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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O PERIGO DE UM DEUS BOM

 

1. Julgo que o que no Papa Francisco provoca mais a admiração das pessoas, dentro e fora da Igreja — talvez até mais fora —, é ele ser um cristão. Por palavras e obras.


O que é ser cristão? É ser discípulo de Jesus, tentar viver como ele. Jesus é o autor da maior revolução da História, que consiste na revolução da imagem de Deus. Até pessoas que se dizem cristãs continuam com a ideia de que Deus manda epidemias, por exemplo, de que Deus precisou da morte do seu Filho Jesus para se reconciliar com a Humanidade. Pergunto: que pai ou mãe decentes exigiriam a morte de um filho? Em relação ao Deus que tivesse mandado o Filho ao mundo para, pela sua morte na cruz, poder aplacar a sua ira e reconciliar-se com a Humanidade só haveria uma atitude humanamente digna: ser ateu.


Na realidade, Jesus, veio, pelo contrário, revelar que Deus é Pai/Mãe, amigo de todos, que a todos dá a mão, que compreende e perdoa e quer a salvação de todos. Deus é Amor incondicional, “o seu nome é Misericórdia”, diz o Papa Francisco, que faz como Jesus: anima a todos, dá a mão aos mais pobres, abandonados, marginalizados, denuncia a economia financeira especulativa e corrupta, que mata...


Afinal, na Páscoa, a pergunta que precisamos de fazer é sempre esta: Quem mandou matar Jesus, crucificando-o? Dá que pensar e até causa arrepios: Jesus foi mandado matar, em primeiro lugar, pelos sacerdotes do Templo. Eles não toleravam que Jesus dissesse, colocando na boca de Deus estas palavras: “Eu não quero sacrifícios (de pombas, ovelhas, vitelos...), mas sim justiça e misericórdia.” Os sacerdotes viviam, até financeiramente, da exploração do povo em nome da religião. Quem mandou crucificar Jesus, a pedido dos interesses do Templo, foi o representante do Império, Pilatos. Para que é que existem os impérios senão para idominar, explorar, escravizar? Pilatos teve medo de que o fossem denuncar ao imperador por libertar um subversivo com consequências para o poder imperial. De facto, o Deus de Jesus não quer escravos nem explorados por impérios ou seja pelo que for. Deus quer a dignidade de todos.


Não é esta dignidade e justiça para todos que Francisco também anuncia, quer e pratica?


Até parece que nos damos mal com um Deus bom para todos. Talvez não seja só parecer; em geral, damo-nos mesmo mal. É que, se Deus não fosse bom, não seríamos obrigados também nós a ser bons; se Deus fosse vingativo, também nós podíamos vingar-nos; se Deus não fosse o Deus da justiça e da paz, nós também podíamos roubar, ser corruptos, fazer a guerra, matar em nome de Deus ou invocando o seu nome...


Será que temos meditado suficientemente sobre o que levou Jesus à Cruz? Jesus não morreu na cruz por vontade de Deus. Morreu por vontade dos homens. Jesus não morreu para satisfazer um Deus irado. Morreu pela causa de um Deus bom, amável. Morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor: Deus é Amor... e só quer o bem de todos. Quem nunca ouviu falar da parábola do filho pródigo, dos banquetes de Jesus com pecadores públicos, com prostitutas, acolhendo todos em nome de Deus?...


O sofrimento físico, psicológico, moral, de Jesus durante o julgamento, o abandono e a fuga dos discípulos mais próximos, a flagelação, a coroação de espinhos, o caminho do Calvário, aquelas horas de horrores na cruz, é inimaginável. Rezou a Deus, que tratava por “Abbá” (Pai querido), que o libertasse daquele suplício, que se aproximava, sentiu pavor, suou sangue, rezou aquela oração que atravessa os séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”. Mas as últimas palavras foram de perdão e de confiança filial: “Perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”. “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito.”


Tantas vezes a cruz verdadeira de Cristo foi insultada com cruzes peitorais de ouro com pérolas incrustadas para ostentação de quem as utilizou...


2. Aparentemente, foi o fim. Mas, lentamente, os discípulos — a primeira foi Maria Madalena,, porque amava mais — foram reflectindo sobre tudo o que viveram com Jesus, o que Ele disse, o que Ele fez, o modo como o fez até à morte e morte de Cruz, e foi-se tornando claro para eles, numa experiência avassaladora de fé, que aquele Jesus crucificado para dar testemunho do Deus que é Amor, não podia ter sido devorado pela morte. Na morte, não encontrou o nada, mas o Deus que é a Vida e Amor. Jesus é o Vivente. E reuniram-se outra vez e foram anunciar o Deus que Jesus anunciou, por palavras e obras. Deram testemunho dEle até à morte. “Vede como eles se amam”, diziam os pagãos sobre os cristãos. E uma nova esperança percorreu o mundo. E quando parecia que tudo se afundava, o cristianismo venceu, como sublinhava o ateu religioso Ernst Bloch, por causa desta proclamação: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”.


3. As primeiras comunidades cristãs reuniam-se e celebravam a Eucaristia com alegria nas suas casas, lembrando Jesus, a sua vida, a sua morte, a sua ressurreição, e aunciando a esperança da vida eterna plena: “Fazei isto em memória de mim”.


Mas damo-nos mal com um Deus bom. E, lentamente, porque eram acusados de ateísmo por não oferecerem sacrifícios à divindade, a Eucaristia foi transformada em sacrifício oferecido a Deus, e surgiram os sacerdotes com ordens sacras para oferecerem o sacrifico da Missa, e reapareceram os senhores do Sagrado e as duas classes na Igreja: o clero e os fiéis.


Introduziram-se as cerimónias, com mais ou menos solenidade, das cortes imperiais. O que restou (resta?) da Ceia de Jesus?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 MAIO 2021

JESUS E A IGREJA. 4

 

Na Igreja, haverá líderes no, com e para o Povo de Deus, para celebrar nas comunidades e com as comunidades a Eucaristia: a vida, a morte e a ressurreição de Jesus e da Humanidade inteira. A Eucaristia é memória da última Ceia e também de todas as refeições que Jesus tomou concretamente com pecadores e excluídos, precisamente para indicar a presença e actuação do Reino de Deus. Esses banquetes tinham causado profunda impressão nos discípulos. Jesus aliás comparou a realidade do Reino de Deus a bodas e banquete. Não se trata, pois, do padre-sacerdote do culto ritual-sacrificial. Jesus rejeitou o sacerdócio judaico e o culto sacrificial do seu tempo, e nada indica que quisesse instituir um novo culto sacrificial. Ele próprio não era “sacerdote” nem nenhum dos “Doze” nem Paulo. As suas relações com o Templo e o culto nele realizado pelos sacerdotes foram de ruptura, de tal modo que foi o sacerdócio judaico que o levou à cruz. No Novo Testamento, a palavra “sacerdote” no sentido sacrificial-cultual foi evitada. A concepção sacrificial da Eucaristia, que implica a introdução do sacerdote, é posterior, tendo na sua base sobretudo a vontade de impedir a acusação de ateísmo pelo facto de os cristãos se recusarem a prestar culto aos deuses e não oferecerem sacrifícios. Mas então o “povo sacerdotal” transformou-se na “Igreja dos padres”, e, esquecendo a Eucaristia como memorial do amor incondicional de Cristo pela Humanidade até ao fim na vida e na morte, a sua compreensão como sacrifício contribuiu para a concepção do Deus que precisa do sangue das vítimas, a começar pelo sangue do próprio Filho, em ordem a aplacar a sua ira. Deste modo, porém, continuou a história do deus sádico Moloch, em nome do qual é possível legitimar todo o sangue derramado. De facto, se Deus precisa, para ser aplacado na sua ira divina, do sangue de vítimas e até do do próprio Filho, porque é que nós não havemos também de poder derramar sangue e de vingar-nos?


