem a Patuleia, nas suas diferentes componentes – desde o culto das tradições, das hostes do General Póvoas, à força incontida do inconformismo… E a sua biografia é um verdadeiro alfobre de temas que foi desenvolvendo e desconstruindo ao longo de um conjunto inumerável de títulos. Não se pense, porém, na superficialidade do escritor. Longe disso. Leitor insaciável, reunia informações e documentos, que conhecia como ninguém, e que faziam dele um dos nossos escritores mais cultos. É um caso singularíssimo na língua portuguesa. Longe do repentismo ou da facilidade, estamos perante um verdadeiro cultor das letras que se evidenciou ao saber aliar a um grande talento narrativo, uma capacidade de evocação única e a exigência de um profissional de primeira água, equiparável aos maiores de sempre, como Dickens ou Balzac… Alexandre Cabral fala, com razão, do «exemplo de um profissionalismo sem mácula, nesse estrito aspeto, que não foi ainda ultrapassado». Fialho de Almeida calculava a produção camiliana em cerca de 180 volumes e 54 mil páginas.
Aquando da prisão na Relação do Porto, no processo de Ana Plácido, D. Pedro V fez questão de visitar o romancista duas vezes, em novembro de 1860 e no final do Verão de 1861, com palavras de admiração, e, como corresse a notícia de que o monarca lhe mandara oferecer dois contos de réis, Camilo apressou-se a esclarecer e a desmentir: «Eu creio que o Sr. D. Pedro V é infinitamente delicado, e só dá esmolas a quem lhas pede. Quando S. M. me fez a honra de perguntar, na cadeia, em que ocupava, respondi a S. M.: que trabalhava. Ou o Sr. D. Pedro V entendesse que eu me ocupava em chapéus de palha ou em romances, ou em caixinhas de banha, a minha posição ficava defendida para o inteligente monarca: o homem que trabalha não pede nem aceita esmolas; e, se a pedisse ao rei, julgar-se-ia tão humilhado, como se a pedisse ao ínfimo dos homens». Estava em causa a hombridade e a direitura da sua dignidade.
Como escritor que se empenhava num verdadeiro drama quotidiano, confessa: «Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia, escrevia sempre».
Oiçamo-lo então nas páginas inesquecíveis de “A Queda de Um Anjo”:
«Fermentou na mente dos principais lavradores e párocos das freguesias do
círculo eleitoral a ideia de levar ao Parlamento o morgado da Agra de Freimas.
Os deputados eleitos até àquele ano, no círculo de Calisto Elói, eram coisas
que os constituintes realmente não tinham enviado ao congresso legislativo.
Pela maior parte, os representantes dos mirandeses tinham sido uns rapazes
bem-falantes, areopagitas do café Marrare, gente conhecida pela figura desde o
botequim até S. Carlos, e afeita a beber na Castália, quando, para encher a
veia, não preferia antes beber da garrafeira do Mata, ou outro que tal
ecónomo dos apolíneos dons.
Em geral, aquela juventude esperançosa, eleita por Miranda e outros sertões
lusitanos, não sabia topograficamente em que parte demoravam os povos seus
comitentes, nem entendia que os aborígenes das serranias tivessem mais
necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo regímen da
constituição. Se algum influente eleitoral, prelibando as delícias do hábito de
Cristo, obrigara a urna e o senso comum a gemer nos apertos do doloroso
parto do paralta lisboeta, o tal influente considerava-se idóneo para escrever
ao deputado, incumbindo-lhe trabalhar na nomeação de um vigário chamorro,
ou outra coisa, que foi denominação de bando político, em tempo que a
política não sabia sequer dar-se nomes decentes. Pois o deputado não
respondia à carta do influente, nem o requerente sabia onde procurá-lo fora
do Marrare.
Por muitos factos desta natureza conspiraram os influentes do círculo de
Miranda contra os delegados do Governo; e a ideia de eleger o morgado foi
recebida entusiasticamente por todos aqueles que o ouviram falar no adro da
igreja, e por quantos tiveram notícias da sua parlenda.
