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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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APÊNDICE C.

COUTO (MIA)

 

Mia Couto tem entusiasmo por coisas novas, praticando o bom método de "rasgar horizontes". Recordemos o seu poema sobre o curso do tempo. O jogo das palavras permite-nos compreender melhor a substância do tema. «Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia». De facto, que é o andar do tempo senão a compreensão de que só entendemos as raízes, se percebermos o que a elas nos liga? E é esta relação com as raízes que Mia Couto nos transmite. Ao ver as palavras do avesso podemos perceber melhor o que elas representam.

“Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho”. Ah! como é difícil a relação com o sonho. Terra Sonâmbula (1992) tem como pano de fundo os tempos da guerra em Moçambique, da qual se traça um quadro de um realismo forte e brutal. Dentro deste cenário de pesadelo movimentam-se personagens de uma profunda humanidade, por vezes com uma dimensão mágica e mítica, todos vagueando pela terra destroçada, entre o desespero mais pungente e uma esperança que se recusa a morrer. Mia Couto tratou do tema de Terra Sonâmbula de um modo admirável. A crítica literária considera esta, sem dúvida, como uma das melhores obras literárias escritas nos últimos anos em língua portuguesa, sendo considerado como um dos melhores livros africanos do século XX.

Em "O Mapeador de Ausências" (2020), há um poeta “que vem à procura da sua infância" e que "vai começar a perceber que aquilo que é presente para ele no sentido temporal, nasce da ausência de alguém". Vivemos e depois deixamos o nosso espaço e o tempo. Essa ausência mais não representa do que uma continuidade de vida. E Mia Couto recorda o pai - o jornalista e poeta Fernando Leite Couto - entre outras figuras que, apesar de ausentes, permanecem vivas nas suas memórias. A obra é lançada numa altura em que Moçambique é palco de novos confrontos armados, no centro e norte, apelando a que as histórias das vítimas não fiquem por contar. "Acho importante que a informação transmita não só relatórios sobre as agressões, os ataques feitos por terroristas, mas construa a história das pessoas que estão a ser sacrificadas e não podem ser esquecidas".

Mia Couto disse: «Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai quem me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez. Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”

Mia Couto é um "escritor da terra", escreve e descreve as próprias raízes do mundo, explorando a natureza humana na sua relação íntima e umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular perceção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada (como o queixa-andar) como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de mundos fantásticos e em certa medida surrealistas, subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos - o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente contador de histórias. É o único escritor africano membro correspondente da Academia Brasileira de Letras (ABL), eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa. Atualmente Mia Couto é o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal. As suas obras são traduzidas e publicadas em 24 países.

O encontro com João Guimarães Rosa foi para ele um abalo sísmico. Em “A Terceira Margem”, Mia Couto observou que o escritor mineiro de “Grande Sertão” tornava a oralidade do sertão no modo de se exprimir literariamente, e Mia Couto viu aí uma aproximação natural e necessária. E pode dizer-se que essa familiaridade é marcante na cultura da língua portuguesa da contemporaneidade. «Os livros de João Guimarães Rosa atiravam-me para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num analfabeto seletivo. Vimos isso já. Para entrar naqueles textos devia fazer uso de um outro ato que não é “ler”, mas que pede um verbo que ainda não tem nome. Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo. Aquela era uma linguagem em estado de transe, como no caso dos médiuns nas cerimónias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exatamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar. Ele prepara a possessão pelos espíritos. Ele cria o momento religioso em que emigra o seu próprio corpo». E neste folhetim de fantasmas temos de voltar atrás para entender Diadorim, mas também Binmarder do velho Bernardim e as centenas de personagens que já nos ocuparam neste tempo inesgotável.

«Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei como um rio aguarda a cheia».

De facto, ao ver as palavras às avessas percebemos melhor o que representam.

 

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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APÊNDICE B.

BARBELA (A TORRE DA)

 

Quando iniciámos este folhetim, invocámos Ruben A., como eterno fazedor de fantasmas. “A Torre da Barbela” é o melhor romance português sobre fantasmas. Falemos, pois, do seu Autor. "Sedutor fascinante de inteligência e sensibilidade", chamou-lhe Mário Soares. Em bom rigor, a biografia de Ruben Andresen Leitão é digna de Galsworthy. E a sua lógica, um exercício de G. K. Chesterton. Sophia de Mello Breyner Andresen, sua prima direita, recorda o Porto, o Campo Alegre, esse lugar olímpico, com uma inefável ternura: "para uma criança, aquela casa e aquele enorme jardim com os altíssimos plátanos, as tílias, o carvalho, ao lado do ténis, as camélias, o roseiral, o pomar, as adegas, o pinhal, os morangos selvagens, eram um mundo, um reino que em nós permanece como uma inesgotável memória inspiradora". E essa saga da Quinta do Campo Alegre, porque nitidamente romanesca, teve também o dramático de um tiro de pistolão, do fio de armas de fogo mandado instalar por Dona Joana Andresen contra os ladrões, que atingiu o irrequieto Rubinho, deixando-o no território incerto dos mártires. Até que, em março de 1937, faleceu a coluna dorsal daquele mundo, a avó Joana, a "Velha Máquina", que deixou a Ruben, como testamento, a "ânsia desmedida de partir, de romper horizontes".

Ruben é o "sportsman", a promessa do golfe e do "lawn-tennis", que recorda as lições de Adolfo Casais Monteiro. Nas vésperas da Guerra, o jovem incrédulo, em viagem pelo território do drama, pergunta-se: "Guerra?! Pensava eu: que coisa estranha! Guerra? Este mundo quer a Guerra? Para que é que servem os homens inteligentes?". A verdade é que tudo se precipitaria. Agostinho da Silva, o sábio visionário, torna-se grande referência para Ruben… "Trazia livros, deixava-os ficar, como quem deixa ficar maço de cigarros para tentar o vício"… E o vício entrou. Um dia, da boca de Manuel Torre do Valle, "o mais notável tipo da minha geração", ouve dois poemas de Fernando Pessoa, publicados na "Presença", e rende-se a quem passa a considerar como o maior poeta português. E descobre Proust. Novo deslumbramento. Ruben faz admissão a Direito e a Letras. Ao saber da entrada no Convento de Jesus, não tem dúvidas, fica em Histórico-Filosóficas. Mas aí sofrerá o julgamento absurdo de um tal Matos Romão, lente de Psicologia, que o obriga a rumar a Coimbra. "Lisboa fica de luto sem o Rubirosa" e os amigos oferecem-lhe um jantar de despedida nos "Anarquistas"… Torre do Valle está na sombra, mas não aparece. É esse o tempo das grandes leituras ("Eça de fio a pavio, através do António Seabra"), mas sobretudo o do grande arrebatamento pelos modernistas - Rimbaud, Éluard, Sá-Carneiro, Almada… Em Coimbra, funda a primeira República supra-realista em homenagem a Dali, "Babaou - une maison surréaliste".

Tem uma curiosidade intelectual insaciável. Termina o curso. Em Pascal procura "desvendar a luz no campo das trevas" - porque "quando encontramos as 'razões do coração' podemos ter a certeza que dentro de nós qualquer coisa existe que nos transcende". Começa como professor de francês. Ensina, entusiasma os alunos, lê e sonha. Mas vem-lhe a vontade de emigrar. "Emigrava com a saudade de um país geograficamente encantador, inveja dos estrangeiros, mas que à escala humana só com uma lente é possível desvendar a inteligência das coisas, do milagre". A Inglaterra, com que se relaciona, está destruída pela guerra. No King's College conhece Charles Boxer, de quem se torna amigo. O entusiasmo e a sua cultura causam deslumbramento. De Fernão Lopes a Fernando Pessoa, passando pela Geração de 70, Ruben reflete sobre o destino de Portugal… Entretanto, morrera Manuel Torre do Valle, vítima de difteria, na flor da idade e no auge da esperança. É uma perda irreparável. Nas margens do Tamisa, cultiva o inglês, adapta-se ao frio, mata saudades da Pátria, indo buscar ao Aeroporto o seu primo Ruy Leitão e Menez num esplendoroso Rolls-Royce alugado. D. Pedro V serve-lhe de pretexto para frequentar o Castelo de Windsor. Em cada dia que passava mais admirava o reformador-tipo, o nosso primeiro moderno. Ouviam-se as suas "Peregrinações Inglesas" na BBC. Visita Ruy e Menez em Washington, lê Dickens, Dostoievski e Eça, nas margens do Potomac e cada vez mais se convence de que Shakespeare é o primeiríssimo surrealista. Por coincidência, encontra-se com T.S. Eliot… Em 1949, nasce o nome Ruben A., com o primeiro volume das "Páginas" da Coimbra Editora. Mas o segundo volume (1950), caído nas mãos do ditador, vai determinar a ordem para regressar… Para Salazar, "o livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós". Os amigos, os colegas ingleses, a gente de bem mexe-se. O ditador retrocede: "o maluco do homem tem habilidade e competência para o cargo". E fica. Mas o mal estava feito. Ruben parte em 1952: "restava-me arrumar as malas, despedir-me. (…) Paga-se muito caro por ter ideias".

Ruben vê-se desempregado. Refugia-se na Embaixada do Brasil, na publicação "Artes e Letras", que coincide com a renovação de Juscelino Kubitschek e com o período rico de abertura e de pujança democrática. O Brasil contemporâneo de Guimarães Rosa é o grande repositório da cultura da língua. Em 1954 sai o "Caranguejo", de que Eduardo Lourenço dirá: "não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana". Tem uma paixão forte pelo património cultural português. António Quadros chamar-lhe-á por brincadeira Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, o médico e o monstro - "mas a verdade é que me acuso por ter descurado completamente o Dr. Jeckyl, em exclusivo favor dos imaginosos textos impressionistas, memorialistas ou romanescos do Mr. Hyde, o Monstro, cuja leitura, além de tudo o mais, era divertidíssima".

Escreve das melhores memórias autobiográficas da nossa literatura - "O Mundo à Minha Procura". E nasce "A Torre da Barbela" – romance do absurdo genial nascido em Esteiró."A família Barbela identifica-se com a história de Portugal, com os oito séculos da história de Portugal. Os homens mais notáveis do meu romance (confessa o autor) têm, como os da história de Portugal, as suas estátuas. O que dou eu aos Barbelas? Vida. De noite estão vivos, como qualquer de nós, têm os mesmos problemas e mais um, este irremediável: sabem que vão morrer ao nascer do Sol". Ruben tinha horror à mediocridade. No dizer de Pina Martins, severo julgador, tinha "entusiasmo por coisas novas", insistindo em "rasgar horizontes".

 

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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APÊNDICE A.

ALMEIDA (GERMANO)

 

O Folhetim de Verão de 2023 está a chegar ao fim. A grande heroína do ano está a ser Carolina Michaelis de Vasconcelos com milhares de gostos e sobretudo o fantástico reconhecimento da sua importância. É uma justíssima homenagem às mulheres. E Joaninha dos olhos verdes está na memória de todos. Mas há fantasmas que ainda estão na fila para entrar. E a verdade é que até ao dia 31 de agosto ainda muito vai acontecer. Já falámos de Cabo Verde e da “Claridade”, mas da Macaronésia ainda fica algo para acrescentar. Vitorino Nemésio foi acarinhado por todos, mas o Atlântico, que esteve logo na letra A não pode ser esquecido.

Hoje, voltamos às ilhas. Germano Almeida é o biógrafo de Cabo Verde. Não podemos compreender a vitalidade cultural do arquipélago e do país sem ler hoje o autor de Do Monte Cara vê-se o Mundo. É verdade que Baltazar Lopes é uma espécie de patriarca da “caboverdianidade” ou que Corsino Fortes é um poeta que sente como ninguém a identidade dessa extraordinária cultura da Macaronésia do Sul, mas Germano busca a naturalidade, a alegria de viver, a ironia, a arte de contar, a diversidade de tipos populares e a sensualidade dos corpos e das relações humanas. Não esqueço o dia que nos encontrámos na Praia, numa iniciativa do Centro Nacional de Cultura, e falámos dum tempo que estava para vir, em que de um modo natural a literatura cabo-verdiana seria reconhecida como exemplo maior na diversidade da língua portuguesa. Esse tempo chegou primeiro com o reconhecimento de Arménio Vieira no Prémio Camões e depois com o próprio Germano Almeida. A vitalidade cultural de Cabo Verde augurava essa evolução como natural. Desde O Testamento do Sr. Napomuceno da Silva Araújo não há qualquer dúvida sobre a qualidade excecional da obra e do autor. E em imaginação, percorremos o caminho iniciático do protagonista. “Atravessou a Rua de Lisboa, o Largo do Palácio e subiu ao Forte de Cónego trotando atrás de Jovita e extasiando-se com a maravilha que era o Mindelo, nunca vira tanta gente junta e sentia-se envergonhado de estar descalço atrás daquela carregadeira que calçava sandálias de plástico. Naquele dia não saiu de casa, temeroso de se perder na cidade enorme ou ser atacado por bandidos que sabia existirem e perseguirem as pessoas de dia ou de noite…”.

Ah, o Mindelo, cidade de história conturbada que Germano Almeida aprendeu a conhecer de trás para a frente. S. Vicente foi povoada tardiamente. Tempo houve em que os piratas usavam a baía do Porto Grande como local de descanso, antes de avançarem para temíveis investidas. O povoamento foi lento, vindo de Santo Antão e S. Nicolau. E foi a memória da gloriosa revolução liberal, em que Garrett e Herculano estavam entre os bravos de Pampelido, que deu o nome à extraordinária cidade que o escritor ama. Aqui acabou a escravatura. E essa invocação do Mindelo mítico é o melhor elogio da liberdade, como recusa a subalternização ou menoridade. E assim se tornou centro de irradiação de uma especial riqueza cultural que aproveitou as potencialidades do entreposto mercantil. Em Do Monte Cara vê-se o Mundo a personagem viva é a própria cidade do Mindelo e a sua gente. O velho Pepe é o cicerone, funcionando como um verdadeiro revelador e encenador de tudo o que vai acontecer. Júlia, Guida, D. Aurora, a Professora Ângela, o Trampinha – todos ilustram uma realidade humana muito rica, com uma ironia inesquecível, sob o olhar divertido e sábio do Monte Cara, em frente à cidade. E eis-nos embrenhados no dédalo que conduz ao Fortim d’El-Rei, à Alfândega Velha ou a Praça Nova, vibrante ao som do funaná. Aqui Nhô Baltas, Manuel Lopes e Jorge Barbosa criaram a “Claridade” – onde Chiquinho começou a ser publicado, com a originalidade cabo-verdiana, “excluindo os portugueses de toda e qualquer discussão referente ao destino das ilhas e dos homens”, como disse Alfredo Margarido.

O percurso de Germano Almeida começou na ilha da Boa Vista, onde aprendeu a viver entre a ruralidade e a cultura urbana. Em Regresso ao Paraíso disse que “da Boa Vista da minha infância pouco mais já resta que o prazer de usar o tempo. É uma noção do tempo em que o hoje e o amanhã, o agora e o mais daqui a bocado, continuam significando a mesmíssima coisa. E quando para lá ia de férias ia sobretudo em busca desse tempo sem relógio, que é nosso está por nossa conta”. O futuro escritor fez a tropa em Angola, numa zona de confronto. Com vinte cinco anos, graças às qualidades da sua escrita consegue uma providencial bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian que lhe permitiu estudar Direito em Lisboa. Em 1977 regressa à pátria e em 1983 funda com Leão Lopes e Rui Figueiredo a revista “Ponto e Vírgula” – onde publicou contos com o pseudónimo de Romualdo Cruz… Seguiu-se uma entrada natural no mundo literário, com obras reveladoras duma originalíssima maneira de usar a língua portuguesa de Cabo Verde, na tradição dos seus melhores compatriotas. A Ilha Fantástica é constituída por um conjunto de textos, saídos na revista “Ponto e Vírgula”, essenciais para a compreensão de uma cultura, onde o picaresco se associa à apetência de compreender e revelar sentimentos. O Fiel Defunto – confirmou a capacidade para privilegiar a ideia do “divertimento” com as pequenas coisas… E alguém pergunta ao “fiel defunto”: “mas deves estar a fazer alguma coisa para assim te divertires durante tanto tempo”. “Sim, respondia galhofeiro, ouço música, navego na internet, espreito o facebook, onde aprendo muito sobre as pessoas em geral e as pequenas vaidades que lhes enchem a alma, leio livros, falo com amigos, faço má-língua, digo mal das criaturas de quem não gosto, cuido das plantas do meu jardim que nunca estiveram tão bonitas de tão bem tratadas” … E assim se confessa imune aos vícios, incapaz de escrever o que não tem para dizer e apenas disponível para deixar passar o tempo, com uma cana de pesca na mão, “sem sequer desejar apanhar um peixe para não ter a maçada de o transportar para casa” … quanto à língua portuguesa, Germano diz ser indispensável um ensino rigoroso do crioulo e o português deve ser muito bem aprendido como língua segunda. A alfabetização em crioulo obriga a cuidados especiais, para evitar barreiras entre ilhas ou comunidades. E é fundamental que o português não seja sentido como língua estranha. Daí Germano Almeida insistir “na necessidade de nós em Cabo Verde dominarmos o português até mais que os portugueses. Com o crioulo não vamos longe, não saímos das ilhas. Com o português vamos a toda a parte".

 

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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X.   XAVIER (S. FRANCISCO) E “PEREGRINAÇÃO”

 

Francisco de Xavier sentiu-se abalado pela conquista do Reino de Navarra por Castela. Então o rei de Portugal D. João III pediu ao Papa Paulo III para que este lhe enviasse missionários para os territórios da Índia. D. João III é aconselhado pelo diretor do Colégio de Santa Bárbara, Diogo de Gouveia, a chamar para os Reino de Portugal jovens da Companhia de Jesus. Inácio de Loyola escolhe Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilla para essa missão, mas este adoece e Francisco é nomeado seu substituto, chegando a Portugal em 1540. Parte no ano seguinte, a 7 de abril, a bordo da nau S. Diogo, a nau capitânia das cinco naus da frota comandada por Martim Afonso de Sousa, que ia que tomar posse do cargo de governador na Índia.

Em agosto ancoraram na ilha de Moçambique e depois em Melinde. Durante a viagem, muito atribulada pela difusão do escorbuto na tripulação, as qualidades e o carisma de Francisco Xavier foram evidentes. A nau Santiago chegou a Goa a 6 de maio de 1542. O trabalho de Francisco de Xavier inauguraria mudanças na Indonésia, tendo-se tornado conhecido como o “Apóstolo das Índias” quando, entre 1546 e 1547, trabalhou nas Molucas. Depois de partir da região já havia entre 50 e 60 mil católicos. Em dezembro de 1547, em Malaca, Francisco de Xavier conhece Fernão Mendes Pinto, que regressava do Japão e trazia consigo um nobre japonês de nome Angiró que ouvira falar de Francisco em 1545 e viajara de Cagoxima para Malaca com o propósito de o conhecer. Angiró, acusado de um crime, fugira do Japão. Abriu o seu coração a Francisco, confessando-lhe a vida que levara até ali, mas também os costumes e cultura da sua terra natal. Angiró foi batizado por Francisco Xavier e adotou o nome português de Paulo de Santa Fé. Como antigo samurai, tornar-se-ia um valiosíssimo mediador e tradutor na missão ao Japão. Francisco teve um forte impacto no Japão, tendo sido o primeiro jesuíta nesse encargo. Os japoneses não se revelaram ouvintes fáceis. Muitos eram budistas e Francisco Xavier teve dificuldade em explicar-lhes o conceito de Deus criador de tudo o que existe e o mesmo relativamente ao inferno. Apesar das diferenças religiosas, Francisco Xavier terá sentido que os japoneses eram um povo bom, como os povos europeus, e que por isso poderiam ser convertidos. Morreu em Sanchoão (1552) às portas da China. Homem santo de três religiões – cristã, hindu e muçulmana – o seu corpo é venerado na Basílica do Bom Jesus de Goa, constituindo caso único na história das religiões.

A “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583) põe-nos diante uma verdadeira personagem romanesca, que assume diferentes acontecimentos e personalidades, e que descreve de um modo notabilíssimo, o que era a vida de um português no Oriente – criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da China, mercador, médico ocasional do rei do Bongo, vagabundo e embaixador -, a verdade é que isso simboliza o português do mundo. Os estudiosos sobre esse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relataram sem ler Fernão Mendes Pinto. Este é a personagem completa, que não precisa de convencer ninguém que deixa de ser quem sempre foi. O próprio título com que a obra foi publicada dá-nos a expressão plena da riqueza do relato. “Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus”. Ao ler a obra, houve entre os contemporâneos quem duvidasse dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos em que andou pela Ásia, tendo sido, na sua própria expressão, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. A escrita começou logo em 1557, com a memória bem fresca, só sendo publicada trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram da veracidade dos relatos, o autor respondeu significativamente: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”.

É memorável o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário, numa situação, em que quiseram saber novidades de Liampó, “porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito”, mas afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto. É inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia “derramador e bebedor do sangue português” e a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. “E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão…”. E lembre-se o episódio da vinda do Embaixador do Rei dos Batas. Pero de Faria fê-lo «agasalhar o mais honradamente que então foi possível». E assim «o despediu bem despachado, e satisfeito do que viera buscar, porque lhe deu ainda algumas cousas além das que lhas pedira, como foram cem panelas de pólvora, e rocas, e bombas de fogo, com que se partiu tão contente desta fortaleza, que chorando de prazer, um dia perante todos os que estavam no tabuleiro da igreja, virando-se para a porta principal dela, com as mãos levantadas, como quem falava com Deus, disse publicamente. Prometo em nome de meu Rei a ti Senhor poderoso, que com descanso e grande alegria vives assentado no tesouro das tuas riquezas que são os espíritos formados da tua vontade, que se te praz dar-nos vitória contra este tirano de Achem (…). E assim te prometo e juro com toda a firmeza de bom e leal, que meu Rei não tenha nunca outro Rei se não este grande português, que agora é senhor de Malaca». Fernão Mendes construiu, deste modo, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, que tem o seu estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». E assim a nossa cultura é inesgotavelmente peregrina!

 

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V.   VASCONCELOS (CAROLINA MICHAELIS DE)

 

Falo-vos de uma mulher excecional. Na rua da Cedofeita, na cidade do Porto, a casa dos Vasconcelos era um centro onde se reuniam os mais influentes intelectuais do seu tempo, empenhados na vida cívica e no lançamento das bases de um progresso baseado na cultura e na liberdade. A primeira mulher catedrática na Universidade portuguesa nasceu alemã. Veio para Portugal por casamento com um dos grandes intelectuais do século XIX, Joaquim de Vasconcelos, estudioso sobre musicologia, biografia, pintura portuguesa nos séculos XV e XVI, sobre os contactos portugueses com os grandes artistas europeus como Albrecht Dürer, Rafael e Van Eyck, sobre história da ourivesaria, joalharia e cerâmica portuguesas, além da bibliografia crítica da história da literatura portuguesa, sobre Francisco de Holanda, Damião de Góis, Nicolau Clenardo e Duarte Ribeiro de Macedo. No final da década de setenta, Joaquim de Vasconcelos empenhou-se na feitura da Reforma geral do Ensino das Belas-Artes em Portugal (1877-1880). Foi um dos organizadores do Museu Industrial e Comercial do Porto. Enquanto Carolina estudava a evolução da língua, Joaquim de Vasconcelos debruçava-se sobre as raízes flamengas da pintura portuguesa no século de ouro. Tudo estava em saber sobre o melhor modo de interpretar e de chegar à identidade do ser português. Joaquim de Vasconcelos foi dos primeiros a pronunciar-se sobre os painéis ditos de S. Vicente, atribuídos a Nuno Gonçalves, em artigos publicados no “Comércio do Porto” (junho de 1895). A representação do Infante D. Henrique na “Crónica dos Feitos da Guiné” de Zurara pertencente à Biblioteca Nacional de Paris permitiu-lhe fazer as primeiras identificações relativamente aos painéis, a começar pela presumível data da sua feitura.

O conhecimento da realidade portuguesa por Carolina Michaëlis enche de espanto os seus leitores. Sendo mulher afirma, com grande sensibilidade, sobriedade, o espírito científico e a exigência a importância da educação e do conhecimento. Torna-se em 1877 sócia do Instituto de Línguas Vivas de Berlim. E é impressionante a lista dos trabalhos que publica - primeiro em matéria linguística, depois no âmbito da história e da crítica literárias. Lembremos os estudos sobre o "Cancioneiro da Ajuda" e o glossário imprescindível que preparou, com enorme cuidado. A literatura portuguesa é um inesgotável campo para a sua investigação no tocante às origens da poesia peninsular. A Universidade de Friburgo reconhece o labor científico de primeira qualidade de Carolina Michaëlis de Vasconcelos e concede-lhe o grau de Doutor honoris causa. O que a jovem não conseguira em Berlim conseguia-o agora, por via honorífica, mas com indiscutível sentido de justiça. O reconhecimento nacional e internacional de Joaquim de Vasconcelos também é notável: é sócio efetivo da Gesellschaft für Musikforschung de Berlim, da Real Associação dos Arquitetos Civis e Arqueólogos Portugueses (Lisboa), sócio correspondente do Instituto Imperial Germânico de Arqueologia, sócio honorário da Academia Real de Música de Florença, sócio honorário da Sociedade Martins Sarmento (Guimarães) e sócio benemérito da Associação Industrial Portuguesa.

Em 1901, D. Carlos concede a Carolina Michaëlis o grau de oficial da Ordem de Santiago da Espada, como preito de homenagem ao labor científico, que todos continuavam a considerar como de qualidade e interesse excecionais. Em 1911, logo após a implantação da República, Carolina é nomeada professora da nova Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em reconhecimento dos enormes serviços prestados à cultura portuguesa, lugar que não aceitará por motivos da vida familiar. No entanto, aceita o encargo pedagógico e científico, exercendo-o na Universidade de Coimbra. Aí, recebe, em 1916, o grau de doutora honoris causa, em ato solene de homenagem à sua obra, tão rica e relevante. Em 1923 é-lhe outorgada idêntica honra na Universidade de Hamburgo.

Mulher e investigadora, cultora da sensibilidade e do rigor – a sua vida demonstra a importância da íntima ligação entre a opção pessoal e a vocação científica. Considera que a Saudade é um “traço distintivo da melancólica psique portuguesa e das suas manifestações musicais e líricas, muito mais do que a Sehnsucht é característica da alma germânica. Refletida, filosófica, acatadora do imperativo categórico da Razão pura, ou hoje, do imperativo energético da atividade ponderada”, a palavra alemã “tem muito maior força de resistência contra sentimentalismos deletérios”. “A saudade e o morrer de amor (outra face do mesmo prisma de terna afetividade e da mesma resignação apaixonada)” são realmente, para a estudiosa, “as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome. Elas perfumam o meigo livro de Bernardim Ribeiro e os livros que estilisticamente derivam dele, como a ‘Consolação de Israel’ de Samuel Usque, e as’ Saudades da Terra’ de Gaspar Frutuoso. Perfumam as Rimas de Camões e os Episódios e as Prosopopeias dos Lusíadas. —Perfumam as Cartas da Religiosa Portuguesa; e as criações mais humanas de Almeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de Frei Luís de Sousa. Não faltam no Cancioneiro do povo; nem já faltavam, na sua fase arcaica, nos reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é, nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até os dias de Pedro e Inês. Logo no alvorecer da poesia, ainda antes de 1200, surgem naturalmente lindos lamentos de amor e de ausência. Encontro-os naquela singela composição, em que o rei D. Sancho o Velho desdobra o sentimento da saudade nas suas duas componentes principais: cuidado e desejo.

Se lermos a obra de Carolina Michaëlis e de Joaquim de Vasconcelos, muito rica, diversificada e inovadora, facilmente encontramos uma procura incansável da identidade portuguesa, pelo espírito singular da nossa cultura - demonstrando que essa cultura sempre se enriqueceu quando se abriu ao exterior e a outras culturas e sempre se empobreceu quando se fechou ou se deixou ficar pela inércia conservadora. Cultivaram, assim, ambos um espírito desperto e liberal, aberto e sensível, em busca do que ia para além do superficial e do imediato. Vendo a mestra com olhos de hoje, não passa despercebida uma intenção claramente emancipadora, de quem nunca deixou de assumir a sua qualidade de mulher e de quem considerou sempre, como naturalíssimo, que liberdade e igualdade fossem faces do mesmo espelho, como a igualdade e a diferença, e nunca realidades antagónicas. Mas para que tal acontecesse é preciso enaltecer a atitude de Joaquim de Vasconcelos, grande admirador de sua mulher, que com ela formou um par de características excecionais, pela sua complementaridade e pelo exemplo. Carolina Michaelis fez até morrer aquilo de que gostava e que era a sua vocação – o estudo incansável sobre a cultura portuguesa, as suas raízes e especificidades, sem esquecer que era um exemplo singular, que sempre desejou que deixasse de ser excecional. Como disse Gerhard Moldenhauer na oração fúnebre: “Quem, para mais conscientemente se orgulhar de ser português, alguma vez se interessou pela nossa herança espiritual, encontrou sempre no excecional espírito de Carolina Michaëlis o mais amável dos mestres e o mais seguro dos guias”.

 

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 21 a 27 de agosto de 2023

 

O “Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa” de Aldónio Gomes (de saudosa memória) e Fernanda Cavacas constitui um documento fundamental para a compreensão da diversidade da Língua Portuguesa.

 

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O CASO DE ALFREDO MARGARIDO

Se nos ativermos ao «Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa» do mestre Aldónio Gomes (nome que não pode ser esquecido, e cuja obra continua a exigir a maior atenção) com Fernanda Cavacas, Alfredo Margarido usou na sua extensa e profusa obra, além do seu próprio nome, pseudónimos como Lúcio Câmara, Manuel Kandiba e Paulo Saraiva, sendo inicialmente técnico agrícola e jornalista, e depois licenciado e doutorado em França. Expulso de Angola por motivos políticos, viveu muitos anos em Paris, tendo sido investigador, pensador, poeta, romancista, ensaísta e crítico literário. «É reconhecido como um dos históricos dos estudos literários africanos com Mário de Andrade e Manuel Ferreira». E como não lembrar Manuela Margarido, sua primeira mulher, figura essencial nas lusofonias africanas, que conheci pessoalmente na UNESCO, e que teve uma presença forte na ligação à cultura africana de Alfredo Margarido?

Eugénio Lisboa bem o definiu: «Era, como os melhores, um monte de contradições: um rezingão inteligente que disfarçava os seus afetos, um cultor da palavra acerada e perscrutadora que escondia, com pudor e alguma malícia, o seu talento de artista plástico, um erudito sólido que fazia, com desenvoltura, poesia e romance, um provocador profissional que amava o convívio e sabia cultivar as amizades, um professor que gostava de desarrumar a sabedoria estabelecida e convidava à irreverência fundamentada, em suma, um cavalheiro de opinião diferente, sempre preparado para nos contradizer, com um sorriso malicioso e uma voz mansa que amaciava o tumulto». Dificilmente se poderia dizer melhor. Estávamos diante de uma inquietude iluminante, de quem tudo lia e por tudo se interessava. A sua obra que tem contado com a extraordinária apresentação de Isabel Castro Henriques, ilustra bem essa faceta de conhecimento e desassossego. Trata-se de um repositório tocante e exaustivo, onde podemos acompanhar um percurso extraordinário de quem foi «um dos pensadores mais lúcidos da nossa realidade» (Perfecto Cuadrado).

 

UM LONGO DESASSOSSEGO

Falei longamente com o meu querido amigo Eduardo Lourenço sobre Margarido. Era sempre um fascínio ter esta companhia, depois de termos andado às voltas com o papel dos mitos na interpretação da História. Com uma atenção especial a todos os pormenores, foi exprimindo uma sincera admiração pela capacidade de compreensão e de argúcia de Alfredo Margarido, sempre comparando a evolução dos textos e da reflexão com a belíssima obra gráfica. Há uma rara sensibilidade manifestada nos desenhos expostos, o surrealismo é assumido com doçura e ironia, o colorido suave ilustra uma espécie de representação onírica da literatura – o que entusiasma Eduardo: aqui, os vários heterónimos pessoanos num turbilhão ou num caracol de cabeças; acolá Caeiro pastor de rebanhos, mais adiante Feernando Pessoa passeando sobre os telhados ou segurando um balão… Luciana Stegagno Picchio fala de «uma notável técnica de aguarelista», que aproveita «a lição surrealista, modalidade portuguesa de uma geração ilustrada por Alexandre O’Neill ou um Mário Cesariny».

Entre a descoberta dos textos, das referências, das pequenas e grandes audácias, os desenhos entusiasmam o visitante. Eduardo Lourenço recorda o primeiro contacto, no já distante ano de 1953, através de «Poemas com Rosas». Depois lembra o surrealismo em Luanda, com Cruzeiro Seixas («o Margarido era muito sociável e eu preferia o sol e o mar, encontrar um estranho búzio, as noites e a gente jovem»). Perfecto Cuadrado fala da singularidade da expressão artística de Alfredo Margarido. «Lúcido, crítico e livre, poeta no olhar, no pensar e no dizer uma realidade que continua a precisar de uma profunda reabilitação desde os territórios concêntricos e sucessivos do moral, do ético, do político e do estético». E convém lembrar Teixeira de Pascoaes, que tanto entusiasmou o jovem A. Margarido - «a luz é cada vez mais luz». Eduardo Lourenço recorda a importância e o prestígio dos textos no «Diogène» (como «Incidences socio-economiques sur la poèsia noire d’expression portugaise» de 1962) - e vem à baila Marc Ferro a dizer: «Il avait la sagacité de Fernand Braudel, l’inventivité d’Eric Hobsbawm, la curiosité multiforme de Roland Barthes». Lá estão os «Cadernos de Circunstância», com Manuel Villaverde Cabral e Fernando Medeiros.

Os textos têm uma rara pertinência, e ao vê-los em conjunto, percebemos que o autor se manteve sempre atento aos novos fenómenos, sabendo que o desenvolvimento moderno precisa de autonomia e diálogo, de singularidade e reciprocidade. E Eduardo Lourenço aponta-me uma frase, que obriga a um sério repensar. Sinto que se coloca abertamente ao lado de Margarido: «A nossa modernidade, criada pelas independências africanas, obrigou o país a cortar uma parte substancial dos seus laços com o Atlântico, que foi sempre o Oceano das nossas grandes incursões, mesmo se o Índico não pode ser afastado desta reflexão (…). A invenção da lusofonia procura com algum desespero devolver-nos uma parte desse espaço (…). A maior parte dos missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português». Este é um tema fulcral. E. Lourenço sente que ali estão as suas preocupações fundamentais: «A língua nasceu em Portugal e pertence aos portugueses. Não se consegue aceitar o princípio simples de que a língua pertence àqueles que a falam! Aceitemos a leitura crítica do passado, o que será sempre ocasião para impedir que alguns dos nossos melhores vícios se transformem em virtudes». É esse aguilhão da crítica que tem de funcionar, para tirar as lições dos erros e para fazer dos mitos motivo de compreensão.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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M. MIRANDÊS


Falo de espíritos bem vivos. Os falantes distribuem-se principalmente por uma área de 550 quilómetros quadrados, conhecida como Terra de Miranda, formada pelo concelho de Miranda do Douro e as freguesias de Angueira e Vilar Seco no concelho de Vimioso. Também se deve incluir o território de Caçarelhos. A língua mirandesa é o nome oficial que recebe o asturo-leonês persistente em território português. O mirandês tem três subdialetos (central ou normal, setentrional ou raiano, meridional ou sendinês), dispondo de um dicionário, gramática e ortografia próprios; os seus falantes são em maior parte bilíngues ou multilingues. O mirandês é, desde 1999, a segunda língua oficial de Portugal. A preservação da língua mirandesa deve-se à geografia e ao isolamento das Terras de Miranda, sede episcopal. Os rios e as cordilheiras são fatores cruciais para a criação de uma "fronteira linguística". O rio Sabor isolou a área da influência da língua portuguesa. Outro fator foi a proximidade de Espanha, com o comércio centrado no turismo espanhol. A cidade recebe espanhóis do antigo Reino de Leão, que muitas vezes falam asturiano. Assim, o mirandês chegou aos nossos dias, defendido também pelos espanhóis de fala asturiana. Havia muitos anos que o mirandês não era falado no coração da comarca, Miranda do Douro, mas, nos últimos anos, a deslocação das pessoas das aldeias para a cidade trouxe o mirandês de volta. As aldeias preservaram melhor a língua antiga. São naturais os entraves, como se nota em "Lição de Mirandês: You falo como bós i bós nun falais como you" de Manuela Barros Ferreira, onde é evidente a natural fragilidade da língua mirandesa face ao português. Não se fala o mirandês quando os alunos estão em situações formais, como por exemplo na relação com o professor. Então a língua portuguesa prevalece. A língua mirandesa é reservada para contextos familiares, do quotidiano ou mesmo de extrema intimidade.

Eis o exemplo de uma frase em mirandês com a respetiva tradução em português, num texto de Amadeu Ferreira, um dos grandes divulgadores da língua mirandesa. «Muitas lhénguas ténen proua de ls sous pergaminos antigos, de la lhiteratura screbida hai cientos d'anhos i de scritores hai muito afamados, hoije bandeiras dessas lhénguas. Mas outras hai que nun puoden tener proua de nada desso, cumo ye l causo de la lhéngua mirandesa». E eis a versão portuguesa. «Muitas línguas têm orgulho dos seus pergaminhos antigos, da literatura escrita há centenas de anos e de escritores muito famosos, hoje bandeiras dessas línguas. Mas há outras que não podem ter orgulho de nada disso, como é o caso da língua mirandesa».

Apresentamos ainda o texto do projeto lei de reconhecimento dos direitos linguísticos da comunidade mirandesa, apresentado em setembro de 1998 pelo deputado Júlio Meirinhos aprovado pelo Parlamento e com expressão constitucional. «La Lhéngua Mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i capechana, nun yê de onte, detrasdonte ou trasdontonte mas cunta cun uito séclos de eijistência. Sien se subreponer a la "lhéngua fidalga i grabe" l Pertués, yê tan nobre cumo eilha ou outra qualquiêra. Hoije recebiu bida nuôba.

Saliu de l absedo i de l cenceinho an que bibiu tantos anhos. Deixou de s'acrucar, znudou-se de la bargonha, ampimponou-se para, assi, poder bolar, strebolar i çcampar l probenir. Agarrou l ranhadeiro para abibar l lhume d l'alma i l sangre dun cuôrpo bien sano. Chena de proua, abriu la puôrta de la sue priêça de casa, puso fincones ne l sou ser, saliu pa las ourriêtas i preinadas. Lhibre, cumo l reoxenhor i la chelubrina, yá puôde cantar, yá se puôde afirmar. A la par de l Pertués, a partir de hoije, yê lhuç de Miranda, lhuç de Pertual», Lei nº 7/99 de 29 de janeiro

Depois de José Leite de Vasconcelos, Amadeu Ferreira (1950-2015, Sendim, Miranda do Douro) foi o grande estudioso e divulgador do mirandês nos últimos anos, sendo jurista, escritor e tradutor de uma vasta obra em português e em mirandês, em nome próprio e com os pseudónimos de Francisco Niebro, Marcus Miranda e Fonso Roixo.

Traduziu para a língua mirandesa obras como Os Quatro EvangelhosOs Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, Mensagem, de Fernando Pessoa, e obras de Horácio, Vergílio e Catulo, bem como dois volumes de Astérix entre muitos outros. Foi colaborador, sobretudo em mirandês, de diversos meios de comunicação social, nomeadamente do Jornal Nordeste, do Mensageiro de Bragança, do Diário de Trás-os-Montes, do Público e da rádio Mirandum FM. Publicou mais de três mil textos, quase exclusivamente literários, em blogues como Fuontes de l AireCumo Quien Bai de Camino e Froles Mirandesas e CNC. Autor de obras científicas e literárias, em poesia e em prosa. Entre muitas outras, publicou, nas áreas das Ciências Jurídicas e Direito dos Valores Mobiliários; em poesia, Cebadeiros; e em prosa, Cuntas de Tiu Jouquin.

Há ainda os Pauliteiros de Miranda, praticantes da dança guerreira céltica, característica destas Terras, designada de dança dos paus,  representativa de momentos históricos locais, acompanhada com os sons da gaita-de-foles, caixa e bombo, com a particularidade de ser dançada por oito homens (mais recentemente também por mulheres) que vestem saia bordada e camisa de linho, um colete de pardo, botas de cabedal, meias de lã  e chapéu enfeitado com flores e finalmente por dois paus (palos) com os quais os dançadores fazem uma série de diferentes passos e movimentos coordenados. E neste folhetim de fantasmas, a propósito do Mirandês, invoco um texto de Orlando Ribeiro sobre o seu Mestre José Leite de Vasconcelos, que antevia com «os olhos do espírito de que se apagam lentamente os últimos fulgores». «Num pedestal de tosco granito», vislumbrava «não uma figura enroupada no traje académico, mas um velho meão mas desempenado, de cabeça coberta e barba intonsa, de chapéu de viagem, abordado ao bastão de jornada, mostrando aos novos – ele, eterno caminheiro – os rumos científicos da “boa Terra Lusitana”, de que esclareceu as origens nas pedras incompletas, na língua como expressão da vida coletiva, na multiplicidade dos textos e dos falares rústicos, sobre o pedaço de terra que nos coube neste fim da Europa, onde o povo, considerado no conjunto das classes da Nação, afirmou o seu direito de ser livre, de pensar e sentir a seu modo e a seu jeito e até contribuir, com as luzes de Espíritos de que o Mestre foi o mais poderoso e operoso para o progresso geral do conhecimento humano. Só assim a lenda de José Leite de Vasconcelos se consagrará na História, a que há mais de um século ofereceu as primícias do seu pensamento».

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L. LOPES (FERNÃO)


Nesta visita sistemática dos fantasmas da Casa Portuguesa, chegamos ao loquaz Fernão Lopes, autor da “Crónica de D. João I”, um dos grandes marcos da língua portuguesa. A vida de Fernão Lopes é um mistério. Por ironia do destino, o homem através de quem conhecemos a História da geração que o precedeu, é-nos quase desconhecido como pessoa. A própria efigie que aqui reproduzimos é duvidosa. Talvez seja ele uma das figuras representadas nos Painéis de S. Vicente de Nuno Gonçalves. Não sabemos quando nasceu, mas presumimos que tenha sido nos anos da crise. A sua origem era plebeia, e esse facto explica a atenção que reserva na sua escrita à “arraia miúda de ventres ao sol”. O seu nome aparece-nos pela primeira vez em 1418, como guarda-mor das escrituras da Torre do Castelo de Lisboa. Um ano depois, é escrivão dos livros de D. João I e em 1422 exerce o cargo de escrivão da puridade do Infante D. Fernando, sendo depois nomeado tabelião geral do reino. D. Duarte atribui-lhe uma tença anual vitalícia em 1434 para escrever as crónicas da história geral do reino, até D. João I. Como cronista-mor exerce funções, com zelo e competência, até 1454, altura em que, por estar “mui velho e flaco”, é aposentado. Gomes Eanes de Zurara é quem escreve a versão final da terceira parte da Crónica de D. João I. Estando Fernão Lopes com avançada idade em 1459, julga-se que morreu no ano seguinte. Como cronista é o primeiro grande estilista da prosa em língua portuguesa, com a sua escrita fluida e atraente, presenciamos uma sucessão de acontecimentos que anunciam uma nova era, diferente do estilo medieval. Assistimos ao “crepúsculo” do tempo antigo, na sequência de um rumo modernizador preparado na passagem dos séculos XIII para o XIV no período dionisíaco. Um dos temas novos é o da legitimidade política, que deixa de ser fundada no património e no senhorio, para passar a ser ditada pelas gentes e pelo “poboo”. Sente-se a influência da escola de Bolonha. Desde que se fixara a fronteira do reino e que a língua comum se tornara idioma oficial dos tabeliães foram abertos os caminhos do “direito de naturalidade”, por contraponto ao “direito senhorial”. E se houve divisões drásticas na sociedade portuguesa, com a alta nobreza e o alto clero a sustentarem o conceito “legitimista” de D. Beatriz, e a burguesia das cidades a ansiar por um entendimento mais ligado aos povos, o certo é que a matriz legitimadora do reino (o Estado que precedeu a nação) atribuía uma forte importância aos municípios, aliados naturais do poder real. O “direito de naturalidade” representava o anúncio de uma nova conceção. E Fernão Lopes desenvolve na “Crónica de D. João I” esse entendimento, quer na narração quer nas reflexões. Fala de “verdadeiros portugueses”, mas também de “cidadãos honrados”, de “amor da terra”, do grito “Portugal” da gente “miúda” e até de “evangelho português”. E esse entendimento leva-o a conceber a historiografia como uma procura de factos fiéis à realidade, em nome da causa legitimadora do Mestre da Avis. Lembremo-nos dos relatos do Cerco de Lisboa e da batalha de Aljubarrota. Os acontecimentos são minuciosamente descritos, numa cadeia de factos que culmina no sucesso de D. João I. Se o cronista apresenta um novo entendimento social e político, fá-lo com o recurso originalíssimo à narrativa, demonstrando “o estofo de um dramaturgo poderoso”, como dirá António José Saraiva, afirmando-se como um exímio “contador da História” na expressão de Teresa Amado… Fernão Lopes reúne os elementos fundamentais para justificar a “justa aclamação”. O relato das Cortes de Coimbra é magistral. O cronista dá-nos, com minúcia, as provas da argumentação jurídica de João das Regras. Aí estão a incerteza da paternidade de D. Beatriz, a situação matrimonial irregular de D. Leonor Teles, o apoio cismático de D. João de Castela ao Papa de Avinhão, a demonstração da ilegitimidade (e da indignidade por apoio á causa de Castela) de D. João de Castro, filho de D. Inês de Castro… A argumentação jurídica alia-se aos sinais da Providência, protagonizados pelo jovem Condestável do Reino D. Nuno Álvares Pereira, chefe militar da linhagem de Galaaz, o cavaleiro de Camelot e companheiro do Rei Artur, do ciclo bretão. Álvaro Pais, o rico cidadão de Lisboa, é a verdadeira alma do movimento. As hesitações e até a descrição da personalidade contraditória de D. João, Mestre de Avis, demonstram com meridiana clareza que houve um forte impulso, vindo do movimento popular, mobilizador de vilões, mesteirais e lavradores. E se o Mestre começa por ser quem está em posição mais frágil na linha sucessória, sem mesmo desejar ser rei, como várias vezes afirma, considerando ser seu meio-irmão D. João de Castro quem teria maior legitimidade dinástica, a verdade é que a sua condição de clérigo o afastava da sucessão. O certo é que os acontecimentos (e a determinação de Álvaro Pais) irão colocá-lo no centro dos acontecimentos e à frente dos destinos do reino.  Em Coimbra, porém, o legista João das Regras, depois de declarar o trono vago, demonstra que a nova legitimidade, a dos povos, não oferecia dúvidas, cabendo ao Mestre ser o novo Rei. O movimento popular não tinha, é certo, a aceção que hoje lhe daríamos. Opunha-se à aristocracia fidalga, na linha da consolidação da monarquia fundada por Henrique de Borgonha e seu filho Afonso Henriques. E como é facilmente compreensível a conceção do “direito de naturalidade” reforçou o peso e a importância dos povos dos concelhos, segundo o que Jaime Cortesão designaria como “os fatores democráticos na formação de Portugal”. Estamos, assim, perante uma revolução de “cidades” e de “vilões”, logo desde os acontecimentos de Lisboa, em 1383, com a morte do conde de Andeiro, mas também em Beja, em Évora, no Porto. Sente-se a “epopeia” das mudanças profundas, a partir da “gente pequena dos lugares” e, sobretudo, de uma razão nova: “Ó geração que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte de tantos males nem foi quinhoeiro de tais sofrimentos” … As vilas combatem os castelos, a legitimidade nova destrona a legitimidade senhorial. Novos espíritos se anunciam.


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K. «KWY» - LOURDES CASTRO


Este folhetim trata de fantasmas. E quem melhor soube representá-los como sombras vivas foi Lourdes Castro e os seus amigos. A revista KWY foi um veículo precioso! Publicou-se em doze números de fabricação artesanal de 1958 a 1964. A denominação tem a ver com as três letras que então estavam ausentes do alfabeto português. Só por ironia disse-se que significava Ká Wamos Yndo… O grupo foi responsável “pela abertura da arte portuguesa no contexto internacional e pela franca adesão às novas linguagens figurativas que, sob a égide da reconstrução económica do pós-guerra, deram impulso a um dos períodos mais estimulantes da cultura europeia do século XX”. Em lugar de agrupamentos por tendências, há grupos de intervenção. Trata-se de um realismo cosmopolita. Com o grupo “KWY” (Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, José Escada, João Vieira, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo), abrem-se horizontes além-fronteiras, ultrapassando a dimensão paroquial, fora da censura no caminho criador pelo repensar das raízes.

Lourdes Castro compreendeu o novo tempo e as novas tendências de um modo exemplar. “A surpresa do desenho, a simplicidade da forma, o contorno da sombra fascinou-me tanto que ainda hoje para mim é nova” (como testemunhou a Joana Galhardo Frazão). Ao seguirmos o seu percurso é impressionante o modo como soube trilhar caminhos absolutamente inesperados e inovadores. Em “O Grande Herbário das Sombras” reencontrou a Natureza e a vegetação da Ilha da Madeira, domínio da laurissilva, sua terra natal, com uma centena de espécies botânicas, que permitem ligar o labor da artista à criação essencial e transcendente. Como recordou José Carlos Seabra Pereira, a obra envolve “a imanência do mundo criado e a Transcendência que lhe dá sentido último”. É o dom da vida que está em causa, como fica demonstrado no filme “Pelas Sombras” de Catarina Mourão (2010), no qual se apresenta o encantamento “com a magia no quotidiano das coisas”. Por isso, a artista afirma: “a minha pintura é esta: o viver, o estar cá”. E assim a sua arte foi-se tornando o espaço à sua volta. “Não a posso transportar. Ela nem quereria mudar de sítio”. José Tolentino Mendonça afirmou que, para ela, “a arte nunca foi simplesmente um fazer. A arte era um intransigente pensamento sobre o estar”. Por isso, não deixa apenas obras que podemos ver nos museus, deixa uma visão. E tal constitui um facto político raro. Lembrando o “Teatro de Sombras”, verdadeiro património imaterial posto em prática primeiro com René Bertholo e depois com Manuel Zimbro, trata-se de arte em movimento. Os primeiros passos foram no Centro Nacional de Cultura, em 1954, com José Escada. Não por acaso, o Centro era uma casa onde o teatro tinha especial importância, sob a influência de Fernando Amado e de Almada Negreiros. E Lourdes Castro, no tempo da fugaz passagem em Belas-Artes, começou a fazer teatro com Fernando Amado no Centro, e foi no espaço do teatro que a jovem começou por apresentar os primeiros passos nas artes plásticas. E vem à memória a peça “Antes de Começar” de Almada Negreiros, encenada por Amado, nos princípios que conduziriam à criação da “Casa da Comédia” e à amizade que se prolongará no tempo, pela vida fora, com o pintor Manuel Amado, companheiro, com sua mulher Teresa, em férias e viagens na Madeira e Porto Santo. E está aqui a preciosa chave, capaz de ligar a descoberta das sombras, a representação teatral e a paixão pela vida. E há o encontro simbólico entre a memória do primeiro modernismo de Almada Negreiros e a lembrança de Fernando Pessoa, muito presentes nesse tempo e no grupo, quando o poeta do “Livro do Desassossego” começava a ser descoberto, ao lado de um outro modernismo, totalmente novo, da geração de “KWY”. E foi essa pulsão vital que levou Lourdes Castro a realizar esses fantásticos livros de artista, que explicou simplesmente – “porque havia tesouras, havia papel, havia tempo, gostava de livros…”. E, ao apresentá-los, Paulo Pires do Vale compreendeu bem como a artista continuou a criar, mesmo quando se retirou da intervenção ativa. “Na verdade, não deixou de criar”, continuou, sim, a “transformar a própria vida”, a “dar-lhe maior atenção” (Público, 9.1.22). E na exposição “Tudo o que Eu Quero”, Helena de Freitas e Bruno Marchand, na Gulbenkian, ficaram em destaque as sombras na sua múltipla dimensão, absolutamente singular e inovadora – silhuetas bordadas em lençóis brancos, retratos de amigos em plexiglas, flores e folhagens. “As suas sombras tornam-se progressivamente mais leves. A presença aprofunda-se na ausência e cumpre-se no desaparecimento” (Anne Bonin).

José Tolentino Mendonça refere três momentos no caminho de Lourdes Castro. “A primeira etapa é aquela que vai até ao ‘Teatro de Sombras’ e constitui talvez a parte mais reconhecível da sua produção artística”. A segunda etapa foi a do movimento das sombras, como se uma parede deixasse de ser um obstáculo, descobrindo-se no branco do muro intransponível uma passagem na transparência. E lembro o enigma dos jardins japoneses, como em Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen, representação do mundo contada por João Bénard da Costa no filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes. Por fim, a terceira etapa foi a dos jardins madeirenses – a Praia Formosa, a Quinta do Monte, o lugar de exílio de Carlos de Habsburgo, e o Jardim do Caniço… De facto, o jardim tornou-se a própria obra (cf. Expresso, 14.1.22). “O meu jardim é a minha tela”. A Natureza é que tudo faz. Lourdes Castro preparava-se, afinal, para a última viagem, em direção ao Jardim das Nuvens. A obra de arte deixou de se limitar a um espaço contido, às fronteiras de uma tela ou de um lençol, abriam-se os horizontes, e não havia fronteiras intransponíveis nesse teatro de nuvens.    


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Ilustração: José Malhoa


J. JOANINHA DOS OLHOS VERDES


As “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett (1ª edição, 1846) são constituídas por quarenta e nove capítulos de um folhetim romântico, cuja originalidade está na linguagem comum que usa e na ligação entre o relato de uma viagem e a narrativa de uma história trágica sobre a guerra civil que dividiu o país de 1832 a 1834, e de que o autor foi protagonista. A viagem existiu de facto, de 17 a 22 de julho de 1843, em que Almeida Garrett foi ao encontro do seu amigo Passos Manuel, então num exílio no interior da pátria, uma vez que tinha sido arredado da ribalta política pelo golpe de Estado em que António Bernardo Costa Cabral restaurou a Carta Constitucional (1842). A narrativa é imaginada como procura de uma lição moral, depois do tempo heroico de uma guerra ter cedido lugar ao conformismo e à indiferença – simbolizados na figura de Carlos. Se é certo que o autor, inspirado em Swift, Stern ou De Maistre, nos diz que neste género importa mais o estilo que a doutrina, a verdade é que o autor cuida especialmente da renovação do estilo, e da sua originalidade, sem esquecer uma pitada de doutrina, já que não esconde a acerba crítica em relação ao cinismo e ao agiotismo a que se chegara. O escritor quer acreditar na força da liberdade e dos seus ideais, contudo olha em volta e muito pouco vê nesse sentido. Por isso, sendo um partidário da “monarquia nova” (como disse no célebre discurso do Porto Pireu, perante José Estevão), não pôde deixar de admirar, apesar de não gostar de frades, a convicção de Frei Dinis, o inesperado pai de Carlos, velho partidário da “monarquia velha”. A descrição da viagem entremeia a exaltação da natureza (“bela e vasta planície”, “delicioso aroma selvagem”) com as invocações pessoais, em aparente desordem. Até que chegamos ao vale de Santarém. Faias, freixos, álamos, madressilvas, mosquetas, congossas, fetos e malvas-rosas compõem uma verdadeira sinfonia silvestre. E chegamos a uma janela, que faz adivinhar um feitiço. E se falamos de fantasmas, eis uma das referências indiscutíveis. É a janela da “menina dos rouxinóis”, da “Joaninha dos olhos verdes”.

E abre-se o romance: “Era no ano de 1832, uma tarde de Verão, como hoje calmosa, seca, mas céu puro e desabafado…”. Garrett mistura propositadamente as suas reflexões ao longo da viagem e o contar da narrativa, que ali teve lugar, no auge da guerra entre o Portugal novo e o Portugal antigo (com a presença de Joaninha, Carlos, Georgina, a Avó e Frei Dinis). E entre os episódios do romance, a viagem continua: “Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, atual possuidor e habitante do régio alcáçar, o Sr. M.P.” (Manuel Passos). E então: “comemos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, falou-se de política, falou-se de literatura, falou-se de Santarém sobretudo, das suas ruínas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Enfim, fomo-nos deitar. Nunca dormi tão regalado sono em minha vida…”. Ontem, como hoje, a magnífica hospitalidade… E assim vida e literatura juntam-se naturalmente.

Mas retornemos à menina dos rouxinóis. «Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em português, mas era o tipo da gentileza, o ideal da espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezasseis anos, havia, por dom natural e por uma admirável simetria de proporções, toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da corte e da mais escolhida companhia vêm a dar a algumas raras e privilegiadas criaturas no mundo». O que a singulariza? «Os olhos de Joaninha eram verdes... não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate». (…) «O efeito desta rara feição, naquela fisionomia à primeira vista tão discordante, era em verdade pasmosa. Primeiro fascinava, alucinava, depois fazia uma sensação inexplicável e indecisa que doía e dava prazer ao mesmo tempo: por fim pouco a pouco, estabelecia-se a corrente magnética tão poderosa, tão carregada, tão incapaz de solução de continuidade, que toda a lembrança de outra coisa desaparecia, e toda a inteligência e toda a vontade eram absorvidas. Resta só acrescentar — e fica o retrato completo, um simples vestido azul-escuro, cinto e avental preto, e uns sapatinhos com as fitas traçadas em coturno». Camões também um dia disse: «Eles verdes são / e têm por usança / na cor, esperança / e nas obras não». “Minina dos olhos verdes, porque me não vedes”? E que maior saudade de um espírito senão a deste amor de Joaninha?


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