Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Ao ler hoje, como é meu hábito diário, pela manhã nascente, o trecho do Evangelho proposto para o dia, comovi-me profundamente, como quase sempre me acontece ao silenciosamente entrar no texto de São João, pois que assim se nomeia o suposto autor do quarto evangelho, bem distinto dos três sinópticos, escrito provavelmente já na primeira década do século segundo, por alguém que não se cruzou pessoalmente com Jesus Nazareno. Este magnífico testemunho da vida adulta e do ensino, paixão, morte e ressurreição de Cristo aponta assim, nos dois últimos versículos (24 e 25) do seu capítulo final, o seu autor : Este é o discípulo que testemunhou estas coisas e as escreveu. E sabemos que o testemunho dele é verdadeiro. São muitas as outras coisas que Jesus fez, que, se fossem escritas uma a uma, não penso que o mundo tivesse espaço para tantos livros escritos. Mas, mais do que concluir daí a sua atribuição a redator contemporâneo de Jesus, designadamente João, filho de Zebedeu e pescador quiçá analfabeto e certamente ignorante da língua grega escrita, poderá talvez deduzir-se que o texto é, de facto, o registo posterior de memórias de uma comunidade cristã formada à volta de um João. Registo tal que, aliás, se terá elaborado por uma construção teológica dessa tradição de fé. Mas, Princesa de mim, remeto-te para a consulta da nota introdutória ao Evangelho de João, incluída pelo Prof. Frederico Lourenço na edição da sua tradução portuguesa (que aqui utilizamos) pela Quetzal (Lisboa, 2016). Nesta carta, só quero reproduzir o trecho que tanto me comoveu:
Depois de ter lavado os pés deles, pegou na sua roupa e voltou a reclinar-se à mesa. Disse-lhes: «Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me "o Mestre" e "o Senhor" e dizeis bem. Sou de facto. Se eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós vos deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos um exemplo para que, tal como eu fiz, façais vós também. Amém, Amém vos digo, o escravo não é maior do que o amo dele, nem um apóstolo é maior do que Aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem aventurados sois se as fizerdes. Este trecho do capítulo 13 é como um prefácio à maravilhosa súmula da verdade cristã, que Jesus amorosamente nos dá, como João regista nos versículos 9 a 17 do capítulo 14, passo marcante do seu discurso de despedida, antes de partir, pela via crucis, a caminho da Paixão que o aguarda e lemos descrita pelo mesmo João em Sexta Feira Santa :
Tal como me amou o Pai, assim eu vos amei. Permanecei no meu amor. Se observardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, tal como eu observo os mandamentos de meu Pai e permaneço no amor d´Ele. Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria se complete. Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros tal como eu vos amei. Ninguém possui maior amor do que este, que alguém dê a vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos se fizerdes as coisas que vos mando. Nunca vos chamo escravos, porque o escravo não sabe o que faz o seu amo. Chamo-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vos dei a conhecer. Não fostes vós que me escolheste mas eu que vos escolhi e vos estabeleci, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça, para que aquilo que pedirdes ao Pai em meu nome ele vos dê. As coisas que vos mando são que vos ameis uns aos outros.
Mas foi hoje mais funda a minha emoção, pela circunstância difícil que estamos vivendo, e sobretudo pelo muito que ela tem movido o meu modo de pensarsentir a realidade humana, não só dos que muito sofrem, mas também de tantos e tantos que, generosamente, se vão oferecendo e esforçando para a todos trazerem um apoio, um alívio, um amigo, um aconchego, a nossa humanidade comum. Nem todos, talvez nem muitos, sejam cristãos confessos ou sequer crentes simplesmente. São apenas seres humanos livres que, pela singela consciência do ser antiquíssimo que todos somos na comunhão da nossa condição, vão distribuindo essa graça de frutos que em cada um permanecem, como lembrança, esperança e promessa de comunidade em amor.
A leitura que qualquer cristão faça dos capítulos 13 a 17 do evangelho de João nunca poderá ser sectária, nem sequer clubista. A mensagem ali contida só pode ser entendida à luz do versículo que afirma: Na casa de meu Pai há muitas moradas (Jo.14, 2). No seu Christian Beginnings: from Nazareth to Nicea, 30 a 325 DC (Penguin, 2013) Geza Vermes, professor de Estudos Judaicos na Universidade de Oxford, judeu de origem húngara, que estudou em Budapeste e Lovaina e passou por um período católico (creio que até foi padre jesuíta), falando do cristianismo joanino, escreve: Jesus o Filho, ou o Filho de Deus: é o título de Filho e não o de Messias que mais acertadamente descreve o Jesus joanino. E mais adiante diz: Na perspetiva religiosa do Quarto Evangelho, o Filho é enviado por Deus Pai, não como juiz final, mas como dispensador de vida. E o próprio Geza Vermes faz questão em recordar de que vida se trata, citando outro passo de João (17, 22-24): E eu dei-lhes a glória que Tu me deste para que sejam um, tal como nós somos um. Eu estou neles e Tu em mim, para que eles atinjam a completude em um, para que o mundo saiba que Tu me enviaste e os amaste tal como me amaste a mim. Pai, aqueles que me deste, quero que estejam também comigo onde eu estiver, para que contemplem a minha glória, que Tu me deste, porque me amaste antes da fundação do mundo... Daí que o professor oxoniano ouse dizer que, além da redenção da humanidade do pecado, o propósito da Incarnação do Filho é a deificação dos humanos.