O partido, que o mestre-escola ganhara de eloquente assalto, cedeu ao império
das razoáveis conveniências, e centralizou-se na maioria. A verbosidade,
porém, do professor não ficou despremiada, sendo nomeado secretário da
junta de paróquia.
Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente às solicitações dos lavradores, que o
procuraram com o mestre-escola à frente, facto que muito honra este
desinteresseiro e reportado funcionário. Neste encontro, o professor excedeu
o juízo avantajado que ele propriamente fazia da sua vocação oratória.
Mostrou as fauces do abismo escancaradas para travarem Portugal, se os
sábios e virtuosos não acudissem a salvar a Pátria moribunda. Calisto Elói,
enternecido até às lágrimas pela sorte da terra de D. João I, voltou-se para a
esposa, e disse, como o agricultor Cincinato:
— Aceito o jugo! Assaz receio, mulher, que os nossos campos sejam mal
cultivados este ano.
Estavam próximas as eleições.
A autoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o
Governo da inutilidade da luta. Não obstante, o ministro do Reino redobrou
instâncias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de
Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escrito revistas de
espetáculos, e recitava versos dele ao piano, cuja falta ou demasia de sílabas a
bulha dos sonoros martelos disfarçava. Redarguiu o administrador do
concelho ao governador civil que pedia a sua demissão para não sofrer a
inevitável e desairosa derrota.
Quis assim o Governo aliciar no círculo algum proprietário, que
contraminasse a influência do candidato legitimista, fazendo-se eleger. Alguns
lavradores, menos aferrados à candidatura de Calisto, lembraram à autoridade
o professor de instrução primária, estropeando frases dos discursos dele,
proferidos na botica. O administrador riu-se, e mandou-os bugiar, como
parvajolas que eram.
Por derradeiro, o governador civil fez saber ao ministério que os povos de
Vimioso, Alcanissas e Miranda se tinham levantado com selvagem
independência e tinham fugido com a urna para os desfiladeiros das suas
serras.
Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que, beliscado na sua
vaidade, assanhou-se contra o Governo, escrevendo umas feras objurgatórias,
as quais, se tivessem gramática à proporção do fel, o Governo havia de pôr as
mãos na cabeça e demitir-se.
À exceção de uma lista, o morgado da Agra de Freimas teve-as todas. A que
não tinha o nome simpático aos eleitores votava em Brás Lobato, professor de
instrução primária, secretário da junta de paróquia, e ex-sargento das milícias
de Mirandela. Parece que votara em si o mestre-escola. Afinal, maculou a
alvura do nobilíssimo desprendimento com que perorara em pró da eleição de
Calisto! Fragilidade humana!
Principiou, desde logo, o morgado eleito a refrescar a memória com as suas
leituras de história grega e romana. Era isto entroixar ciência e enfeixar flores
para o Parlamento. Depois, releu a legislação dos bons tempos de Portugal, a
fim de restaurar os costumes desbaratados, fazendo remoçar as leis, que
tinham sido o tabernáculo da moral humana guardado pelo temor de Deus.
Tosquenejou muitas noites sobre os bacamartes pulvéreos; e, desde que a
manhã raiava até horas de almoço, ia à margem do Douro, que lhe lambia a
ourela da quinta, declamar, como Demóstenes nas ribas marítimas, ao estridor
de um açude e das rodas de duas azenhas. Os moleiros, que o viam bracejar, e
lhe ouviam o vozeamento, benziam-se, pensando que o sábio treslera, ou
coisa má lhe entrara no corpo. A Sra. D. Teodora Figueiroa, vendo o marido
assim tresnoitado, seguia-o às vezes, de madrugada, espreitava-o de um
cabeço sobranceiro ao rio, e benzia-se também, dizendo: «Dão-me com o
Um dos poemas mais intensos da “Mensagem” de Fernando Pessoa é, sem dúvida, o que se refere a Filipa de Lencastre. Madrinha de Portugal! – eis como o poeta qualifica quem foi por certo a mais célebre das nossas Rainhas.