Não se pode esquecer que o divino andou sempre vinculado ao belo, de tal modo que não há encontro autêntico com Deus sem o encontro com a beleza. Ora, é necessário reconhecer que frequentemente as celebrações das comunidades cristãs são confrangedoras no seu mau gosto. Quando nas igrejas se ouve a música que se ouve e se tem de escutar  as homilias que se sabe, é de espantar como é que há ainda tanta gente que vai à igreja. São necessárias celebrações familiares e belas, em que pré-apareça e se experiencie a beleza que nos redime de um quotidiano tantas vezes vulgar e vazio. Por outro lado, em casos especiais, como na situação de confinamento, por exemplo, nunca se pode esquecer que, como fizeram as primeiras comunidades, há possibilidade da celebração em casa. 


Será de acrescentar que hoje, oficialmente, só se consideram sete sacramentos. Mas Santo Agostinho falava em dezenas. E com razão, pois, se no Antigo Testamento Deus fala através de sinais e se no Novo Testamento Jesus fala mediante sinais, também a Igreja o deve fazer. Trata-se de sinais que mostram que o Reino de Deus está presente, trazendo salvação e força à Humanidade, manifestando a bondade de Deus e a sua solicitude. O que é preciso é adaptar e transformar o universo simbólico da Igreja para os novos tempos e necessidades.


Concluindo. Como escreveu J. A. Pagola, “O objectivo de Jesus foi introduzir no mundo o que ele chamava ‘o Reino de Deus’, uma sociedade estruturada de maneira justa e digna para todos, como Deus a quer. Quando Deus reina no mundo, a Humanidade progride em justiça, solidariedade, compaixão, fraternidade e paz. A isto se dedicou Jesus com verdadeira paixão. Por isso foi perseguido, torturado, executado. ‘O reino de Deus’ foi o absoluto para ele”. A conclusão é evidente: a força, o motor, o objectivo, a razão e o sentido último do cristianismo é “o Reino de Deus”, não outra coisa. “O critério para medir a identidade dos cristãos, a verdade de uma espiritualidade ou a autenticidade do que faz a Igreja é sempre ‘o Reino de Deus’. Um reino que começa aqui e alcança a sua plenitude na vida eterna.” Assim,  concluindo: “Uma das ‘heresias’ mais graves que se foi introduzindo no cristianismo é fazer da Igreja o absoluto. Pensar que a Igreja é o centro, a realidade à qual tudo o resto se há-de subordinar; fazer da Igreja o ‘substituto’ do Reino de Deus; trabalhar pela Igreja e preocuparmo-nos com os seus problemas, esquecendo o sofrimento que existe no mundo e a luta por uma organização mais justa da vida.”


O cristão acredita que o Deus Pai de Jesus Cristo é o Criador do mundo. Por isso, esta vida sobre a terra não é uma passagem ou um simples treino para a vida verdadeira do Além. Não! Esta existência neste mundo, aqui e agora, é já vida real e verdadeira, de salvação, com Deus. Mas ainda não somos o que seremos. Aguardamos a consumação e céus novos e uma terra nova. Uma religião que esqueça a Terra está inevitavelmente sob a suspeita de ilusão, como um mundo sem transcendência fica inevitavelmente sob a ameaça da desumanidade.


Como escreveu E. Schillebeeckx, quando a Igreja vive seguindo Jesus na oração e na libertação dos homens e das mulheres, “a fé na ressurreição não conhece por isso mesmo qualquer crise”. Mas, por outro lado, é preciso reconhecer e proclamar que “é melhor não ter fé na vida eterna do que confessar um Deus que, com o olhar num Além melhor, rebaixa, empequenece e humilha politicamente os seres humanos no ‘aqui e agora’”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 MAIO 2021

JESUS E A IGREJA. 3

 

Os baptizados formam um povo de profetas, reis e sacerdotes. A ruptura numa Igreja de irmãos deu-se com a ordenação sacerdotal, que originou duas classes: clero e leigos.


Todos os cristãos são sacerdotes: oferecem a sua vida a Deus e à sua causa, que é a causa dos seres humanos. Aqueles e aquelas que se reúnem convocados no baptismo pela pessoa de Jesus e o seu Reino formam a Igreja e são povo sacerdotal e sacramento de um mundo outro. Mas é necessário que haja homens e mulheres que dedicam a sua vida ao anúncio do Reino de Deus, conselheiros espirituais que despertam para a transcendência, animadores e coordenadores das comunidades...


Neste sentido, embora sem ordens sacras, continuará o ministério de padres, presbíteros, bispos, líderes das comunidades. Homens e mulheres, casados ou não, escolhidos pelas comunidades ou com a sua participação. Alguns temporariamente, outros de modo permanente. E para quê?


1. Para que a questão de Deus não morra entre os homens enquanto questão. Se a simples palavra "Deus" deixasse de existir, o Homem deixaria de ser Homem, como escreveu Karl Rahner: "A morte absoluta da palavra "Deus", uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu." Até filosoficamente, toda a pergunta pelo "sentido da acção humana", o perguntar pelo "sentido do processo do mundo na totalidade" exigem "um conceito de Deus". Com o eclipse de Deus, desaparece o sentido do mundo, que o Homem "em vão tenta reencontrar mediante uma acumulação de racionalidade". Mas já Georges Gusdorf tinha prevenido: "O caos, o absurdo, hoje, não propõem possibilidades abstractas; campeiam por todo o lado, não por insuficiência de racionalidade, mas por superabundância e excesso de lógica, de técnica, de intelectualidade parcelar, num universo em que a imensa acumulação de pormenores contraditórios oculta, ou mesmo destrói, a ordem humana. Deus morreu, a História enlouqueceu, o Homem morreu: tudo fórmulas desesperadas que exprimem a tomada de consciência, e o ressentimento, da ausência do sentido." O mundo parece encontrar-se perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a Humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e "abdica da sua procura de sentido".


Mas o Homem enquanto for Homem não deixará de perguntar, e toda a pergunta, em última instância, desemboca na pergunta pelo Ser Absoluto e Fundamento Último. Como diz Ciorán, "tudo se pode sufocar no Homem excepto a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, e inclusivamente ao desaparecimento da religião". No mesmo sentido, afirma L. Rougier: "A Igreja pode declinar, mas o sentimento religioso grávido de um impulso para o ideal, de uma sede do Absoluto, de uma necessidade de superar-se, que os teólogos chamam transcendência, subsistirá."