Em Sexta e Sábado Santos, fui sobretudo escutando, a meditar nos textos, as "Paixões" segundo Bach (S. Mateus, S. João e... S. Marcos, sim, quase desconhecida). A última estrofe cantada pelo coro de Marcos reza assim:
Bei deinem Grab und Leichenstein, Will Ich mich stetes, mein Jesu, weiden, Und über dein verdienstlich Leiden Von Herzen froh un dankbar sein.
Traduzo assim, acrescentando também os últimos quatro versos: "Junto da tua tumba e sua pedra para sempre quero ficar, ó meu Jesus! E graças à tua admirável Paixão estar de coração alegre e reconhecido e teu será este epitáfio: Da tua morte nasce a minha vida, aqui jaz a angústia dos meus pecados, que com Jesus aqui mesmo sepultei".
Sobre a noite que vai caindo em dia de Sábado Santo se ergue a luz alegre das vestes de um anjo do Senhor que, rolando a pedra que fechava o túmulo, se senta em cima dela, diz às mulheres: Não temais. Sei que procurais Jesus, o crucificado. Não está aqui, pois ressuscitou, tal como afirmou.
E em comunhão com todos, sobretudo aqueles que com pandemias se defrontam, pensossinto comigo que um dia será completa a nossa alegria. Seja já nossa essa semente da Páscoa de hoje.
Em oitava de Páscoa, na cultura em que respiramos, interrogamos e debatemos, até a incréus acontece - se acaso convivem de perto com pessoas já idosas que sofram degeneração implacável das suas faculdades de concentração e de memória, sobretudo no imediato ou a curto prazo - refletir mais sentidamente nesse mistério da nossa vida e morte, a que Milan Kundera chamaria, apesar de poder pesar-nos, a insustentável leveza do ser. Na verdade, lembrados da nossa infância ou já confortados pelo espetáculo oferecido por netos e bisnetos, sempre recordamos primeiros passos e, desde logo, a extraordinária e gratificante aventura da curiosidade humana como motor de procura. Meninos, até à nossa custa vamos aprendendo a descobrir o mundo, as pessoas, a comunicação. E alegram-se-nos os corações com tal e tanta empresa milhentas vezes repetida, mas em cada uma delas sempre animada pelo impulso de uma ressurreição interior em dialética com a progressiva descoberta do mundo...
Por isso a princípio nos inquieta e entristece a cena de quem já não entende porque não percebe nem sabe distinguir, nem mais nada consegue guardar por que já não se fixa nem sabe registar. Eis uma experiência de vida e convívio que será desanimadora e dolorosa, mas que em período pascal também poderá ser embarque para nova viagem. Pois que nessa idade em que o descobrimento vai dando lugar ao encobrimento, e o discorrer ao confundir, também tudo parece cobrir-se de noite, daquela noite que tantas vezes evoco nos versos de Álvaro de Campos, como sabes. E, neste final de tarde de Pascoela, vejo bem, e com incontida ternura, esta figura de mulher cujo olhar se vai enchendo da penumbra que cresce lá fora e vem entrando pela janela vasta, aberta sobre os campos e que, ajoelhada num sofá macio, ela perdidamente contempla... Não deverá lembrar-se - para os ir recitando - dos versos do Poeta que, todavia, talvez dissessem aquilo que ela simultaneamente vai vendo, perdendo e profundamente sentindo:
Vem, vagamente, vem, levemente, vem sozinha, solene, com as mãos caídas ao teu lado, vem e traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas, funde num campo teu todos os campos que vejo, faze da montanha um bloco só do teu corpo, apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo, todas as estradas que a sobem, todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe, todas as casas brancas e com fumo entre as árvores, e deixa só uma luz e outra luz e mais outra, na distância imprecisa e vagamente perturbadora, na distância subitamente impossível de percorrer.
A alma ali ajoelhada talvez já não saiba, nem sequer pensa nessa oculta vontade de soluçar que, todavia, sente a tentar trepar-lhe pelo íntimo de si. Terá agora, pensossinto eu, outra sageza, talvez porque a alma é grande e a vida é pequena, / e todos os gestos não saem do nosso corpo / e só alcançamos onde o nosso braço chega, / e só vemos até onde chega o nosso olhar...
Assim me imagino a genufletir a seu lado, rezando, diante da noite que sobre nós vai caindo, com as palavras suplicantes do Poeta:
Vem, Noite silenciosa e extática, vem envolver na noite manto branco o meu coração... Serenamente, como uma brisa na tarde leve, tranquilamente, como um gesto materno afagando, com as estrelas luzindo nas tuas mãos e a lua máscara misteriosa sobre a tua face. Todos os sons soam de outra maneira quando tu vens. Quando tu entras baixam todas as vozes, ninguém te vê entrar, ninguém sabe quando entraste, senão de repente, vendo que tudo se recolhe, que tudo perde as arestas e as cores, e que no alto céu ainda claramente azul já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,
a lua começa a ser real.
Esta ode do Pessoa Álvaro de Campos, muitas vezes a leio e recito como oração à morte in hora mortis. Aliás, até posso substituir, em quase todos os versos, a palavra noite por morte. Ambas têm cinco letras, três delas idênticas e na mesma posição. Mas, no último verso, lembro-me da lumen vitae, e digo a vida começa a ser real. Aí, afinal, escrevo a morada da minha, da nossa, esperança. Porque somos inquietos por natureza, muitas vezes insatisfeitos só por precipitação, há em nós essa propensão ao descontentamento: resmungamos, ou disparatamos, ou desesperamos, vamo-nos pondo a jeito de nos ocultarmos esse pisca-pisca interior que nos avisa de que a paragem é um convite à paciência. A partir de certa idade, quiçá mais difícil connosco do que para com os outros... Ao ponto de até nos esquecermos de que a substância da nossa esperança é, precisamente, a nossa vida, esta sendo um facto evidente. Nem será necessário recorrermos ao que poderia chamar-se, por contraposição à intuição metafisica, a conclusão biológica do António Damásio quando nos fala na perseverança celular do ser vivo. Em momentos difíceis, recordo muitas vezes a primeira quadra de um fado de Coimbra que, há seis décadas atrás, ouvi em serenata frente à Sé Velha de Coimbra ao Fernando Machado Soares:
A vida é negra, tão negra, como a noite nos pinhais! Mas é nas noites mais negras que as estrelas brilham mais!
Até qualquer passado romantismo nos pode ensinar que tudo é graça... Tal como o Livro do Apocalipse de S. João nos diz: Mas ele pousou a mão direita sobre mim e disse-me: «Não temas. Eu sou o Primeiro e o Último, o que vive. Estive morto, mas eis-me vivo»... Pelos tempos que correm, talvez nos fizesse bem voltar ao treino da contemplação dos mistérios.
Crentes ou não crentes — quem o disse foi George Steiner — é em Sábado que vivemos. Que é que isto quer dizer? Todos, de um modo ou outro, em nós mesmos e no mundo, constatamos e vivemos a Sexta-Feira Santa do sofrimento, do horror, da violência, do silêncio e da noite, e todos, de um modo ou outro, de forma mais explícita ou menos explícita, mais consciente ou menos, é pelo Domingo, o Domingo da Páscoa, que suspiramos e esperamos, a Páscoa da salvação.
O que nestes dias os cristãos celebram é este Sábado, que pertence ao núcleo da existência cristã, como disse São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã também a vossa fé. Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Evidentemente, a ressurreição implica por si mesma uma meditação sobre a morte e o sentido último da existência. Uma meditação sobre o Sábado, no qual vivemos.
1. Na história gigantesca do universo, com 13.700 milhões de anos, o sinal distintivo de que há Homem, não já simplesmente algo, mas alguém, são os rituais funerários. A partir daí, já não estamos em presença de um animal qualquer, mas do ser humano, que sabe que sabe, que tem consciência de si, consciência de que é mortal, e que, nem que seja de modo confuso, espera para lá da morte. A consciência da morte e a esperança constituem, portanto, na História do mundo, uma novidade essencial e radical.
Perante a morte e a mortalidade, surge a interrogação fundamental, que está na base das artes, das filosofias, das religiões: o que é o Homem? Sabemos que somos mortais, mas ninguém sabe o que é morrer, ninguém sabe o que é estar morto, nem sequer para o próprio morto. Face à morte, a linguagem falha. Assim, dizemos, perante o cadáver do pai ou da mãe, de um amigo: ele/ela está aqui morto/morta. Ora, o que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, pois o que ali está não passa de restos mortais e lixo biológico. Ou dizemos que os levamos à sua última morada. Ora, quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai, a mãe, um amigo? Também dizemos que os vamos visitar ao cemitério. Ora, nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém. O Evangelho é cru: nos cemitérios, só há ossos e podridão. Então, o que há realmente nos cemitérios, para serem considerados lugares sagrados, de tal modo que a violação de uma sepultura constitui, em todas as culturas, uma profanação e um crime nefando? O que há nos cemitérios não é senão essa pergunta radical: O que e o Homem?, o que é ser Homem?
Mas hoje a morte é tabu. Disso pura e simplesmente não se fala. É de mau tom chamar o tema à conversa. Se, tradicionalmente, tabu era o sexo, actualmente, a morte é que é o tabu. Mente-se às crianças, evita-se o luto, pois a grande mentira-ignorância das sociedades contemporâneas, desenvolvidas, técnicas, é a morte. Pela primeira vez na história da Humanidade, temos uma sociedade que se funda no tabu da morte, com todas as consequências. De facto, não se pense que a morte já não é problema. Pelo contrário, numa sociedade que se julga omnipotente e é poderosíssima nos meios, mas sem finalidades humanas, de tal modo a morte é problema, o único problema para o qual não tem solução que a solução é precisamente ignorá-lo, viver como se ele não existisse.
As razões do tabu são múltiplas. Fundamentalmente, o que se passou é que a razão esqueceu as suas múltiplas dimensões, ficando reduzida à razão instrumental, à eficiência, ao cálculo, à técnica, e o que importa é o sucesso imediato, o êxito, a juventude, o prazer, a eficácia, o consumismo sem fim. Por outro lado, vai-se impondo a desafeição face à religião, a fé vai rareando. Ora, perante a morte, o Homem faz a experiência de que não é omnipotente, de que não pertence a si mesmo, mas ao Mistério. Assim, perante a erosão da fé, cada vez se acredita menos na vida eterna. Vivemos, pois, numa sociedade sem Eternidade. Ora, sem eternidade, desfaz-se o tecido do tempo, que já não faz texto, pois só ficam instantes que se devoram, na imediatidade do gozo do momento, que se segue a outro momento, na voragem da repetição, do tédio e do sem sentido.
A crise do nosso tempo é uma crise global: financeira, económica, social, política, moral, religiosa. Mas é fundamentalmente uma crise da morte. Esta sociedade, para ser o que é, teve de fazer da morte tabu, esquecê-la.
Para reencontrar a sabedoria, impõe-se voltar ao pensamento sadio da morte. Não para envenenar a vida, mas, pelo contrário, para viver humanamente e em autenticidade. O pensamento sadio da morte dá-nos a consciência do limite, obrigando, portanto, a viver intensamente cada momento como único. A existência e as suas decisões não admitem adiamentos. Por outro lado, perante a morte, somos remetidos para a liberdade e a ética e a urgência da existência autêntica, pois o confronto com a morte leva à distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale. A consciência da mortalidade desperta para a compaixão e a consciência da fraternidade humana: somos mortais; logo, somos irmãos. Quem quiser saber o que vale um homem e o que orienta verdadeiramente a sua vida pergunte-lhe o que faria, se soubesse que ia morrer no dia seguinte.
2. Como disse Ernst Bloch, filósofo marxista, ao mesmo tempo ateu e religioso — ele que esperava que a última música que ouvisse não fosse a das pazadas de terra na sepultura —, “o cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’. Não propriamente graças ao Sermão da Montanha. No século I depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo baptismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com Ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível e representa um acentuado contraste com a nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta anos (porque não dentro de cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?”
Outro grande filósofo alemão, J. G. Fichte, escreveu que o ser humano não deixará facilmente de resistir a uma vida que consistisse em “eu comer e beber para apenas logo a seguir voltar a ter fome e sede e poder de novo comer e beber até que se abra debaixo dos meus pés o sepulcro que me devore e seja eu próprio alimento que brota do solo”; como poderei aceitar a ideia de que tudo gira à volta de “gerar seres semelhantes a mim, para que também eles comam e bebam e morram e deixem atrás de si outros seres que façam o mesmo que eu fiz? Para quê este círculo que gira sem cessar à volta de si?... Para quê este horror, que incessantemente se devora a si mesmo, para de novo poder gerar-se, gerando-se, para poder de novo devorar-se?”
Assim, para o ser humano é tão próprio saber que é mortal como esperar para lá da morte. Há aquelas perguntas in-finitas: Porque há algo e não nada? Quem sou? Para onde vou? Onde estarei, quando cá já não estiver, como inquiria Tolstoi? É insuportável andar, na vida, de sentido em sentido e, no fim, afundar-se no nada. Se tudo desembocasse no nada, que valor teria a distinção entre bem e mal, honestidade e desonestidade, honradez e mentira, verdade e falsidade, justiça e injustiça, já que, no fim, tudo se afundaria no nada e tudo seria o mesmo: precisamente nada?
Há aquela pergunta in-finita, que atravessa a História: quem fará justiça às vítimas inocentes? Há um clamor na História por causa da dívida para com as vítimas da injustiça e do horror. Quem pagará essa dívida? Quem pode fazer a reconciliação com tanta injustiça e sofrimento dos inocentes? Em diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, tão sensível às vítimas da História e à exigência de uma justiça universal cumprida, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o Homem está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavra” convence da necessidade da ressurreição dos mortos e da vida eterna. Perante a alternativa do absurdo ou do mistério, é sensato optar, com razões, pelo Mistério que salva, entregando-se-lhe confiadamente na fé, na esperança e no amor.
A curto, a médio, a longo prazo, todos foram estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos irão estando mortos, e, lá no final, só há uma alternativa, porque todos caminhamos para a eternidade: a eternidade do nada ou a eternidade da vida plena em Deus.
O cristianismo mantém-se ou afunda-se pela verdade e a fé ou não no Jesus que foi crucificado e que é agora, para sempre, o Vivente em Deus. Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no “Deus que ressuscita os mortos“ e que tinham acreditado em Jesus como o Messias continuaram a crer nele, após a sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da sua vida e mensagem por palavras e obras até à morte: que Deus é Amor. Depois da crucifixão, reflectindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, como promessa e esperança de vida plena e eterna para todos. O Deus que tudo criou por amor a partir do nada, a quem Jesus se dirigia como Abbá (Pai/Mãe), não é um Deus de mortos, mas de vivos. E disso deram testemunho até à morte, testemunho que chegou até nós.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado o no DN | 20 ABR 2019
No início da celebração desta Páscoa cristã, em Domingo de Ramos, antes da narrativa evangélica da Paixão de Jesus (que em cada ano é recolhida dum dos três sinópticos, Mateus, Marcos ou Lucas), somos sempre chamados a meditá-la com a ajuda de dois textos bíblicos, cuja leitura precede aquela: o primeiro, extraído do Livro de Isaías, vem lembrar-nos a virtude da fortaleza ; o segundo, tirado da Carta de São Paulo aos Filipenses, irá concluir que a auto aniquilação em serviço dos outros é sinal de vitória do bem sobre o mal, e razão de glória. Não é fraqueza, é fortaleza suprema. Vejamos cada um deles:
Isaías - O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos. Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos, para eu escutar como escutam os discípulos. O Senhor Deus abriu-me os ouvidos, e eu não resisti nem recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o rosto dos que me insultavam ou cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio, e por isso não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido.
Não consta haver aqui qualquer tibieza. Apenas força e profunda consciência dela como dom e aprendizagem.
Paulo - Cristo Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte, e morte na cruz. Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e que toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.
Repara bem, minha Princesa de mim: não há vida sem morte, nem qualquer possível glória sem padecimento e obediência. Por não ter entendido isto do mesmo modo, o Islão primitivo logo se distingue do Cristianismo: apesar de acolher Jesus como um dos seus profetas maiores, e também celebrar Maria como sua mãe sempre virgem, o Corão negará bem expressamente a crucifixão e morte de Jesus, pois que admiti-las seria como aceitar a fraqueza de Deus. As primeiras comunidades cristãs, pelo contrário, desde muito cedo comemoram a Paixão e Morte de Jesus Cristo, sendo o dia aniversário desta, Sexta Feira Santa, dia de muita celebração religiosa, sobretudo na própria comunidade de Jerusalém. Na verdade, aí se situam os lugares dos próprios autos narrados no evangelho de João, cuja leitura é hoje feita na liturgia da Palavra de Sexta Feira Santa, que também compreende mais um trecho do "Servo do Senhor" de Isaías e um passo da carta de Paulo aos Hebreus, assim retomando as lições de Domingo de Ramos ou da Paixão. E nessa tarde da crucifixão e morte do Senhor, esta é lembrada como redentora (a morte de Cristo é a morte da morte) e suscita uma oração universal que confia todos os seres à obra dessa Redenção. Os participantes em tal liturgia vão ainda adorar a cruz como seu símbolo triunfante, rezar o Pai Nosso e comungar no Corpo de Cristo.
Já no sábado imediato, ficam os lugares de culto silenciosos e vazios, como os seus próprios tabernáculos. É dia de silêncio a alimentar a esperança que na Vigília Pascal explodirá em alegria e cânticos de aleluia. Nesse dia, sempre contemplo e medito a descida à mansão dos mortos. Faço-o no mesmo modo em que olhando, por dias sombrios de Inverno, a aparente desolação de campos mudos e tristes, escuto o silêncio a dizer-me que há muita vida ali esconsa, vida que verei quando, colorida e alegre, estalar a Primavera. E é disso que te quero falar hoje. Pertence a uma tradição muito antiga da piedade cristã, sem todavia ter qualquer fundamentação bíblica, com exceção, talvez, de um passo da 1.ª carta de S. Pedro (3, 18-19): O próprio Cristo morreu uma vez só pelos pecados - o Justo pelos injustos - para vos levar a Deus. Morreu segundo a carne, mas voltou à vida pelo Espírito. Foi por este Espírito que ele foi pregar às almas que estavam na prisão da morte... Só um século depois, a literatura patrística comentará o tema. Começo por citar Santo Ireneu de Lyon, e continuarei com as observações de Éliane e Régis Burnet (Décoder un tableau religieux, Paris, Le Cerf, 2018) sobre o fresco de Andrea da Firenze, reproduzido no livro, que representa a descida de Cristo aos limbos ou, se preferires, aos infernos, em Sábado Santo, pintado entre 1365-1368, e que pude ver na capela espanhola de Santa Maria Novella, em Florença). Escreve, na sua Contra as Heresias, IV, 27, 1, aquele Padre da Igreja, do século IV:
O Senhor, o Santo de Israel, pensou nos seus mortos, que dormiam em seus túmulos, e desceu até eles para anunciar a salvação, para os tirar de lá e libertá-los... Continua o casal Burnet: Entretanto, Santo Efrém, o Sírio (+373), acrescenta, num hino litúrgico : «Glóriaa ti que desceste e mergulhaste nas profundezas, para ali ires buscar Adão, que libertaste do Hades, a fim de o conduzires ao Paraíso!» (Carmina Nisebena, 65). E todos os da minha geração se lembram ainda do Símbolo dos Apóstolos ou Credo que aprendemos a recitar ainda pequenos, e em que professávamos a fé em Jesus Cristo que padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos (hoje diz-se "à mansão dos mortos"), ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai, e donde virá julgar os vivos e os mortos...
Continuam então os Burdet: Mas estes textos fornecem poucos elementos suscetíveis de dar lugar a representações iconográficas. Um pretexto virá com o «Evangelho de Nicodemos», obra do século IV:
«Então, o Rei de Glória, esmagando sob a sua Majestade a Morte a seus pés, e prendendo Satanás, privou o inferno de todo o seu poder e reconduziu Adão à claridade da sua luz. E o Senhor, estendendo a mão, fez o sinal da cruz sobre Adão e todos os santos e, pegando na mão direita de Adão, ergueu-o dos infernos. Com todos os santos atrás dele.
Eis aí todos os elementos que serão depois retomados: o esmagamento da Morte e de Satanás; o sinal da cruz sobre os santos; o pegar na mão direita de Adão e o cortejo dos santos em direção ao céu.
Tudo isso é representado no fresco de Andrea da Firenze. E me faz pensarsentir um mistério com que vibro mais intensamente em dias de silêncio, quando o luto e a alegria entre si disputam o meu espaço mais íntimo: algo que me ensinaram quando menino, e dá pelo nome secreto de comunhão dos santos. Jovem ainda, parafraseava para os meus botões uns versos do Alexandre O´Neill que eu dizia assim: "Humanos somos nós todos / desde pequenos / Humanos somos nós todos / e nunca menos"... [Se não me falha a memória, como diria o Nemésio, os versos do O´Neill (eram, ou não dele?) rezavam assim: "Burgueses somos nós todos / desde pequenos / burgueses somos nós todos / ou ainda menos"... Como doutros, na minha memória, a ordem desses versos é arbitrária.]
É claro que te falo de experiências vividas por mim na minha cultura. Mas marcaram-me, e continuo a vivê-las. Entretanto, também fui aprendendo que os primeiros cristãos - pese embora a proximidade histórica com o próprio Jesus Cristo, ou quiçá por isso mesmo - tiveram de ir aprendendo a reler a mensagem de Jesus, como apontado por Enrico Norelli (La Nascita del Cristianesimo, Il Mulino, Bolonha, 2014): Tal mensagem parecia estar ligada à perspetiva da eminência de um tempo em que Deus iria mudar radicalmente a condição dos pobres e dos excluídos. Tal expectativa foi completada pelos discípulos com a espera do regresso glorioso (a "parusia") de Jesus como enviado de Deus. Mas também se gorou esta expectativa, e os historiadores modernos facilmente atribuíram a tal «atraso da parusia» a profunda transformação da mensagem de Jesus: substituiu-se a tensão para a iminência do Reino de Deus pela adaptação temporária ao mundo, por tempo indeterminado, e criaram-se os instrumentos assim necessários. Por mim, Princesa, comecei a olhar pela perspetiva da comunhão dos santos para essa tão piedosa tradição que lembrava, em Sábado Santo, festa tumular, a descida de Jesus à mansão dos mortos, para os ir buscar e levar na sua Ressurreição. Uma grande e feliz Páscoa para os humanos que a morte fez esquecer...
Feliz Páscoa, digo, demos todos nós também esse feliz passo para além, minha Princesa de mim!
Camilo Maria
P.S. - A notícia, violenta e súbita, do incêndio destruidor de Notre Dame de Paris, vem realçar a lembrança de que vivemos no efémero, bem como, paradoxalmente, ao efémero sempre nos atemos, em busca da permanência... A catedral de Paris, por exemplo, esteve para ser demolida, propositadamente, devido ao estado de abandono e decrepitude em que se encontrava, no segundo quartel do século XIX. Salvou-a a popularidade que lhe conseguiu o romance de Victor Hugo, em que Nostradamus e Esmeralda viveram os seus amores no refúgio de um terraço superior do templo. Creio que foi em 1843, que começaram, então, as obras de restauração do monumento antes condenado, agora com a flecha central, creio eu, arquitetada por Viollet Le Duc. Parece que, agora, o incêndio terá começado precisamente em estruturas de novas obras de restauração... Esta memória leva-me a visitar, por fotografias e filmes, já que não posso mais viajar, a exposição Tu me fais revivre, da pintora e pastora protestante Beatrice Hollard-Beau, patente no claustro das Billettes, em Paris, de 11 a 23 deste mês de abril. Diz a própria artista: Reviver é uma longa experiência. É recair e voltar a subir e, a dada altura, tomar consciênciade que, quando pensávamos reviver graças às nossas próprias forças, não revivemos sozinhos... ... Reviver é Deus que nos encontra no meio da Cruz, no meio das nossas cruzes. Deus que nos dá um projeto mais forte do que imagináramos. Creio que é no fundo da Cruz e nas coisas piores que podem acontecer as mais bonitas. É preciso ir até lá, mesmo até à morte. Porque é a morte que nos dá a esperança viva do Cristo vivo.
Muitas vezes me perguntam porque faço sempre votos de Feliz Páscoa e nunca digo Santa Páscoa. Pela simples razão de desejar a todos e cada um a feliz viagem a partir da porta que Jesus abriu para que, passando por ela, caminhemos à descoberta da boa nova que Cristo assim anuncia na narrativa de S. Lucas lida na missa crismal de 5ª feira santa: Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, ao abri-lo, encontrou o trecho em que estava escrito «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Enviou-me a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor». Depois, enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga. Disse-lhes então: «Cumpriu-se hoje mesmo este trecho da Escritura que acabais de ouvir».
O caminho da Páscoa é a libertação. E toda a liberdade implica uma conversão interior, porque quem deixou de ser servo, jamais agirá por ser mandado, mas terá de agir por amor.
No tríduo pascal, entre a celebração do drama da Paixão e a festa da Ressurreição, há um dia mais silencioso do que litúrgico, em que nos retiramos para uma comunhão da humanidade inteira com a morte e a vida, talvez o momento em que mais sentimos esse rasgão que é a condição humana na sua própria consciência de si. Aspiramos a saber tudo e nada afinal sabemos, estamos às escuras, e mesmo a fé só vê o invisível. No sábado santo, também os familiares e discípulos de Jesus, e todos aqueles que o seguiam e aguardavam, se sentem profundamente desamparados. Como quem empreendeu uma longa viagem e chega à beira de um rio torrencial, fundo e largo, sem ponte nem barca. Todos eles se lembram certamente do Cristo crucificado que grita: «Meu Deus, Deus meu, porque me abandonaste?».Chegam-nos então ao coração todos os que sofrem, mais do que tentação, uma experiência do mal, uma vertigem de negação, desespero, incompreensão.
Tenho aqui comigo um exemplar velhinho (de 1950) da Attente de Dieu, pequena colectânea de cartas e outros textos de Simone Weil, que o padre J.-M. Perrin reuniu em 1949. Simone, judia francesa de educação agnóstica, morreu em 23 de Agosto de 1943, aos 34 anos, no sanatório de Ashford, sem ter sido baptizada, ainda que prosseguindo o seu caminho de busca da fé. Diz o padre Perrin, seu confidente e correspondente, que, através dos textos precedendo a sua morte nota-se que ela estaria ainda, em muitos pontos, longe da fé católica na sua plenitude, e que sentia perfeitamente que só a morte a transportaria a essa verdade de que se sabia ainda afastada. Traduzo seguidamente um texto de Simone Weil, que pertence a uma meditação sobre a oração ao Pai Nosso. O trecho respigado é um comentário aos versículos finais (e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal) daquela prece. Para melhor entendimento da inspiração de Simone transcrevo aqui a versão francesa desse passo, que ela traduziu diretamente do grego: Et nous ne jette pas dans l´épreuve, mais protège nous du mal. Termino com a tradução do comentário da filósofa judia francesa, que aqui deixo com votos muito amigos de santa e feliz viagem de Páscoa!
A única provação do homem é ser abandonado a si mesmo ao contacto do mal. O nada do homem é então experimentalmente verificado. Apesar da alma ter recebido o pão sobrenatural no momento em que o pediu, a sua alegria mistura-se com receio, porque apenas para o presente o pôde pedir. O porvir permanece temível. Ela não tem o direito de pedir pão para amanhã, mas exprime o seu receio em forma de súplica. Assim acaba. A palavra "Pai" começou a oração, a palavra "mal" termina-a. É necessário ir da confiança ao receio. Só a confiança traz a força necessária a que o receio não seja causa de queda. Depois de ter contemplado o nome, o reino e a vontade de Deus [recitemos o Pai Nosso], depois de ter recebido o pão sobrenatural e ter sido purificada do mal, a alma está pronta para a verdadeira humildade que coroa todas as virtudes. A humildade consiste em saber que, neste mundo, a alma toda, e não somente o que chamamos eu, a alma na sua totalidade, i. e., também na parte sobrenatural da alma que é Deus presente nela, está sujeita ao tempo e às vicissitudes da mudança. É preciso aceitar absolutamente a possibilidade de que seja destruído tudo o que em nós mesmos é natural. Mas é simultaneamente necessário aceitar e rejeitar a possibilidade de que desapareça a parte sobrenatural da alma. Aceitá-lo como acontecimento que só em conformidade com a vontade de Deus se produziria. Rejeitá-lo como sendo algo horrível. É preciso ter medo disso. Mas que o medo seja como que o acabamento da confiança.
Gosto, eu, de dizer que o percurso da Páscoa é um caminho de confiança.
Começo esta carta por curta tradução de Matsuo Basho (1604-1654), poeta japonês que bem conheces:
meses e dias são
perpétuos passageiros
e viajantes os anos
que se encadeiam
Somos prisioneiros do tempo. Dessa cadeia que nos amarra e arrasta, num qualquer movimento, seja roda circular ou progressão escatológica. Esta manhã, em visita à minha cerejeira do Japão, que continua a florir em tão lindos dias, murmurei outro haiku do Basho que, se bem me lembro, nos diz algo como "todos os anos, as flores que caem ao chão vão sustentar a cerejeira"... O que hoje penso ser apenas aparente - a contradição entre tempo escatológico e tempo circular - será quiçá tão só a diferença do modo da vivência que qualquer de nós possa ter da circunstância de um momento. Em si própria, a circunstância do tempo é a intemporalidade. O tempo mais não é do que um conceito, categoria mental por que construímos a duração. E esta mais não é do que o que vamos conseguindo apreender, isto é, o que vai preenchendo o nosso alcance. O tempo define-se pela nossa presente limitação. A realidade, como o universo, é o infinito, não tem tempo. Nem espaço. Como Deus. "Criador inefável ! "- assim, todas as manhãs, ao começar as aulas, no colégio, os meus colegas e eu nos dirigíamos, rezando, ao invisível, intocável, inapreensível, pedindo-lhe luz...
Hoje, em Domingo de Ramos, ao ouvir outra prece "Deus, meu Deus, porque me abandonaste?", lembro-me dessa oração infantil, e pensossinto que todos fomos abandonados ao nosso tempo de cada um, talvez perdidos no infinito que ainda não alcançamos. Mas a Páscoa é um convite a transpor o tempo que nos circunscreve. Além da desolação de tão incompreensível desgraça e mortandade, à nossa volta, talvez a esperança nos dê a coragem de acreditar. O sustento da vida é a infinita renovação. Talvez por isso me lembre tanto do Bolero de Ravel, quando me ocorre o destino do tempo na intemporalidade... O final dessa peça musical é um inesperado apocalipse. Nenhum de nós conhece o dia nem a hora da revelação, cada um, todavia, saberá como entregar-se.
Nesta Páscoa, chamo a nós, Princesa, esse princípio da filosofia africana ubuntu: Existo porque existimos. Evocando uma declaração de Nelson Mandela: Essa ideia tão africana de que só somos humanos graças à humanidade de outrem, contribuiu fortemente para o nosso desejo universal de um mundo melhor. Não sou "eu", sozinho, quem se pode descobrir- "me eu mesmo", mas somente "nós juntos" que poderemos aprender a conhecer e apreciar respeitosamente "os outros" e "nós mesmos". Aqui entre nós, pergunto, quantas vezes pensamossentimos que o convite pascal é um apelo à ressurreição de todos?