Mãe da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, na expressão de Camões, foi de uma influência crucial, como educadora, como fator de estabilidade e de bom governo. Seus filhos marcaram decisivamente a Pátria.
D. Duarte, o Leal Conselheiro, é o primeiro dos nossos pensadores – que, no entanto, soube distinguir a sua qualidade de filósofo e governante. D. Pedro compreendeu que Portugal precisava de ir para as Sete Partidas – afirmando-se na Europa, criando boas instituições e partindo para o Mar. Se terminou tragicamente em Alfarrobeira, seus netos, o Príncipe Perfeito e Santa Joana Princesa projetaram a sua influência positiva na história portuguesa.
D. Henrique lançou o plano do Achamento do Mundo (em coerência e não contradição com D. Pedro), Gomes Eanes de Azurara explica bem a coerência de uma cuidada preparação contra a ideia de improviso. D. Isabel de Portugal, Duquesa de Borgonha, mulher de Filipe o Bom, mãe de Carlos o Temerário, foi uma das mulheres de maior influência na história do seu tempo. D. Fernando, o mártir de Tânger, foi símbolo do sacrifício em nome de uma causa. Em todos há a marca indelével de Filipa de Lencastre, da inteligência, da sabedoria e da determinação. Morreu quando seus filhos partiam para Ceuta – mas a sua referência ficou bem evidenciada, no que fez e no que legou.
Nos dias de hoje, não podemos esquecer que D. Filipa simboliza originalmente a mais antiga aliança entre duas Nações – Portugal e o Reino Unido. Em tempos de incerteza e do terrível “brexit”, temos de lembrar que na Europa há uma ligação perene que não se deve perder e que tem vocação atlântica. Resistimos juntos nas Guerras Peninsulares, foi a mudança política britânica que permitiu a vitória liberal em 1834, os Açores foram essenciais na vitória dos Aliados, entrámos na EFTA / AECL com o Reino Unido, seguimo-lo nas Comunidades Europeias – razões suficientes para vermos os últimos acontecimentos com preocupação. Houve sombras, é certo, mas o balanço global é o de que a frente atlântica europeia precisa de Portugal e do Reino Unido solidários… D. Filipa de Lencastre, madrinha de Portugal! Temos isso bem presente. Meu avô anglófilo dos quatro costados insistia sempre nesse ponto.
As duas imagens que hoje se apresentam correspondem à lembrança da infância de há cinquenta anos… pouco dirá aos nossos jovens, mas conheço alguns que sentem prazer em ouvir dos avós estórias de outros tempos.
Na primeira imagem, a Zé procura com um binóculo avistar o castelo misterioso do cimo da montanha. Eles encontraram-se no Casal de Kirrin, como habitualmente nas férias grandes, e a partir daí desenrolaram-se mil aventuras e mil peripécias. Eles são, além da Zé, a Ana, o Júlio, o David e o inseparável Tim (no original: Georgina, Anne, Julian, Dick e Timmy). Em Portugal eram esses os nomes dos heróis mais célebres de Enid Blyton (1897-1968). Era apaixonante ler cada uma das cerca de 120 páginas da coleção da Editorial Notícias, sendo o primeiro “Os Cinco na Ilha do Tesouro”. Mas havia também o programa semanal da Emissora Um, “Meia Hora de Recreio”, que apresentava capítulos dos Famosos Cinco, sob a direção de Maria Madalena Patacho (1903-1993) e com a inconfundível voz de Ruy Ferrão (1918-2010)…