2. Líderes, para que a causa de Jesus, que é o Reino de Deus enquanto causa do Homem, não morra entre os homens. Líderes, portanto, exercendo, com o Povo de Deus, o tríplice múnus de Cristo, profeta, rei e sacerdote.


Profetas, anunciando o Deus Pai/Mãe que quer a salvação de todos os homens e mulheres. Não um deus do terror, mas o Deus da alegria e da vida; não um deus da exclusão, mas o Deus do perdão sem condições, que a todos acolhe, sobretudo aqueles e aquelas que são excluídos e marginalizados por motivos sociais, económicos, sexuais, religiosos; não um deus infantil, infantilizante e imoral, mas o Deus que é força de autonomização e dignificação. Profetas, que, parafraseando Kafka, falam sobre Deus, porque primeiro aprenderam a falar a Deus e com Deus. Profetas que sabem ler os sinais do mundo e dos tempos, que perguntam e escutam, e preparam anunciadores do Reino de Deus, implicados numa pastoral da interrogação, que tem a ver com dar razões da dúvida e razões da fé e da esperança. A fé não pode encerrar-se nas muralhas de um dogmatismo fixo, coisista e morto, mas tem de abrir-se ao diálogo e à razão crítica.


Líderes com um múnus régio. Jesus respondeu a Pilatos: sim, sou rei; nasci para dar testemunho da verdade. E já tinha dito: "Vim para servir, não para ser servido." Líderes, portanto, para animar comunidades cristãs fraternas, de serviço à dignidade infinita do ser humano. Desgraçadamente, a globalização está a ser sobretudo mundialização do mercado, no quadro ideológico do neoliberalismo, que cava cada vez mais fundo o fosso entre ricos e pobres. Os números não param de chegar, alarmantes e falando por si. Para quem tenta seguir Jesus Cristo, este estado de coisas é intolerável, bem como toda a exploração do trabalho, o racismo, os vários tipos de discriminação, qualquer violação dos direitos humanos. Trata-se, portanto, do combate lúcido e eficaz pela dignidade livre e pela liberdade com dignidade de todos os homens e mulheres, a começar pelos mais pobres, pelos humilhados e excluídos.


3. Não há religião verdadeira sem justiça e solidariedade. Mas isto implica que a justiça e o respeito pelos direitos humanos têm de começar pelo interior da própria Igreja. Na Igreja, Jesus até queria mais do que uma democracia, pois o que ele propunha era uma filadélfia, isto é, comunidades de irmãos e amigos (lê-se no Evangelho de S. João: "Já não vos chamo servos, mas amigos").

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 MAIO 2021

JESUS E A IGREJA. 2

 

1. A interpretação da Eucaristia como sacrifício teve várias consequências perniciosas. A maior foi a da ordenação sacra sacerdotal. Mas o Novo Testamento evitou a palavra hiereus — o sacerdote sacrificador de vítimas para oferecer à divindade e aplacá-la e pedir os seus favores. Jesus, que era leigo, foi vítima dos sacerdotes do Templo e, citando os profetas, colocou estas palavras na boca de Deus: “Ide aprender: eu quero justiça e misericórdia e não sacrifícios; os vossos sacrifícios aborrecem-me”. Evidentemente, com a ordenação sacra, a mulher, ritualmente impura, ficou excluída de presidir à Eucaristia.


O Novo Testamento diz que, pelo baptismo, todos formam um povo de sacerdotes, profetas e reis. Mas, com a ordenação sacerdotal, surgiu a distinção, essencial e não de grau, entre  o “sacerdócio comum” dos fiéis e o “sacerdócio ordenado” e, com ela, o estabelecimento de duas classes na Igreja: o clero e os leigos. E entrou “a lepra do clericalismo”, na expressão do Papa Francisco: de facto, a “hierarquia” (poder sacro) fica com todos os poderes — julgo que não se pensa suficientemente no que significou ser padre ou bispo, com o poder de “trazer Cristo à Terra, com a consagração”, perdoar os pecados, decidindo da salvação eterna ou da condenação das pessoas... —, usando e abusando do poder..., até à tragédia da pedofilia, privilégios de toda a ordem...


A Missa foi concebida como “immolatio” e “mactatio” de Cristo, embora se discutisse se essa imolação é real, moral, mística, ou sacramental. O sacerdote tinha o poder de realizar o milagre da transubstanciação do pão e do vinho, que deixavam de ser pão e vinho. Esta concepção substancialista e coisista da presença de Cristo na Eucaristia arrastou consigo vários equívocos. Em primeiro lugar, precisamente a concepção coisista da presença de Cristo. Hegel viu bem o perigo desta coisificação: referindo-se à celebração da Eucaristia, escreveu que, segundo a representação católica, “a hóstia — essa coisa exterior, sensível, não espiritual — é, mediante a consagração, o Deus presente — Deus como coisa”. Outro equívoco foi o da divisão e separação da realidade em sagrado e profano, de tal modo que o padre era retirado do profano para se consagrar ao sagrado (ainda hoje, a linguagem eclesiástica fala dos “consagrados”, sendo todos os outros, implicitamente, os profanos). A Eucaristia já não era celebração em que todos participavam activamente, mas sacrifício objectivo autónomo, que o padre até podia celebrar sozinho e que oferecia pelas almas do Purgatório e outras intenções — ainda há padres a celebrar, sós, Missas contínuas. E era possível esta contradição nos termos: “ir” à Missa, que até se dizia em latim e de costas para o povo, sem comungar, quando Jesus disse na Última Ceia: “Tomai e comei”. Está-se na Missa, mas de fora, ignorando que a celebração da memória de Jesus implica uma real e autêntica conversão, com a entrada activa na dinâmica do seu Reino, que é o Reino da justiça, da fraternidade, da verdade. Chegou-se a esta distorção: é-se convidado para um banquete, mas é de fora que se assiste à festa, às “cerimónias”. Por isso é que há as “missas oficiais” a que assistem agnósticos e indiferentes. Paradoxalmente, com a interpretação coisista da presença de Cristo, contra o sentido profundo do que S. Paulo diz aos Coríntios — “quem come do pão e bebe do cálice do Senhor indignamente torna-se réu do Corpo e do Sangue do Senhor” —, muitos cristãos, indo à Missa e não comungando, vêem-se libertos da urgência da conversão ao projecto de vida de Jesus. Ora, precisamente nesta não conversão, é que, segundo S. Paulo, nos tornamos “réus do Corpo e do Sangue do Senhor”, isto é, culpados da sua morte: de facto, o que S. Paulo condena nas comunidades são as suas divisões e que enquanto uns se fartam outros passam fome.


É, pois, necessário ser consequente: uma vez que se deve partir do pressuposto de que quem vai à Missa é porque quer sinceramente entrar no espírito de Jesus, não se compreende que não comungue. Evidentemente, se se estiver na dinâmica da conversão, com capacidade de entrega e sacrifício em ordem a uma vida pessoal e familiar digna e ao combate por um mundo de verdade, justiça e paz. Ainda neste sentido, torna-se igualmente claro que a celebração eucarística terá de acontecer no quadro das diferentes culturas do mundo. Assim, é claro que no Japão ou na China ou entre os esquimós não se deveria impor o pão e o vinho. A não ser que a Igreja queira continuar a ser uma instituição de clonagem cultual e cultural...


O que na Igreja Católica está em questão é se a presente constituição hierárquica é de instituição divina e, por isso, imutável. Já vimos que não, e é significativo que, segundo o Pontifical Romano. Ordenação do bispo, dos presbíteros e diáconos, o próprio ritual de ordenação já não diga “sagração episcopal” nem “ordenação sacerdotal”, mas “ordenação do bispo” e “ordenação dos presbíteros”.


A Igreja Católica precisa, com urgência, de uma nova constituição: uma constituição de mais comunhão de discípulas e discípulos, sem duas classes, que ponha fim a uma das últimas monarquias absolutas do mundo, com respeito pelos direitos humanos, que consagre a igualdade de homens e mulheres, que termine com o celibato obrigatório, com uma nova atitude perante a sexualidade. Como poderá ser a Igreja Católica, se se deixar orientar pelo Evangelho, por aquilo que Jesus anunciou e queria?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 ABR 2021

JESUS E A IGREJA. 1

  

1. Será preciso começar pela pergunta: Jesus fundou a Igreja, concretamente com a constituição com que hoje se apresenta? A resposta é inequívoca: “Não”. De facto, por exemplo, na obra com o título em português A Igreja Católica ainda tem futuro? Em defesa de uma nova Constituição para a Igreja Católica, na sequência de outras, o famoso exegeta Herbert Haag, da Universidade de Tubinga, com quem tive o privilégio de privar, renovou a tese segundo a qual é um dado seguro da nova investigação teológica e histórica que Jesus não fundou nem quis fundar uma Igreja (Jesus é o fundamento da Igreja, mas não o seu fundador, dizia o grande teólogo Karl Rahner) e, assim, muito menos pensou numa determinada constituição para ela. Também o Cardeal Walter Kasper, quando era professor da Universidade de Tubinga, perguntava nos exames aos estudantes se Jesus tinha fundado a Igreja, esperando uma resposta negativa.


Jesus não pregou a Igreja; anunciou o Reino de Deus. É bem conhecida a afirmação célebre de Alfred Loisy, em O Evangelho e a Igreja (1902), talvez a obra de teologia que mais polémica levantou no século XX: “Jesus anunciava o Reino e o que veio foi a Igreja”.


Com a morte de Jesus na Cruz, o suplício próprio de escravos, os discípulos confusos fugiram, dispersaram-se, voltaram às suas tarefas normais, pois aparentemente tudo tinha terminado. Assim, o que é espantoso — o enigma do Cristianismo, mesmo de um ponto de vista histórico, é precisamente esse — é que pouco tempo depois começaram a dizer que o tinham “visto”, que Ele está vivo. Se tudo tivesse terminado na morte, o destino de Jesus teria sido o esquecimento. Os discípulos reuniram-se, pois, outra vez e formaram comunidades (ekklesiai) congregadas pela fé em que esse Jesus, o Messias de Deus, voltaria em breve para instaurar o Reino de Deus em plenitude. Portanto, também as primeiras comunidades cristãs viveram dessa profecia, dessa fé e dessa esperança da chegada iminente do Reino de Deus. Neste sentido, basta ler a Primeira Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses 4, 15-17: “Nós os que estamos vivos, quando vier o Senhor, não teremos preferência sobre os que morreram.”


Não há dúvida de que as comunidades de São Paulo se legitimaram democrático-carismaticamente. Como é um facto que as primeiras comunidades se reuniam em casas particulares e celebravam a Eucaristia — o banquete do amor e testemunho da verdade até ao fim —, recordando a última Ceia e as várias refeições de Jesus. Quem presidia era o dono ou a dona da casa. Isto significa que todos os ministérios da Igreja actual, nomeadamente o ministério episcopal e o ministério sacerdotal, não foram criados por Jesus, mas pela Igreja. Como escreve Hans Küng, dado o adiamento da segunda vinda de Jesus, foi por motivos práticos que se impôs mais tarde uma “hierarquia”, uma “hierarquia ministerial”, composta por bispos, presbíteros e diáconos. Mas, a partir dos documentos do Novo Testamento, não se pode falar de uma “instituição” desta hierarquia ministerial e ordenada por Cristo ou os Apóstolos. Por isso, “apesar de toda a ideologia eclesiástica”, também não se pode afirmar que seja “imutável”. Ela é “o resultado” — talvez quase inevitável — de “um desenvolvimento histórico”, de tal modo que, embora a Igreja possa ser assim organizada, “não tem que sê-lo”. Portanto, a Igreja dispõe dos ministérios livremente. Pode mantê-los, aboli-los, mudá-los. Nisto, o princípio tem de ser: não é a comunidade que tem de orientar-se pelas necessidades do ministério, mas o ministério pelas necessidades da comunidade. Os ministérios existem para a comunidade, não a comunidade para os ministérios. Assim, mesmo para presidir à Eucaristia, o pressuposto não tem que ser uma ordenação sacra (Weihe), pois trata-se de um encargo, uma função, uma missão (Auftrag), que poderá ser temporária, por algum tempo, conferida a um homem ou a uma mulher, casados ou não. Onde é que está, no Novo Testamento, que Jesus ordenou alguém como sacerdote na Última Ceia?


A ordenação sacra sacerdotal levou, contra a vontade de Jesus, a duas patologias: o clericalismo e o patriarcalismo. A Igreja constituiu-se como nova sociedade composta por duas classes: hierarquia e povo, “clero” e “leigos”, sublinha Herbert Haag. Deste modo, estabeleceu-se aquele equívoco corrente: sempre que alguém se refere à Igreja, entende-se a hierarquia e não as discípulas e os discípulos de Jesus, isto é, esquecendo mais de noventa e nove por cento da Igreja, tem-se em mente menos de um por cento. Mas Jesus tinha dito: “Sois todos irmãos.”


Um dos nós do problema começou com a concepção da Eucaristia como sacrifício. Com a perspectivação cultual- sacrificial, apareceu o sacerdote, e, com a celebração diária da Eucaristia, a obrigação do celibato, pois o sacerdote está separado, à parte: tocando no Corpo do Senhor não pode tocar a profanidade impura do corpo da mulher, que ficou excluída da ordenação sacerdotal.


Aparecem então várias contradições na Igreja. Há uma que se torna gritante, concretamente em tempos de confinamento: os padres e os bispos podem celebrar a Eucaristia, centro da vida cristã, mesmo sozinhos; as comunidades cristãs, não. A outra: o cristianismo está na base da emancipação feminina, cada vez mais presente nas sociedades, mas a Igreja continua a discriminar as mulheres, não lhes reconhecendo igualdade com os homens. Por isso, sentem-se humilhadas na Igreja, que, muitas, vão abandonando.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 ABR 2021

AS TESES DE CATÓLICAS ALEMÃS

 

1. Já toda a gente percebeu ou deveria ter percebido que a Igreja precisa urgentemente de reformas profundas, e elas não podem continuar a ser impostas a partir de cima. Exige-se a participação de todos, exercendo a sinodalidade, como quer o Papa Francisco, isto é, caminhando juntos, nas paróquias, nas dioceses, na Igreja universal — aliás, o próximo Sínodo dos Bispos, em 2022, terá por temática precisamente a sinodalidade.


Neste contexto, a Igreja alemã, com o seu “Caminho Sinodal”, tem sido um belo exemplo.  Com quatro fóruns de discussão em funcionamento — sobre o poder na Igreja enquanto instituição hierárquica e o seu controlo, a forma de vida dos padres na sociedade actual e o celibato obrigatório, o amor e a moral sexual (já não é tabu falar em bênção para casais homossexuais), a mulher e os ministérios ordenados —, após discussão e aprovação no respectivo fórum, realizar-se-á no próximo Outono a Assembleia Sinodal formal, com 230 delegados (69 membros da Conferência Episcopal), para novos debates e votação.


A Igreja alemã tem consciência dos problemas que se colocam quanto ao futuro do cristianismo e da Igreja. Sabe que é necessário recuperar a confiança depois do escândalo dos abusos sexuais. Conhece as críticas às estruturas de poder, não ignora a questão do celibato e da moral sexual, as exigências das mulheres. Em 2019, 272.771 católicos alemães abandonaram a Igreja. Não ignora que há 500 anos Lutero afixou as famosas 95 teses e que não era sua intenção dividir a Igreja, mas reformá-la como se impunha. O  seu apelo não encontrou resposta adequada...


2. Foi neste contexto que, no passado primeiro Domingo da Quaresma, surgiram afixadas, nas catedrais e igrejas da Alemanha, sete teses, afirmando os princípios, o que deve ser, e contra o clericalismo, o patriarcalismo, a corrupção na Igreja. Quem as afixou? A iniciativa pertence a um movimento de mulheres católicas, denominado “Maria 2.0”, favoráveis a mudanças fundas na Igreja Católica. Dizem assim, textualmente:


“Tese 1. Na nossa Igreja, todas as pessoas têm acesso a todos os ministérios.

Porque os direitos humanos e a Lei Fundamental garantem a todos direitos iguais — só a Igreja Católica o ignora. Ser varão estabelece hoje direitos especiais na Igreja.


Tese 2. Na nossa Igreja, todos participam na sua missão; o poder é partilhado.
Porque o clericalismo é hoje um dos problemas fundamentais da Igreja Católica e favorece o abuso de poder com todas as suas facetas humanamente indignas.


Tese 3. Na nossa Igreja, os actos de violência sexual são investigados exaustivamente e os responsáveis são chamados a contas, as causas combatem-se sistematicamente.
Porque já há demasiado tempo que a Igreja Católica é um cenário de violência sexual. As autoridades eclesiásticas continuam a manter em segredo informações sobre estes crimes violentos e fogem às suas responsabilidades.


Tese 4. A nossa Igreja mostra uma atitude de apreço e reconhecimento de uma sexualidade autodeterminada mais atenta e do casal.
Porque a moral sexual ensinada é alheia à vida e discriminatória. Não se orienta pela imagem cristã da pessoa e já não é tomada a sério pela maioria dos fiéis.


Tese 5. Na nossa Igreja, o modo de vida celibatário não é um pressuposto para o exercício de um ministério ordenado.
Porque a obrigação do celibato impede pessoas de seguir a sua vocação. Quem não é capaz de cumprir este dever vive frequentemente atrás de aparências e vê-se lançado em crises existenciais.


Tese 6. A nossa Igreja funciona segundo princípios cristãos. É a administradora dos bens que lhe são confiados; não lhe pertencem.
Porque a pompa, transacções financeiras duvidosas e o enriquecimento pessoal de decisores eclesiásticos abalaram e diminuíram profundamente a confiança na Igreja.


Tese 7. A nossa missão é a mensagem de Jesus Cristo. Agimos em consequência e enfrentamos os desafios sociais.
Porque a direcção da Igreja perdeu a sua credibilidade. Não consegue fazer-se ouvir de modo convincente e trabalhar por um mundo justo no sentido do Evangelho.”


A resposta por parte dos Bispos foi a adequada: entenderam as exigências, querem avançar, mas sem criar rupturas. Por exemplo, o bispo de Mainz, P. Kohlgraf disse: “Não vou retirar o cartaz”. Destacou a sua simpatia pelas teses, mas que não se pode caminhar demasiado rápido. O bispo B. Meier, de Augsburgo, declarou aceitar as teses, prometendo abertura para o diálogo.


O porta-voz da Conferência Episcopal, Matthias Kopp, manifestou compreensão. “Sabemos que são necessárias mudanças”, “mas não podemos mudar a Igreja da noite para o dia, devemos fazê-lo mediante um diálogo aberto, marcado pela confiança”. No entanto, como se impõe, em questões de relevância para a Igreja universal, a Igreja na Alemanha “não adoptará um caminho especial sem Roma”.


3. Mudo de continente, evocando uma fotografia: uma irmã da Congregação das Religiosas de São Francisco Xavier, Ann Nu Thawng, ajoelhada, em lágrimas, diante de um pelotão policial em perseguição de manifestantes pacíficos em Myanmar, depois do golpe militar que já fez muitas vítimas mortais. Impressiona a sua coragem e força: a polícia parou e deu a volta. Ela salvou a vida a mais de cem manifestantes. “Ninguém a aplaudirá porque é freira. Mas é outro modo de lutar contra a violência machista”, comentou o teólogo José I. González Faus.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 MAR 2021

O PAPA FRANCISCO CONFESSA-SE. 2

 

1. Penso muitas vezes na solidão do Papa. Chega ao Vaticano, que não conhece por dentro, concretamente, a sua secular e gigantesca burocracia. Não tem mulher nem família com ele. E os amigos?! Sabe que os seus gestos, atitudes, discursos, homilias, tudo será escrutinado até ao mínimo pormenor. Vive e trabalha num palácio, guardas fazem-lhe continência ao passar. Aquele palácio é testemunha de muitas histórias, ao longo do tempo, tantas vezes nada, mesmo nada, edificantes, pelo contrário, revelando o pior da natureza humana e do poder, sobretudo quando absoluto. Dali também se transmitiu imensa esperança a milhões de pessoas em todo o mundo, e isso constitui mais uma preocupação: o que fizer vai influenciar um número incalculável de vidas. O Papa é um dos homens mais poderosos do mundo. No entanto, deve sentir-se tantas vezes só... Até sabe que, resignando, não é livre de escolher o lugar onde quer viver os últimos dias em tranquilidade. De facto, como ex-chefe de Estado, quem assume a responsabilidade da sua segurança? Pensei nisso quando recentemente o ex-Papa Bento XVI esteve na Alemanha para despedir-se do irmão em finais de vida e de como ruas ficaram encerradas, com soldados a guardar os telhados. É sabido que Paulo VI pensou em resignar e não ficaria no Vaticano, mandou preparar quartos num convento... Francisco, quando resignar, não quereria ficar no Vaticano, complicando a vida do sucessor, mas...


2. O jornalista da AdnKronos também veio ao assunto. E Francisco, na sua sinceridade: “Se estou só? Pensei nisso. E cheguei à conclusão de que existem dois níveis de solidão. Alguém pode dizer: sinto-me só, porque quem devia colaborar não colabora, porque quem deveria sujar as mãos pelo próximo não o faz, porque não seguem a minha linha e por aí adiante, e esta é uma solidão digamos... funcional. Depois, há uma solidão substancial, que eu não sinto, porque encontrei tantíssima gente que corre riscos por mim, coloca a sua vida em risco, que se bate com convicção, pois sabe que estamos no que está correcto e que o caminho empreendido, mesmo entre mil obstáculos e naturais resistências, é o correcto. Houve exemplos de maldades, de traições que ferem quem crê na Igreja. Essas pessoas não são certamente religiosas de clausura.”


Francisco não sabe se vencerá ou não a batalha. Mas com amorosa resolução diz-se seguro de uma coisa: “Sei que devo travá-la, fui chamado para travá-la, depois será o Senhor a dizer se fiz bem ou se fiz mal. Sinceramente, não estou muito optimista (sorri), mas confio em Deus e nas pessoas fiéis a Deus. Lembro-me de que quando estava em Córdova, rezava, confessava, escrevia, um dia vou à biblioteca procurar um livro e dou com 6-7 volumes sobre a história dos Papas e entre os meus antiquíssimos antecessores encontrei alguns exemplos não propriamente edificantes.”


Como reage às críticas que lhe chegam do interior da Igreja? E há tantas! Por causa das uniões civis dos homossexuais, da abertura à comunhão dos divorciados recasados, do acordo com a China... Francisco pensa durante uns segundos e responde: “Não diria a verdade e insultaria a sua inteligência, se dissesse que elas te deixam bem. Não agradam a ninguém, especialmente quando são bofetadas na cara, quando fazem mal se são ditas de má-fé e com malvadez. Mas com a mesma convicção lhe digo que as críticas podem ser construtivas, e então assumo-as totalmente, porque a crítica leva a examinar-me, a fazer um exame de consciência, a perguntar-me se errei, em quê e porquê errei, se fiz bem, se fiz mal, se podia fazer melhor. O Papa escuta todas as críticas e depois faz o discernimento, discernimento que é a linha-guia do meu percurso, sobre tudo, sobre todos. E aqui — continuou — seria importante uma comunicação honesta para descrever a verdade sobre o que está a acontecer no interior da Igreja. É verdade, portanto, que, se na crítica devo encontrar inspiração para fazer melhor, não posso, por outro lado, deixar-me arrastar por tudo o que de pouco positivo escrevem sobre o Papa.”


O jornalista comenta que hoje o maior ataque dos inimigos figadais de Francisco é preparar um sucessor contrário. Eu, pessoalmente, penso que não é possível voltar atrás em relação a Francisco. Porque as pessoas gostaram do seu estilo, dos seus gestos, da sua proximidade às pessoas, da sua proximidade ao Evangelho... E que pensa Francisco sobre a sucessão? “Também eu penso naquele que virá depois de mim, sou o primeiro a falar disso. Recentemente, submeti-me a exames médicos de rotina, os médicos disseram-me que um deles podia fazer-se a cada cinco anos ou anualmente, eles inclinavam-se para que fosse a cada cinco anos, eu disse: façamo-lo ano a ano, nunca se sabe.” Aqui, o jornalista observa: desta vez o sorriso foi mais generoso.


Seja como for, a pergunta é inevitável: E que futuro para a Igreja? Francisco conta uma história que lhe desagradou: “Soube de um bispo que afirmou que, com esta pandemia, as pessoas “desabituaram-se” — foi esta a palavra — de ir à igreja, que as pessoas não voltarão a ajoelhar-se diante de um crucifixo ou a receber a comunhão. Eu digo que se esta “gente”, como lhe chama o bispo, ia à igreja por hábito, então é melhor que fique em casa. É o Espírito Santo que chama a gente. Talvez após esta dura provação, com estas novas dificuldades, com o sofrimento que entra nas casas, os fiéis sejam mais verdadeiros, mais autênticos. Acredite em mim: vai ser assim.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 14 NOV 2020

O PAPA FRANCISCO CONFESSA-SE. 1

 

1. Francisco é o Papa que mais entrevistas deu. É claro que, ao conceder entrevistas a grandes meios de comunicação social mundiais, acaba por falar mais directa e espontaneamente de temas que nem sequer apareceriam se se mantivesse nos pronunciamentos formais de homilias e documentos oficiais. De facto, os jornalistas são curiosos e fazem perguntas que o grande público também gostaria de fazer.


Acaba de ser este o caso com uma longa entrevista concedida ao director da agência italiana AdnKronos, Gian Marco Chiocci. Concedida na sequência e no contexto da destituição do cardeal Angelo Becciu, acusado de ter desviado fundos normalmente destinados aos pobres, para beneficiar a sua família, Francisco declara que a corrupção é “um mal antigo que se transmite e se transforma nos séculos”. Na Igreja, “a corrupção é uma história cíclica, repete-se, depois vem alguém que limpa e põe em ordem, mas depois recomeça-se, na expectativa que chegue outro  para pôr fim a esta degeneração.” Numa Igreja para os pobres, mais missionária, não há lugar para quem enriquece e faz enriquecer o seu círculo, vestindo indignamente a batina. “A Igreja é e permanece forte, mas o tema da corrupção é um problema profundo, que se perde nos séculos. No início do meu pontificado fui ao encontro de Bento XVI. Ao passar-me a ‘pasta’, entregou-me uma caixa grande, dizendo: ‘Está tudo aí dentro, estão os procedimentos com as situações mais difíceis, eu cheguei até aqui, afastei estas pessoas, e agora... cabe a ti.’ E eu não fiz mais do que recolher o testemunho do Papa Bento, continuei a sua obra.”


Neste contexto, e querendo desfazer dúvidas e insinuações, Francisco refere-se ao antecessor como “um pai e um irmão, escrevo-lhe por carta ‘filialmente e fraternalmente’. Vou ao seu encontro muitas vezes; se ultimamente o vejo menos é porque não quero cansá-lo. A relação é verdadeiramente boa, muito boa, concordamos sobre o que deve ser feito. Bento é um homem bom, é a santidade feita pessoa. Entre nós não há problemas, depois cada um pode dizer e pensar o que quiser. Pense nisto: até chegaram a dizer que tínhamos discutido, eu e Bento, sobre que túmulo cabia a mim e qual a ele.”


De volta à corrupção, refere o famoso bispo Santo Ambrósio: “A Igreja foi sempre uma ‘casta meretrix’, uma casta meretriz, uma pecadora. Melhor: uma parte dela, porque a grande maioria vai no sentido contrário, segue no caminho justo. Mas é inegável que personagens de vários géneros e importância, eclesiásticos e tantos leigos amigos fingidos da Igreja contribuíram para dissipar o património móvel e imóvel,  não do Vaticano, mas dos fiéis.”


A situação quanto à opacidade da gestão das finanças do Vaticano, ao óbolo de São Pedro, à imprudência de certos investimentos, às actividades pouco caritativas de alguns pastores é mais grave do que suporia. Para “extirpar a erva daninha da corrupção não há estratégias particulares, o esquema é banal, simples, andar em frente e não parar, é preciso dar passos pequenos, mas concretos. Para chegar aos resultados de hoje partimos de uma reunião realizada há cinco anos sobre como actualizar o sistema judicial, depois com as primeiras investigações tive de remover posições e resistências, escavou-se nas finanças, tivemos novos directores no IOR (Instituto para as Obras de Religião, normalmente conhecido como Banco do Vaticano), numa palavra, tive de mudar muitas coisas, e muitas rapidamente vão mudar.”


E aparece a avó a dar bons conselhos: “Ela, que não era teóloga, dizia-nos sempre, quando éramos crianças: o diabo entra pelos bolsos. Tinha razão”.


E certamente não será inocentemente que Francisco venha lembrar a história da velhinha que encontrou numa imensa favela de Buenos Aires no dia em que João Paulo II morreu. Na Missa, rezou pelo Papa defunto. “Terminada a celebração, aproximou-se uma mulher muito, muito pobre, queria saber como é que se elege o Papa, falei-lhe do fumo branco, dos cardeais, do conclave. Ela interrompeu-me e disse: ouça, Bergoglio, quando for Papa, lembre-se de que a primeira coisa que tem que fazer é comprar um cãozinho. Respondi-lhe que dificilmente seria eleito Papa, mas, mesmo assim, perguntei-lhe porque é que devia arranjar um cão. ‘Porque sempre que vá comer, respondeu, dê-lhe primeiro um bocadinho e, se ele continuar bem, então continue o senhor também a comer.” O que é que levou Francisco a contar a história? É assim que está o Vaticano? Francisco imediatamente: “Tratava-se obviamente de um exagero. Mas exprimia a ideia que o Povo de Deus, os pobres entre os mais pobres no mundo, tinha da Casa do Senhor atravessada por feridas profundas, lutas intestinas, desfalques.” Terá sido só por simplicidade e porque gosta de estar com as pessoas que Francisco não quis ficar no Palácio Apostólico, preferindo vir para Santa Marta?


O Papa Francisco terá medo? A resposta desta vez é mais ponderada, confessa o jornalista, o silêncio parece nunca mais ter fim, parece que à espera de encontrar as palavras justas. “E porque havia de ter?”, pergunta. “Não temo consequências contra mim, não temo nada, ajo em nome e por conta de nosso Senhor. Sou um inconsciente? Falta-me um pouco de prudência? Não sei o que dizer, são o instinto e o Espírito Santo que me guiam, guia-me o amor do meu povo maravilhoso que segue Jesus Cristo. E depois rezo, rezo muito, todos nós neste momento tão difícil devemos rezar muito por tudo o que está a acontecer no mundo.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 7 NOV 2020

OS PRAZERES DA COMIDA E DO SEXO: “DIVINOS”

 

1. Quando se fala da Igreja e do sexo, entra-se numa história muito complexa e pouco edificante.


Significativamente, não é com a Bíblia que há dificuldades. De facto, no Antigo Testamento, lê-se, logo no primeiro livro, o Génesis, que Deus criou também a sexualidade e viu que era boa. Do mesmo Antigo Testamento faz parte um dos livros mais belos a cantar o amor erótico: o Cântico dos Cânticos.


Já no Novo Testamento, Jesus raramente se referiu ao sexo, aliás nunca por iniciativa própria, mas para responder a perguntas que lhe foram feitas a propósito do divórcio e para defender a mulher.


2. Factor decisivo para o envenenamento da relação foi a gnose, a primeira grande heresia com que o cristianismo teve de confrontar-se e que, desgraçadamente, não terminou. Segundo a gnose ou gnosticismo, a salvação não se alcança pela fé, mas pelo conhecimento, que é secreto e, em última análise, acessível apenas aos iniciados. Elemento essencial desta doutrina é que o Deus do Antigo Testamento, que é o criador do mundo, não é o mesmo que o Pai de Jesus Cristo. Este mundo, que é o mundo material, procede de uma queda e é mau. Os membros desta heresia insistiam concretamente, na continuação do platonismo, num dualismo radical de alma e corpo, matéria e espírito, sendo o corpo apenas uma espécie de “contentor” da alma: necessário, mas sempre inferior e indesejável.


A gnose pretendia essencialmente explicar a existência do mal no mundo. O maniqueísmo situa-se neste mesmo quadro de compreensão, distinguindo no fundamento de tudo um duplo princípio, um princípio do bem e um princípio do mal; a História é uma luta entre estes dois princípios, com a esperança do triunfo final do Bem. Santo Agostinho era maniqueu, mas, ao tornar-se cristão, teve de abandonar o maniqueísmo, pois, segundo o cristianismo, Deus é o único princípio e fundamento de tudo e tudo fez bem. Ficava um  problema gigantesco: como explicar o mal no mundo, se Deus é bom? Santo Agostinho, a partir de uma experiência pessoal negativa da sexualidade e de uma exegese errada — ele não sabia grego e, por isso, seguiu a tradução latina de um passo célebre da Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo V, versículo 12: Adão, “no qual” todos pecaram, quando o original grego diz “porque” todos pecaram —, apresentou como solução para o problema do mal a doutrina do pecado original, embora os Evangelhos não falem dele. O que é facto é que, com esta doutrina, Santo Agostinho, que é, por outro lado, um dos maiores génios da Humanidade, envenenou a sexualidade e tudo quanto de um modo ou outro com ela se relaciona. De facto, esse pecado foi entendido não como o primeiro de todos os pecados, porque todos os seres humanos são pecadores, mas como um pecado herdado de Adão e transmitido por geração, portanto, no acto sexual.


A lei do celibato obrigatório para o clero e sobretudo a misoginia têm também aqui assento. As mulheres são, por um lado, fonte da tentação e, por outro, devem ter filhos, mas sabendo que durante nove meses transportam consigo o pecado. A confissão dos pecados ficou quase exclusivamente centrada no sexo, de tal modo que o confessionário em vez de ser o lugar da libertação se transformou na realidade em câmara de tortura. Segundo o historiador Guy Bechtel na sua obra A carne, o diabo e o confessor, desde o século XVIII muitos terão iniciado o abandono da Igreja, precisamente porque a confissão, patologicamente centrada no pecado sexual, esmiuçado até à exaustão, começou a ser sentida como invasão indevida da intimidade de cada um, ferindo inclusivamente os direitos humanos, de que se começava a ter uma consciência mais viva.


3. Foi neste contexto que provocaram a merecida atenção da opinião pública mundial declarações do Papa Francisco sobre o tema do prazer da comida e do sexo, que vem de Deus, feitas a Carlo Petrini, um jornalista e gastrónomo italiano, e publicadas recentemente no seu livro Terrafutura. Dialoghi con Papa Francesco sull’ecologia integrale (Terra futura. Diálogos com o Papa Francisco sobre a ecologia integral).


O jornalista provocou o Papa, dizendo-lhe que “a Igreja católica sempre anulou o prazer, como se fosse algo a evitar”. Francisco não está de acordo e respondeu que “a Igreja condenou os prazeres desumanos, grosseiros e vulgares, mas sempre aceitou os prazeres humanos, sóbrios, morais”. Francisco opõe-se a “uma moralidade beata, fanática”, que rejeita o prazer. Essa rejeição existiu na história da Igreja, mas constitui “uma má interpretação da mensagem cristã” e “causou enormes danos, que ainda hoje se fazem sentir fortemente em alguns casos.” E, para que não houvesse equívocos, declarou textualmente: ”O prazer vem directamente de Deus. Não é católico, não é cristão ou outra coisa, é simplesmente divino. O prazer de comer serve para que ao comer se mantenha uma boa saúde, tal como o prazer sexual existe para tornar o amor mais belo e garantir a continuação da espécie.”


4. Não nos vivemos dualisticamente: de um lado o corpo, do outro a alma; mesmo se em tensão, o ser humano é uma unidade corpóreo-espiritual. Dada a complexidade do Homem, que pode até levar a confundir a felicidade com a soma de prazeres e a anomia, não é fácil levar uma vida humana na dignidade livre e na liberdade com dignidade para todos. Mas saúda-se a intervenção de Francisco, abençoando o prazer, que não pode ser nem tabu nem ídolo, um deus falso e enganador. “Simplesmente divino”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 SET 2020

DESCONFINAR A IGREJA. 4

 

1. Também se aplica à Igreja, e compreende-se que de modo particular à Igreja, tantas são as expectativas em relação a ela: dá-se eco, sobretudo nos média, ao que é negativo, aos erros, crimes, escândalos... Quem pode negar tudo isso? Mas o que a Igreja fez e faz de positivo é mais: promoção das pessoas, combates pela sua dignificação, infindáveis iniciativas de caridade e cultura... Também agora, nesta calamidade pandémica. Quantos políticos portugueses, se quiserem ser honestos, terão de estar de acordo com as palavras do alcaide de Madrid, José Luis Martínez Almeida: “A acção da Igreja foi fundamental, como o é na vida quotidiana.”

 

Neste contexto, perdoe-se esta nota: quando a ecologia tem de ser um elemento essencial na viragem, o Vaticano dá o exemplo: instalou no edifício da Aula Paulo VI painéis solares, promove o uso de veículos eléctricos, eliminou o uso de pesticidas tóxicos nos jardins...

 

Mas a dívida maior para com a Igreja, apesar da e no meio da sua história de miséria, é que através dela o Evangelho foi sendo anunciado, e o Evangelho está na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa e foi fermento que levou à proclamação dos Direitos Humanos.

 

2. A ameaça maior da Igreja é o poder e os conluios com os poderes. Uma demonstração simples deste perigo está em que, desgraçadamente, quando se fala da Igreja, no que se pensa é no Papa, nos cardeais, nos bispos, nos padres, nos monsenhores..., tudo aquilo em que nem Jesus nem os primeiros discípulos pensariam.

 

O núcleo do cristianismo é a mensagem de Jesus, o Evangelho: Deus é Pai-Mãe de todos e quer a alegria e a salvação de todos. A Igreja mundial é a comunidade de comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e congregadas por essa mensagem, na fé, na esperança e praticando o amor, a justiça, a paz.  Evidentemente, é necessário um mínimo de organização, mas a pergunta é: essa organização tem de ser piramidal, hierárquica, machista, gerontocrática, centralizadora?

 

Francisco sabe que este é um combate decisivo para o futuro da Igreja. Ele é cristão, franciscano, mas é também jesuíta, não é anarquista, e sabe que alguma organização se impõe. Daí, o seu combate permanente, sem tréguas, contra o clericalismo, o carreirismo, a corte, que são “a peste da Igreja”, e o esforço para que se perceba que o poder só vale enquanto serviço, e a sua abertura a uma Igreja verdadeiramente sinodal, isto é, uma Igreja na qual todos caminham juntos, uns com os outros e todos com Jesus, ao serviço da Humanidade. O que ele peleja para que acabem os bispos-príncipes e para renovar a Cúria e o Banco do Vaticano! Sem desânimo, apesar de saber que, como disse num dos discursos à Cúria, “é mais difícil reformar a Cúria do que limpar a esfinge do Egipto com uma escova de dentes.”

 

3. Na “nova normalidade”, a Igreja necessita, em primeiro lugar, de que todos os seus membros renovem o essencial: a fé. Neste sentido, significativamente, apareceu agora uma nova versão do “Directório para a catequese”, e a mensagem essencial é que o centro não está nas doutrinas, mas na pessoa de Jesus, e, por isso, o decisivo é que “cada pessoa descubra que vale a pena acreditar” e conheça o amor cristão. Isso impõe, certamente, estar atento também à utilização das novas tecnologias e ser uma presença evangelizadora no continente digital.

 

A linguagem tem de adaptar-se. Por exemplo, não se pode continuar a falar do pecado original, como se fazia, e é preciso perguntar: que significa hoje “ressurreição da carne”, “desceu aos infernos”, “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”? Não se pode ficar imóvel nos rituais, com gestos e sinais que já nada significam, o que implica que urge a adaptação da liturgia e de toda a linguagem da fé às diferentes culturas, com o que se chama Inculturação do Evangelho. E a simplicidade tem de ser lei: pense-se, por exemplo, naquele ritual do tira e põe do solidéu, o mesmo acontecendo com a mitra. Sobre esta, falou Santo António, num sermão do Advento (devo a citação a Sofia Nunes): “Cairão os unicórnios, os imperadores e reis deste mundo e os touros, os bispos mitrados, que têm na cabeça dois cornos como se fossem touros.”

 

A Igreja tem de continuar a fomentar o ecumenismo — felizmente, o Vaticano põe a questão de revogar a excomunhão a Lutero — e o diálogo inter-religioso.

 

Com que fundamentos justificar a imposição do celibato obrigatório ou a discriminação das mulheres? E não precisam de revisão os ministérios na Igreja?

 

Sobre a Igreja sinodal, que é o tema do próximo Sínodo em Outubro de 2022, o sociólogo J. Elzo tem uma figuração apelativa: “Uma Igreja em rede, à maneira de um gigantesco arquipélago que cubra a face da Terra, com diferentes nós em diferentes partes do mundo, inter-relacionados e todos religados a um nó central, que não centralizador, que, na actualidade, está no Vaticano. Aí ou noutras partes do planeta, todos os anos se reuniria uma representação universal de bispos, padres, religiosas e religiosos, leigos (homens e mulheres), sob a presidência do Papa, para debater a situação da Igreja no mundo e adoptar as decisões pertinentes”, também no que se refere aos problemas da Humanidade.

 

P.S. Como anunciou o Presidente turco, R. Erdogan, Santa Sofia, em Istambul, passa a mesquita. O Papa Francisco comentou: “O meu pensamento dirige-se para Istambul. Penso em Santa Sofia e sinto muita dor”. Ao acontecimento e à sua problemática dedicarei a próxima crónica.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 JUL 2020