Nesse tempo, a nossa Mãe preparava-nos o lanche em volta do imponente aparelho de rádio, gigantesco, com um som forte e irrepreensível – café com leite, pão com manteiga, queques e bolos de arroz. E ouvíamos deliciados as descrições das opíparas merendas que a Mãe da Zé preparava para os pequenos: ovos com bacon, compotas variadas, sumos - e juro-vos que o nosso lanche mais corriqueiro sabia exatamente às descrições de Enid Blyton. A sugestão era tudo, e sobretudo havia todo o suspense dessas aventuras fantásticas. Cada geração tem os seus heróis - e a minha, que era a do “Cavaleiro Andante”, era naturalmente irmã dos Cinco… Eu sei que houve os Sete, o Noddy, a Gémeas do Colégio de Santa Clara, mas apenas os Cinco nos interessaram verdadeiramente, como antecâmara das Biografias da Civilização e dos clássicos da Sá da Costa…
A segunda imagem de hoje remete para a coleção dos Dinky Toys, fabricados pela Meccano de boa memória. Importa lembrar que a Meccano (fundada em 1908 por Frank Hornby) começou por produzir peças para montar elevadores, gruas, tratores, automóveis. Uma grua como devia ser demorava mais de um dia a ser produzida, reunindo centenas de peças e muitos parafusos. Era um brinquedo fabuloso. Começámos com a caixa número cinco e acabámos com a número 10, capaz de realizar autênticas obras de alta engenharia… Mas regressemos às miniaturas. A fábrica inglesa da Meccano produziu miniaturas de fundição injetada entre 1935 e 1979. Não esqueço um Connaught Fórmula 1 de cor verde, que foi pilotado por Stirling Moss, que eu vi correr em carne e osso em Monsanto no último ano em que essa marca concorreu, 1959. Depois vieram um Land Rover, um Morris Minor, um Austin, uma camioneta Dodge… Em simultâneo começaram a surgir os Corgi Toys, com molas e com portas e capots a abrir e fechar… Os Dinky e os Corgi associavam-se facilmente pois tinham a mesma escala… Vários dos meus modelos chegaram mesmo a estar expostos no Museu do Brinquedo… A fábrica da Dinky em Binns Road, Liverpool, fecharia em 1979, em virtude da concorrência de produtos feitos no Oriente em série mais baratos mas de menor qualidade, e a Corgi Toys ainda duraria até 1983, mas conheceria o mesmo destino. A Matchbox viria até 2000 a produzir sob a marca Dinky modelos que tinham ganho notoriedade. Hoje a produção de miniaturas mudou radicalmente, prevalecendo os modelos de pequena dimensão ou de escala superior às dos clássicos Dinky e Corgi Toys… Foi um outro tempo – e agora essa nostalgia é responsável por preços astronómicos alcançados em leilões pelos pequenos modelos originais…
Sobre a nostalgia dos brinquedos da infância oiçamos hoje Cecília Meireles:
«O menino quer um burrinho para passear. Um burrinho manso, que não corra nem pule, mas que saiba conversar.
O menino quer um burrinho que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores, – de tudo o que aparecer.
O menino quer um burrinho que saiba inventar histórias bonitas com pessoas e bichos e com barquinhos no mar.
E os dois sairão pelo mundo que é como um jardim apenas mais largo e talvez mais comprido e que não tenha fim.
(Quem souber de um burrinho desses, pode escrever para a Ruas das Casas, Número das Portas, ao Menino Azul que não sabe ler.)»
O Convento e Palácio Nacional de Mafra constitui uma das grandes referências europeias do barroco setecentista. A edificação propriamente dita, a Biblioteca única na diversidade e valia das obras nela integradas, o sistema de carrilhões (apoiado pela campanha dos 7 monumentos maia ameaçados da Europa Nostra), os órgãos da basílica – tudo aponta para um dos exemplos mais importantes da criação artística e arquitetónica da humanidade. Os trabalhos da construção iniciaram-se em 1717 por iniciativa de D. João V, em virtude de uma promessa em nome da descendência que viesse a ter da rainha D. Maria Ana de Áustria. Concebido inicialmente como um pequeno convento para 13 frades, o projeto para o Real Convento foi sofrendo sucessivos alargamentos, acabando num imenso edifício de cerca de 40.000 m2, com todas as dependências e pertences necessários à vida quotidiana de 300 frades da Ordem dos Frades Menores. O edifício ocupa uma área aproximada de quatro hectares (37.790 m2). Construído em pedra de lioz, abundante na região, é constituído por 1200 divisões, mais de 4700 portas e janelas, 156 escadarias e 29 pátios e saguões. No convento gastavam-se, quando começou a funcionar, anualmente 120 pipas de vinho, 70 pipas de azeite, 13 moios de arroz (cada moio corresponde a 828 litros) ou 600 cabeças de vaca. Junto ao Convento ficava o chamado Jardim da Cerca, com horta e pomar, vários tanques de água e sete campos de jogos, quatro da bola, um do aro e dois de laranjinha. Foi escolhido para arquiteto João Frederico Ludovice, ourives, arquiteto e engenheiro militar prussiano de formação italiana. Dirige a obra até 1730 e para sua conclusão ficará seu filho João Pedro Ludovice, também arquiteto. Para os altares da Real Basílica e diversas capelas, bem como áreas conventuais, como a portaria e o refeitório, o rei encomendou uma coleção de pintura religiosa, na qual avultam obras dos pintores italianos Masucci, Giaquinto, Trevisani e Battoni e de portugueses bolseiros em Roma como Vieira Lusitano e Inácio de Oliveira Bernardes. A coleção de escultura foi encomendada a grandes mestres italianos, entre os quais se contam Lironi, Monaldi, Bracci, Maini, Corsini, Rusconi e Ludovisi, constituindo a mais importante coleção de escultura barroca italiana fora de Itália, formada por 58 estátuas de mármore de Carrara, que inclui estudos em terracota e a produção da Escola de Escultura de Mafra, criada no reinado de D. José, sob a direção do mestre italiano Alessandro Giusti, e por onde passaram importantes escultores como Machado de Castro. Há ainda uma importante coleção de paramentos produzidos em Itália e em França.
A construção e a mitologia em seu entorno foi tema do romance de José Saramago “Memorial do Convento”. Entre os operários do Convento estava Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, e o romance trata do seu grande amor por Blimunda Jesus, mulher dotada do estranho poder de ver o interior das pessoas. Os dois conhecem o célebre padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, que entrou na história como pioneiro das máquinas voadoras. Desse encontro vai resultar a construção de um aparelho voador, a Passarola, que sobe em direção ao Sol, sendo que este atrai as vontades, que estão presas dentro da Passarola. Blimunda Jesus, ao ver o interior das pessoas, recolhe as suas vontades, descritas pelo autor como nuvens abertas ou nuvens fechadas.
Após um dos voos da passarola, Bartolomeu foge para Espanha, perseguido pela Inquisição. Blimunda e Baltasar vão tratando de esconder e de fazer a manutenção à Passarola, que estava dissimulada por arbustos em Montejunto. Um dia, Baltasar ficou preso à Passarola, enquanto fazia a sua manutenção, e os cabos que a impediam de se elevar nos céus rebentaram, tendo sido levado pelos ares. A aeronave despenhou-se e Baltasar foi capturado pela Inquisição, acusado de bruxaria. No epílogo da ação, Blimunda recolhe a vontade de Baltasar, enquanto este morre, condenado à fogueira.
Aqui património, tradição, sonho e imaginação encontram-se notavelmente…
E oiçamos José Saramago:
“Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.”
“Que sentes tu dentro de ti, Que ninguém se salva, que ninguém se perde, É pecado pensar assim, O pecado não existe, só há morte e vida, A vida está antes da morte, Enganas-te, Baltasar, a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso é que não morremos de vez, E quando vamos para debaixo da terra, e quando Francisco Marques fica esmagado sob o carro da pedra, não será isso morte sem recurso, Se estamos falando dele, nasce Francisco Marques, Mas ele não o sabe, Tal como nós não sabemos bastante quem somos, e, apesar disso, estamos vivos, Blimunda, onde foi que aprendeste essas coisas, Estive de olhos abertos na barriga da minha mãe, de lá via tudo.”
“Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lasca de carvão de pedra.”
Konstantinos Kavafis (1863-1933) escreveu sobre Itaca um dos poemas mais célebres da cultura moderna. A metáfora da viagem surge como a representação da própria existência. A procura e a descoberta, a atenção e experiência – tudo nos surge como uma procura permanente de sentido. “Que sejam muitas as manhãs de Verão, quando, com que prazer, com que deleite, entrares em portos jamais antes vistos!”. A versão que aqui apresentamos é da autoria de Jorge de Sena e constitui uma peça fundamental da poesia portuguesa. Só um grande poeta pode ser tão fiel ao espírito de Kavafis. E é o Mediterrâneo que aqui se encontra bem presente. Naturalmente, lembramo-nos perante este poema da amizade fecunda entre Sophia e Sena. Mais do que uma amizade, há uma fidelidade muito funda às raízes comuns da nossa cultura – encruzilhada de influências, Oriente e Ocidente, Sul e Norte, céu e mar… Ulisses é um símbolo que nos une – a paixão temperada pela medida. Ah! Importa reler ininterruptamente este poema. Todos vamos regressando a Ítaca. E o tema não pode ser mais português. Temos o gene de Ulisses dentro de nós… E não esqueço o especial afeto que o Alberto Vaz da Silva tinha para com este poema…
«Quando partires de regresso a Ítaca, deves orar por uma viagem longa, plena de aventuras e de experiências. Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros, um Poseidon irado - não os temas, jamais encontrarás tais coisas no caminho, se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime teu corpo toca e o espírito te habita. Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros, Poseidon em fúria- nunca encontrarás, se não é na tua alma que os transportes, ou ela os não erguer perante ti. Deves orar por uma viagem longa. Que sejam muitas as manhãs de Verão, quando, com que prazer, com que deleite, entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie: compra desses perfumes o quanto possas. E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito. Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último. Mas não te apresses nunca na viagem. É melhor que ela dure muitos anos, que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho, e sem esperar que Ítaca te dê riquezas. Ítaca deu-te essa viagem esplêndida. Sem Ítaca, não terias partido. Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te. Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu. Sábio como és agora, senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca».
Um dia em Paris, António Tabucchi comprou e leu a tradução francesa de Pierre Hourcade da “Tabacaria” de Álvaro de Campos e foi amor à primeira vista. Então converteu-se a Portugal. Melhor – converteu-se às culturas da língua portuguesa. E a sombra de Pessoa alargou-se… Claro que Maria José teve um papel fundamental, mas a verdade é que, a partir de então, gerou-se um decisivo coup-de-foudre cultural. Hoje, Fernando Pessoa e os heterónimos, com o ortónimo e os semi-ortónimos tornou-se uma referência que ultrapassa fronteiras. O desassossego invadiu o mundo. Profeticamente, ouvimo-lo dizer: “Deve estar para muito breve (…) o aparecimento do poeta supremo da nossa raça, e, ousando tirar a verdadeira conclusão que se nos impõe, pelos argumentos que o leitor já viu, o poeta supremo da Europa de todos os tempos”… Sentimos uma sensação estranha. Se Pascoaes falava dos poetas lusíadas, Pessoa fala apenas de poetas… Pessoa é cosmopolita e vai ao encontro de Shakespeare e de Walt Whitman. E Álvaro de Campos define-se “excelentemente como sendo um Walt Whitman com um poeta grego lá dentro”. Ah! Aí temos a mediação de Alberto Caeiro… As mesmas letras, em ambos, tão diferentes e complementares - A – C… E Almada Negreiros retratou Fernando Pessoa. Fê-lo, aliás, duas vezes em dois lados do espelho. E sobre a mesa está um ícone: o Número 2 de “Orpheu”. Muito se tem dito sobre o movimento que tornou o século XXI uma circunstância que pôs as culturas da língua portuguesa na ordem do dia. Mais do que moda, falamos de capacidade de entender o tempo novo, feito de diferenças, de dúvidas, de perplexidades. Fernando Pessoa e os seus são a ilustração mesma de património vivo de ideias e de diferenças… Oiçamos, de novo, pausadamente este encontro com o Esteves sem metafísica numa Tabacaria que simboliza tudo…
«Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Génio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim... Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas - Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordámos e ele é opaco, Levantámo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -, Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube, E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?), E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira E continuo fumando. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. (O dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu».