Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O meu Avô Mateus ensinou-me o nome das árvores, como fizera consigo o velho professor José Jorge Rodrigues, de Boliqueime, freguesia que dedica ao velho mestre-escola uma rua junto à praça principal, invocando o pedagogo, para quem não seria possível compreender o mundo e a liberdade sem amar a natureza, conhecendo-a nos seus mais insondáveis segredos. E a minha Avó Ana tinha as melhores mãos do mundo para plantar, enxertar, cuidar do seu jardim e das suas figueiras, que produziam os melhores figos, desde junho até ao Outono. Foi assim possível entender, desde que me conheço, que, antes de tudo a Cultura começa por ser a dos campos, a agricultura, do semear, do colher, do plantar e do cuidar.
Só os humanistas europeus do século XVI começaram a falar de cultura do espírito, para traduzir em língua moderna o que os gregos chamavam paideia e os romanos designavam por humanitas. Lembrei estes ecos de infância ao reler a “A Árvore em Portugal”, obra-prima de Francisco Caldeira Cabral e Gonçalo Ribeiro Telles, reeditada por ocasião do centenário deste pela Associação Portuguesa de Arquitetos Paisagistas. É um livro indispensável e comovente, onde aprendemos “a importância de plantar sempre que possível as nossas árvores espontâneas”, porque “dão-nos sempre melhor garantia de desenvolvimento e permanência, porque é ótima a sua adaptação ao meio”. E, considerando o cuidado da paisagem, “devemos pedir às árvores o mesmo que deseja qualquer pessoa educada: não dar nas vistas”. E lembro, apenas ao sabor da memória, a lista das árvores que meu avô me ensinou, conhecendo-as pelo nome vulgar, pelo porte, pela folhagem, pela cor, pela floração como amáveis seres vivos que nos fazem companhia e nos ajudam. As vetustas oliveiras, em tantos casos com mais de meio milénio de vida, as azinheiras, os carrascos, os carvalhos, os choupos, os loureiros, os medronheiros, os pinheiros-mansos, as palmeiras-das-vassouras, os sobreiros, as frágeis amendoeiras, amargas e doces, as variadas figueiras, com o complexo e misterioso processo de “toque”, considerando que a tradição mais antiga diz que são estas as verdadeiras árvores do paraíso, até às generosas alfarrobeiras, que nos podem dar tudo, desde a sombra e fixação do solo, à diversidade do fruto. E continuamos com o castanheiro, o damasqueiro, a laranjeira (célebre até ao Levante mediterrânico, onde a laranja se designa como portugália), a nogueira, a nespereira, o pinheiro-bravo, mas também a amoreira (que nos afadigávamos a descobrir, por causa dos nossos bichos-da-seda famintos) – eis o mundo que se nos ia revelando nas deambulações campestres, numa apaixonante e inesgotável descoberta.
Em tantas conversas, Ribeiro Telles insistia na perceção de que, entre nós, “a mata cobria outrora toda a extensão do nosso território”. “Não percebemos a árvore sem adivinhar o seu forte sistema radicular, não entendemos o prado sem sentir sob ele a vivificante humidade do solo”. A paisagem é a segunda natureza, que “garante uma ética de que fazem parte o tempo e a perenidade”. A floresta portuguesa é a mata, numa ligação fecunda entre o Mediterrâneo e o Atlântico. “Portanto, a destruição da mata não pode ir além de um certo ponto, sem comprometer gravemente o equilíbrio ótimo para o Homem”. Quando no Conventinho da Arrábida avistamos a paisagem magnífica do Mediterrâneo no Atlântico, e lembramos os poemas de Frei Agostinho da Cruz, compreendemos o que Gonçalo escreveu na revista “Cidade Nova” em 1956: “O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante: pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza”. E volto às antigas caminhadas remansosas e ao percurso cadenciado que levava a entender a magia da paisagem como essência do património cultural - ali está a antiga azinheira, acolá a nespereira que era a perdição dos estios de outrora…
A guerra da Ucrânia está a pôr em grave perigo um património cultural de valor incalculável, que aqui referimos. É a humanidade que está em causa, uma vez que a memória histórica é a memória das pessoas e das culturas.
CULTURA EM PERIGO! Quando o património cultural está em perigo é a própria humanidade a estar em causa. E temos insistido em que não falamos de pedras mortas, mas de pessoas, como pedras vivas, na expressão do “nosso” António Sérgio, mas também de Rabelais. Longe do entendimento tradicional de um património visto como referência do passado, falamos de uma realidade viva, que abrange transversalmente todos os domínios dos direitos humanos. Quando a Diretora-Geral da UNESCO Audrey Azoulay lançou um dramático alerta a propósito dos bombardeamentos indiscriminados a que temos assistido nas últimas semanas na Ucrânia, afirmou expressamente: “Devemos salvaguardar este património cultural, como testemunho do passado mas também como vetor de paz para o futuro, que a comunidade internacional tem o dever de proteger e preservar para as gerações futuras. É também para proteger o futuro que as instituições de ensino devem ser consideradas santuários”.
De facto, o apelo envolve os monumentos históricos, mas também as escolas e as instituições da ciência e da cultura. Lembramo-nos do hediondo assassinato de Khaled Al Assad, estudioso e guardião de Palmira, que demonstra a ligação íntima que se estabelece naturalmente entre a defesa dos direitos das pessoas concretas e a salvaguarda da sua memória cultural e histórica. Como se sabe, quando se começam por queimar livros ou a destruir a memória humana, acaba-se por matar as próprias pessoas. No fundo, a criação cultural, a sua preservação e a sua comunicação têm a ver com a essência do ser humano. O avanço na UNESCO e no Conselho da Europa relativamente aos conceitos de património cultural e de direitos culturais tem contribuído, de facto, para ligar os direitos da Declaração Universal de 1948 à vida e à dignidade humana no sentido mais essencial. O caso da Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005) é bem demonstrativo disso mesmo. Por isso, o património cultural envolve direitos e deveres, não retrospetivos mas prospetivos, abrangendo o presente e o futuro, de modo a acrescentarmos valor ao que recebemos das gerações que nos antecederam. E o que está hoje em causa no tocante à necessidade de respeitar a Carta das Nações Unidas é a defesa de uma verdadeira cultura de paz e de respeito mútuo. João XXIII disse-o claramente na Encíclica “Pacem in Terris”.
DIREITO PATRIMONIAL COMO DIREITO HUMANO Quando um tirano viola claramente o direito internacional comummente aceite, e até se propõe erradicar da face da terra um Estado soberano e um povo, de um modo unilateral, recusando o Direito e a própria História, compreende-se que a invocação de direitos culturais assuma uma importância insofismável. Falamos dos fundamentos dos valores éticos, morais e jurídicos. Julgar que se pode tornar a Carta das Nações Unidas letra morta, esquecendo garantias essenciais como o primado da lei, o multilateralismo, a estabilidade de fronteiras, a soberania legitima, ou o direito de fazer a paz e a guerra são gravíssimos atentados de natureza humanitária, que tocam a essência da memória cultural dos povos e da partilha de um património comum da humanidade. Desde 1945 que a dúvida se não punha, e qualquer incerteza neste domínio a todos prejudicará, uma vez que o que os direitos protegem, os direitos garantem; o que os deveres salvaguardam, os deveres consolidam. O primado do direito a todos interessa, porque assenta no respeito mútuo.
A Ucrânia conta atualmente com diversos bens culturais e um natural, declarados como Património da Humanidade pela UNESCO. Todos estão, agora, diretamente ameaçados: a Catedral de Santa Sofia de Kiev, conjunto de edificações monásticas e o Mosteiro de Petchersk,, símbolo da Nova Constantinopla, de um valor espiritual e unificador incalculável (inscrito em 1990); o Conjunto do Centro Histórico de Lviv, onde que se encontra praticamente intacta a topografia urbana medieval, a que se acrescentam as construções barrocas e posteriores (inscrito em 1998 e 2008); Dezasseis Tserkvas de madeira da região dos Cárpatos, nos territórios da Polónia e Ucrânia, trata-se de templos da igreja ortodoxa tradicional (inscrito em 2013); o Arco Geodésico do astrónomo Friedrich Georg Wilhelm Struve (realizado entre 1816 e 1855), abrangendo dez países, desde o Báltico ao Mar Negro (inscrito em 2005); a Residência dos Metropolitas da Bucóvina e da Dalmácia em Tchernivtsi, junto da Roménia e da Moldávia, do arquiteto checo Josef Hlavka, reflexo da política de tolerância religiosa mantida pelo Império Austro-húngaro (inscrito em 2011); a Cidade Antiga de Quersoneso na Crimeia, que apresenta os restos da cidade fundada pelos gregos dóricos no século V a.C. no norte do Mar Negro, importante centro vinícola envolvendo relações entre os impérios grego, romano, bizantino com referências atá ao século XV (inscrito em 2013); e, no domínio natural, as Florestas Primárias de faias dos Cárpatos, abrangendo 12 países (inscrito em 2007). Além destes casos, refira-se o Centro Histórico de Chernigov, perto de Kiev, agora sob ameaça direta, com referência à célebre Catedral da Transfiguração do século XI. Há já a lamentar a destruição confirmada e irreversível do museu de Ivankiv, localidade a noroeste de Kiev. A instituição apresentava 25 obras da Maria Prymachenko (1908-1997), artista fortemente influenciada pelo folclore ucraniano, elogiada por Pablo Picasso, pelo seu caráter percursor. Segundo a imprensa local poucas obras terão sido salvas por um cidadão local, que enfrentou sozinho as chamas. Note-se que a grave situação no terreno levou alguns especialistas, a duvidarem do efeito positivo do pedido de proteção, com receio de atrair atenções…
ESCUDOS AZUIS PARA PROTEÇÃO Entretanto, representantes da UNESCO e das autoridades ucranianas decidiram colocar Escudos Azuis nos bens patrimoniais ameaçados na zona do conflito. Além dos casos referidos, foi também assinalado o centro da cidade e o porto de Odessa. Esta prevenção insere-se na aplicação da Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, assinada na cidade de Haia em 14 de maio de 1954. O Comité Internacional do Escudo Azul (Blue Shield ou Bouclier Bleu) foi fundado em 1996 pelo ICOM (Conselho Internacional dos Museus), ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios), Conselho Internacional dos Arquivos e Federação Internacional dos Bibliotecários e Instituições com o fim de assegurar a proteção do património cultural ameaçado por guerras e catástrofes naturais. O acompanhamento deste tema torna-se neste momento melindroso em virtude de o Comité do Património Mundial ser presidido por Alexander Kuznetsov, de nacionalidade russa, estando prevista em junho uma reunião na cidade de Kazan do referido Comité, o que é fortemente contestado. O fundamental é deixar claro que é motivo muito sério de preocupação por parte das organizações multilaterais o facto de haver na comunidade internacional dificuldade evidente em fazer prevalecer a perspetiva dos direitos humanos, dos valores democráticos e a ligação efetiva destes ao desenvolvimento humano e à cultura.
O caso de Lourdes Castro merece especial atenção. A sua obra e a sua vida confundem-se, permitindo-nos compreender plenamente a amplitude dos conceitos de cultura e de património cultural.
UM NOME FUNDAMENTAL
Recebemos a palavra cultura do humanismo renascentista, a partir de uma etimologia tirada da atividade agrícola. Falamos de uma sementeira, de lançar a semente à terra e de colher o que a natureza nos dá. Enquanto os gregos falavam de “paideia” e os romanos de “humanitas” era da troca de saberes e experiências e da aprendizagem que se tratava. Já relativamente à ideia de património cultural, está em causa o dever de preservar o que vem dos nossos pais, não apenas o que recebemos das gerações que nos antecederam, mas também o que acrescentamos e aperfeiçoamos, para legar a quem nos vai suceder. Daí o conceito dinâmico que abrange as pedras vivas e as pedras mortas, a natureza e a paisagem, a criação contemporânea e a evolução das técnicas e instrumentos, e no momento presente o mundo digital. Lourdes Castro compreendeu tudo isso de um modo exemplar. “A surpresa do desenho, a simplicidade da forma, o contorno da sombra fascinou-me tanto que ainda hoje para mim é nova” (como testemunhou a Joana Galhardo Frazão). Ao seguirmos o seu percurso é impressionante o modo como soube trilhar caminhos absolutamente inesperados e novos. Com o grupo “KWY” (Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, José Escada, João Vieira, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo), abriu horizontes além-fronteiras, ultrapassando a dimensão paroquial, libertando-se da censura e nunca mais parou no caminho criador através do repensar das raízes. Em “O Grande Herbário das Sombras” reencontrou a Natureza e a vegetação da Ilha da Madeira, domínio da laurissilva, sua terra natal, com uma centena de espécies botânicas, que permitem ligar o labor da artista à criação essencial e transcendente. Como recordou José Carlos Seabra Pereira, a obra envolve “a imanência do mundo criado e a Transcendência que lhe dá sentido último”. É o dom da vida que está em causa, como fica demonstrado no filme “Pelas Sombras” de Catarina Mourão (2010), no qual se apresenta o encantamento “com a magia no quotidiano das coisas”. Por isso, a artista afirma: “a minha pintura é esta: o viver, o estar cá”. E assim a sua arte foi-se tornando o espaço à sua volta. “Não a posso transportar. Ela nem quereria mudar de sítio”.
A ARTE NUNCA FOI SÓ UM FAZER
José Tolentino Mendonça, graças a quem devo ter conhecido pessoalmente Lourdes Castro, afirmou que, para ela, “a arte nunca foi simplesmente um fazer. A arte era um intransigente pensamento sobre o estar. Por isso, não deixa apenas obras que podemos ver nos museus de arte contemporânea. Ela deixa uma visão. E tal constitui um facto político raro”. Lembrando o “Teatro de Sombras”, verdadeiro património imaterial posto em prática primeiro com René Bertholo e depois com Manuel Zimbro, trata-se de arte em movimento, e recordo a conversa que tivemos, sobre como foram os primeiros passos no Centro Nacional de Cultura, em 1954, com José Escada. Não por acaso, o Centro era uma casa onde o teatro tinha uma especial importância, sob a influência extraordinária de Fernando Amado e de Almada Negreiros. E Lourdes Castro, no tempo da fugaz passagem em Belas-Artes, começou a fazer teatro com Amado no Centro, e foi no espaço do teatro que a jovem começou por apresentar os primeiros passos nas artes plásticas. E vem à memória a peça “Antes de Começar” de Almada Negreiros, encenada por Fernando Amado, nos princípios que conduziriam à criação da “Casa da Comédia” e à amizade que se prolongará no tempo, pela vida fora, com o pintor Manuel Amado, companheiro, com sua mulher Teresa, em férias e viagens na Madeira e Porto Santo. E está aqui a preciosa chave, capaz de ligar a descoberta das sombras, a representação teatral e a paixão pela vida. E, ainda para mais, há o encontro simbólico entre a memória do primeiro modernismo, com Almada Negreiros ou a lembrança de Fernando Pessoa, muito presente nesse tempo e no grupo, quando o poeta do “Livro do Desassossego” começava a ser descoberto, e o papel pioneiro de um outro modernismo, totalmente novo, da geração de “KWY”. E foi essa pulsão vital que levou Lourdes Castro a realizar esses fantásticos livros de artista, que explicou simplesmente – “porque havia tesouras, havia papel, havia tempo, gostava de livros…”. E, ao apresentá-los, Paulo Pires do Vale compreendeu bem como a artista continuou a criar, mesmo quando se retirou da intervenção ativa. “Na verdade, não deixou de criar”, continuou, sim, a “transformar a própria vida”, a “dar-lhe maior atenção” (Público, 9.1.22). E na exposição “Tudo o que Eu Quero”, Helena de Freitas e Bruno Marchand, na Gulbenkian, puseram em destaque as sombras na sua múltipla dimensão, absolutamente singular e inovadora – silhuetas bordadas em lençóis brancos, retratos de amigos em plexiglas, flores e folhagens. Foi da realidade viva que a artista partiu, através de uma imaterialidade que constituiu a procura da essência da própria vida. “As suas sombras tornam-se progressivamente mais leves. A presença aprofunda-se na ausência e cumpre-se no desaparecimento” (Anne Bonin).
O TEATRO DE SOMBRAS
José Tolentino Mendonça refere três momentos no caminho de Lourdes Castro. “A primeira etapa é aquela que vai até ao ‘Teatro de Sombras’ e constitui talvez a parte mais reconhecível da sua produção artística”. A segunda etapa foi a do movimento das sombras, como se uma parede deixasse de ser um obstáculo, descobrindo-se no branco do muro intransponível uma passagem na transparência - como Lourdes procurou demonstrar ao seu amigo quando o surpreendeu a explicar como se compreende o espaço. E lembrei-me, ao ler esse relato, do enigma que sempre há nos jardins japoneses, como em Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen, representação do mundo, na história contada por João Bénard da Costa no filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes, e revivida na viagem japonesa que fiz com Tolentino Mendonça. Também então não pudemos descobrir a décima quinta pedra, sendo-nos feita a pergunta sobre se compreendêramos tudo. O certo é que há sempre enigmas sem solução. Por fim, a terceira etapa foi a dos jardins madeirenses – a Praia Formosa, a Quinta do Monte, o lugar de exílio de Carlos de Habsburgo, e o Jardim do Caniço… De facto, o jardim tornou-se a própria obra (cf. Expresso, 14.1.22). “O meu jardim é a minha tela”. A Natureza é que tudo faz. Haveria lentamente que entrar nesse ritmo. Lourdes Castro preparava-se, afinal, para a última viagem, em direção ao Jardim das Nuvens. A obra de arte deixara de se limitar a um espaço contido, às fronteiras de uma tela ou de um lençol, abriam-se os horizontes, e não havia fronteiras intransponíveis nesse teatro de nuvens.
“Le Musée Imaginaire” de André Malraux (1947) é um clássico, no qual o seu autor nos fala da nova relação que se estabeleceu entre arte e sociedade nos tempos atuais.
O MUSEU TRANSFORMA-SE
“A nossa relação com a arte, ao longo de mais de um século, não parou de se intelectualizar. O museu põe em questão cada uma das expressões do mundo, o que pressupõe uma interrogação sobre o que reúne”. É André Malraux quem o diz, cidadão do século XX, romancista comprometido, lutador pelas liberdades, referência do progressismo social, criador no pós-guerra nas modenas políticas culturais, ao lado do General De Gaulle. O prazer do olhar, a sucessão e a aparente contradição das escolas levam-nos à tomada de consciência “duma procura apaixonada da recriação do universo perante a Criação”. O museu é, assim, lugar onde se dá maior ênfase a uma elevada ideia de humanidade. Mas, quando o visitamos, temos consciência de que apreendemos apenas uma parte do conhecimento. Malraux lembra que um crucifixo romano, uma “Madonna” de Cimabué ou uma Athena de Fidias começaram por ser peças realizadas com fins específicos para templos, memoriais, invocações, e tornaram-se obras de arte, sem outra função ou vocação senão isso mesmo. E os museus, mercê da nossa relação com a obra de arte, ganharam uma importância que antes não tinham. Antes dos museus ganharem essa proeminência, o conhecimento da criação artística era limitado. As viagens artísticas eram um privilégio. Muito poucos tinham conhecimento amplo dos melhores exemplos de arte. Alguns conheciam uma parte pequena dos territórios mais ricos – como a Espanha, a Itália e a Alemanha, outros nem sequer isso. Conhecemos as viagens de Stendhal ou Gautier, mas Baudelaire e Verlaine não tiveram uma visão global da criação dos artistas mais significativos. Do século XVII ao XIX apenas havia divulgação de obras de arte através de gravuras, com naturais limitações, quanto à cor, à dimensão, à profundidade e ao relevo.
TEMPO DE DIFUSÃO
Com o aperfeiçoamento das reproduções fotográficas e de impressão, um estudante passou a dispor da reprodução a cores da maior parte das obras magistrais, além das referências mais antigas, das esculturas indiana, chinesa, japonesa ou pré-colombiana, da arte bizantina ou dos frescos romanos. E o “museu imaginário” foi permitindo termos acesso à diversidade da criação e à sua evolução não só pelo conhecimento da criação artística da humanidade, mas também pela evolução da mentalidade dos artistas e pela sua crecente autonomia criativa. Assim, os verdadeiros artistas deixaram de seguir os valores dos poderosos de quem dependiam por via das encomendas e os escritores românticos opuseram-se aos clássicos, designadamente na apreciação da pintura. Nasceu a presença dominadora do pintor. Manet, Goya ou Daumier procuram pôr fim uma representação ficcionada. Surge a harmonia dissonante, os esquissos de Delacroix, Constable ou Corot abrem lugar à intervenção dos sentidos. A aventura impressionista interioriza interpretações não orientadas pela imitação… E a pintura torna-se o valor supremo para o pintor. O artista do século XIX rompe, deste modo, com quatro mil anos de arte. As formas recusam a imitação. Só estamos perante arte quando se verifica a libertação de um espaço circunscrito. É o que se passa com o cinema, em vez de fotografar uma peça de teatro, regista de uma sucessão de instantes. O meio de reprodução do cinema é a fotografia em movimento, mas o seu meio de expressão é a sucessão de planos. E deste modo encontramo-nos perante um meio privilegiado para a ficção. É o movimento que impera – e o nascimento da arte moderna corresponde ao fim do primado do antigo, da transmissão e da reprodução. Deixa de funcionar a ideia de posse da obra de arte. E a fotografia revela o mais vasto domínio artístico que o homem jamais conheceu. O estilo torna-se expressão legítima da intenção criadora. A singularidade do artista torna-se o carácter da arte. Se o Museu era a afirmação, o Museu Imaginário torna-se a interrogação.
MUDANÇA PROFUNDA
A metamorfose profunda que presenciamos mostra-nos que o passado chega até nós sem cor. As estátuas gregas perderam a cor, tornaram-se brancas. Os deuses ressuscitam sem a sua divindade. E a pintura é a poesia que se vê. Renoir e Chagall demonstram-no. Mas do século XVI ao XIX a natureza representa em pintura o domínio da verdade. Contudo, o cubismo rompe com a natureza. Deparamo-nos com a metamorfose do olhar – e o Museu Imaginário orienta a transformação dos verdadeiros museus e da relação com a arte. E a pouco e pouco, as obras-primas passam a referir-se a uma arte universal. É o tempo que se exprime. Ao entrar no museu uma obra torna-se obra de arte – e as linguagens da arte não se assemelham à palavra, mas são irmãs da música. Eis o património cultural como realidade viva.
Orhan Pamuk diz-nos que o património cultural se assemelha ao amor, enquanto atenção profunda e compaixão sentida.
«O MUSEU DA INOCÊNCIA»
“Enquanto passearem de vitrina em vitrina e de caixa em caixa, observando todos estes objetos”, compreenderão como o escritor pôde ficar a olhar para a protagonista do romance durante um jantar ao longo de oito anos - é Orhan Pamuk quem o diz em relação ao seu “O Museu da Inocência”. O amor é como o património cultural, uma atenção profunda e uma compaixão sentida. Na sequência do romance, Pamuk criou um museu em Istambul de pequenos e diversos objetos que se relaciona com o encontro entre os afetos e as lembranças da vida quotidiana. De facto, “O Museu da Inocência” tem a ver com um amor total, persistente, sereno, possível em cada momento e depois tornado impossível. Podemos dizer muito sobre o património cultural, mas ninguém o compreenderá se não o considerarmos uma realidade viva. E eis-nos perante a melhor metáfora sobre o património, a herança e a memória. A identidade não pode ser um quarto escuro, um lugar sem janelas para o mundo – como muitos pretendem. Porque o autocomprazimento esquece, afinal, que só nos compreendemos se entendermos que o outro é a outra metade de nós, como afirmou o Padre Matteo Ricci. Os nacionalismos esquecem, contudo, a essência do patriotismo, que é aberto e disponível, capaz de aceitar as diferenças e de as tornar fatores de enriquecimento pessoal e mútuo. Patriotismo significa afinal amar as raízes e dar-lhes asas para o futuro, a partir da compreensão do horizonte como limite. “Porque nada pode ser tão surpreendente como a vida. Exceto a escrita. Exceto a escrita, sim, evidentemente, exceto a escrita que é a única consolação”. O património como um museu ou como uma tradição, é um lugar de consolação, também porque é onde encontramos objetos ou referências antigas ou novas que amamos, mas sobretudo porque perdemos a noção de tempo. Falo de um tempo fugaz e imediato, porque ganhamos o conceito de duração. E desejamos também a procura melancólica do diálogo entre hábitos, afetos, tradições e culturas e isso leva-nos a considerar hoje o património cultural como uma permanente metamorfose.
CELEBRAR A MEMÓRIA
Devo dizer-vos que aquele tempo que passei em Estrasburgo com os meus colegas na feitura da Convenção de Faro de 2005 correspondeu a mais do que um exercício normativo, mas a uma verdadeira interrogação sobre o futuro, quando estava bem fresca a memória de uma guerra como a dos Balcãs. Parece um paradoxo tratar do património cultural e pensar no futuro, mas não há contradição alguma nisso, uma vez que é a interrogação sobre a eternidade que está em causa. São as marcas da humanidade com todas as suas diferenças que vamos encontrando. Como definir, afinal, o património como realidade comum e fator de paz? Foi já há quinze anos e parece que foi ontem – e em cada momento que reconhecemos a atualidade do documento (a Convenção Quadro) podemos perceber que as dificuldades que sentimos e tivemos foram positivas, uma vez que permitiram anteciparmos, prevenirmos, corrigirmos e superarmos a tentação da obra fechada. A Convenção designa-se como quadro porque lança um campo novo e é uma obra aberta que recusa, porém, o aleatório, visando reconhecer um elo que torne a humanidade e as humanidades fatores de emancipação e de justiça – distinguindo a “excelência autêntica das formas de parasitismo que hoje proliferam como cogumelos”, no dizer de George Steiner. Mas se falo de obra aberta, não esqueço a compreensão dos limites e a exigência permanente de uma aprendizagem que permita a troca de conhecimentos e a ligação entre exemplo e experiência… Sempre com os limites do horizonte presentes… Deparámo-nos, porém, com a desconfiança de alguns relativamente à ideia de comunidade, e daí a nossa preocupação de salvaguardar a definição do Património cultural como “conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução”. Nesta perspetiva, “inclui todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo. Isto, enquanto “uma comunidade patrimonial é composta por pessoas que valorizam determinados aspetos do património cultural, que desejam, através de iniciativa pública, manter e transmitir a gerações futuras”. Partimos da singularidade e reconhecemos a liberdade como valor primeiro que nos leva à dignidade, ao bem comum, a fraternidade e à justiça.
CULTURA E PATRIMÓNIO
Estão na ordem do dia o património material e imaterial, a natureza, a paisagem, a tecnologia e o património digital, que apenas têm pleno sentido e fecunda virtualidade se se ligarem à criação contemporânea e se forem oportunidade de direitos e responsabilidades. O Ano Europeu do Património Cultural 2018 pôde pôr as escolas, as comunidades educativas em diálogo, sempre escolhendo o próximo e o mais distante, a nossa terra e a terra dos outros que nos contemplam. E agora, nesta tremenda pandemia, percebemos melhor o valor da cultura, que corresponde à compreensão do essencial, devendo preservar o cuidado do que é permanente. Quem há um ano pensaria chegarmos onde chegámos – com um choque entre o que julgávamos elementar e o que se tornou mais raro. E que podemos concluir? Que a liberdade exige que se revalorize a cultura e que aquilo que tem mais valor é exatamente essa arte que não tem preço, a começar na vida. A reconstrução económica obriga a que a cultura, como fator de tomada de consciência da liberdade, ponha a economia ao serviço das pessoas. O sentido de responsabilidade exige-nos que sejamos capazes de colocar um dique numa pandemia descontrolada. Isso obriga a verdade, vontade, resistência e recusa da facilidade. Temos de saber que o domínio de nós mesmos é a única maneira de recuperarmos a liberdade, protegendo-nos mutuamente – e esse é um desafio cultural. A maturidade significa sermos capazes de concentrar esforços e não de apostar na ilusão. Património cultural significa sermos nós, compreendendo os outros e fazendo da autonomia força e complementaridade. A cultura tornou-se mais importante como sinal de criatividade e apelo de justiça. E desejam uma ilustração nesta mágica Convenção de Faro do que falamos, quando falamos de património cultural como realidade viva? Veja-se como o “Guia de Portugal” de boa memória fala das nossas chaminés algarvias, símbolos da nossa especificidade: “canudos, caixinhas perfuradas, espigueiros, coruchéus, minaretes, zimbórios, agulheiros, chapéus de bico, turbantes, numa exuberância decorativa que revela a persistência do gosto e da tradição mouriscas e a intenção deliberada de fazer diferente, caprichando cada qual na fantasia mais pródiga mais imaginosamente sugestiva”… Aqui se encontram singularidade, memória e criação.
Comemorou-se em Faro na última semana os 15 anos da Convenção-Quadro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea celebrada no âmbito do Conselho da Europa, cuja génese recordamos.
DISCURSO HISTÓRICO
Ao falar na Universidade de Zurique, em setembro de 1946, Winston Churchill apelou para “uma espécie de Estados Unidos da Europa”. Do que se tratava não era de repetir a experiência histórica de além-Atlântico, mas de pensar as bases de um acordo estável de paz no velho continente, de modo a evitar a repetição das causas dramáticas que tinham conduzido aos conflitos europeus do século XX. É verdade que a Europa viveu muitos séculos mergulhada em conflitos internos, mas nenhum tinha tido expressão mundial, com as consequência tremendas em vítimas e destruição como aquele terminado em 1945. Sobretudo, havia que lembrar o que tinha sucedido depois do Tratado de Versalhes de 1919, em que a humilhação dos impérios vencidos tinha dado lugar a uma vingança, ainda mais sangrenta e destruidora do que o conflito provisoriamente terminado em 1918. Mas, segundo Churchill, havia que saber como começar. E a esta pergunta procurou responder, dizendo que tinha uma proposta que iria deixar perplexos os seus ouvintes. “A primeira etapa para a recriação da família europeia seria uma parceria entre a França e a Alemanha”. De facto, não poderia haver um ressurgimento da Europa sem uma França espiritualmente grande e uma Alemanha também espiritualmente significativa. E o apelo de Churchill para a reconciliação entre a França e a Alemanha Ocidental, como prelúdio de uma Europa unida, era feito sob a sombra de um “horrível agente de destruição”. E esse era a bomba atómica e o conflito nuclear. A ser utilizada pelas nações em guerra, a bomba não só poria fim a “tudo o que chamamos civilização”, como poderia ter um efeito destruidor de todo o globo e da humanidade. Daí a urgência em procurar acabar com um conflito ancestral entre as duas nações da Europa Ocidental. O processo teria de começar imediatamente, e corresponderia a uma nova organização de paz. Mas não seria suficiente apenas um processo de reconciliação na Europa. Esse trabalho difícil exigiria “amigos e patrocinadores”, a começar na Grã-Bretanha e na Comunidade Britânica, bem como nos poderosos Estados Unidos da América, acrescentando ainda, que se esperaria que a Rússia Soviética também devesse colaborar, para que tudo pudesse funcionar estavelmente. Churchill teve, alás, a preocupação de se referir à União Soviética não como um permanente adversário, mas como um parceiro potencial. O certo é que, apesar da surpresa, a ideia de Winston Churchill foi, no essencial, bem recebida, apesar de dúvidas e perplexidades. Em bom rigor, Churchill lançava para o tabuleiro diversas pistas, desde uma grande organização intergovernamental para cuidar dos direitos humanos e da cooperação económica até àquilo que veio a ser, por outro lado, uma organização supranacional de tipo novo, correspondendo à ideia de um Mercado Comum, mais do que uma mera união aduaneira, ao qual o Reino Unido aderiria apenas na década de 1960.
ANTECIPANDO A COOPERAÇÃO
Foi este discurso que antecipou a necessidade de um Conselho da Europa, mas pressupôs a criação de condições de equilíbrio de poderes no velho continente. Daí a defesa da participação da Alemanha Ocidental num projeto que permitisse ao centro da Europa defender-se das ambições da União Soviética e do bloco de leste. Se nos anos 1919 e 1920 a Sociedade das Nações (SDN) saíra de uma ideia de democratização, a verdade é que a solução encontrada não deu a resposta que se exigiria, originando o contrário do pretendido – a vitória dos totalitarismos. Com os seus oito pontos, a Carta do Atlântico de 1941 foi, com mais realismo, o complemento dos catorze pontos da declaração W. Wilson. Para estabelecer uma relação democrática duradoura importaria que em cada país o poder fosse exercido por força democráticas, com pluralismo e eleições livres, com alternância no poder – e as características do Estado de direito: primado da lei (rude of law); e a legitimidade da origem e do exercício. Se a solução da SDN tinha falhado, haveria que encontrar um quadro institucional estável que não só prevenisse os conflitos, mas também que definisse um quadro democrático, de nível interno e externo - a começar nas Nações Unidas (ONU), como um sistema de freios e contrapesos, a completar nas organizações de cooperação e de defesa da democracia e dos direitos fundamentais nos diversos Continentes. Como defendera Kant, no seu ensaio sobre a “Paz Perpétua”, haveria que tornar coerente a organização interna e a sua inserção internacional no sentido da salvaguarda da paz e do respeito mútuo entre os cidadãos.
O CONGRESSO DE HAIA DE 1948
Devido à iniciativa de diversos movimentos federalistas, o Congresso da Haia reuniu em maio de 1948 mil delegados representando dezanove Estados e alertou as opiniões públicas para a necessidade de haver um esforço comum europeu. A Mensagem aos Europeus adotada pelo Congresso é um manifesto vigoroso, no qual se fazem sugestões precisas: a criação do Tribunal Supremo encarregado de pôr em prática a Carta Europeia dos Direitos Humanos, uma Assembleia europeia de representantes das forças vivas das nações, assim como a criação um Centro Europeu da Cultura. O Conselho da Europa, cujo Estatuto foi assinado um ano mais tarde, criando-se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a Convenção com o mesmo objetivo, naturais corolários das recomendações do congresso Europeu da Haia. Assim, os fundadores do Conselho da Europa ensaiaram o esforço de dar vida a um ideal de cooperação europeia. Apesar de haver perspetivas mais avançadas e outras mais cautelosas, o Conselho da Europa surgiu como um verdadeiro percursor do ideal europeu – sendo a primeira organização a consagrar uma representação parlamentar ao lado da representação dos governos. Apesar de tudo, a regra da unanimidade limitou a influência do Conselho da Europa no velho continente. No entanto, se as perspetivas poderiam parecer favoráveis na Europa do fim da Guerra (1945), dois anos depois, os vencedores estavam desunidos, havendo dois blocos hostis em confronto, emergia um modo de guerra, diferente do habitual, designado como “guerra fria”, com dois blocos de superpotências (EUA e URSS). É o tempo do Plano Marshall, que visava assegurar a reconstrução das economias do continente europeu e que permitiu um reforço da coperação entre os países do velho continente. Daí o Tratado de Washington de 16 de abril de 1948 e a constituição da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), hoje OCDE, Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico, já com um âmbito não exclusivamente europeu. O ressurgimento da Europa vai, pois, corresponder à assistência externa na reconstrução, mas também a um movimento de unificação completamente novo na história do continente. No plano militar, o Tratado de Bruxelas (17 de março de 1948) e o Pacto do Atlântico (4 de agosto de 1949) completaram a cooperação no velho continente, numa perspetuiva integrada. Se a ideia é antiga, vinda sobretudo da reflexão utópica do Duque de Sully, Abade de Saint-Pierre, de Condorcet, Saint-Simon ou Coudenhove Kalergi e de outros precursores, como Aristide Briand, foi sobretudo o efeito da guerra que obrigou a gestos concretos de sobrevivência, centrados na igualdade entre Estados, na cooperação reforçada, envolvendo vias complementares – a intergovernamental, no Conselho da Europa e supranacional nas Comunidades Europeias e hoje na União Europeia.
Nos anos oitenta do século XX, a França criou as Jornadas de Portas Abertas dos monumentos históricos que o Conselho da Europa adotou com o apoio da União Europeia em 1991 como Jornada Europeias do Património, que Portugal coordenou no início dos anos 2000 graças a Helena Vaz da Silva no Centro Nacional de Cultura. Este ano o tema é “Património e Educação – Aprender para a Vida” com os objetivos de fazer conhecer melhor a riqueza e a diversidade culturais da Europa, suscitar o interesse pelo património cultural, lutar contra o fechamento e a xenofobia e encorajar a abertura ao outro e a outras culturas e informar os cidadãos e a sociedade sobre a necessidade de proteger o património cultural como realidade viva – de acordo com a Convenção Cultural Europeia, assinada em Paris a 19 de dezembro de 1954 e hoje bem viva na Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea assinada em Outubro de 2005 em Portugal. Cada presente reconstrói o passado histórico como sinal perene da cultura e da dignidade humana. Está em causa não a invocação do passado, mas a compreensão da memória como sinal de humanidade e de aprendizagem, enquanto emancipação e desenvolvimento.
A mais antiga Convenção sobre proteção de monumentos refere-se a conflitos armados. De facto, a Conferência Internacional da Paz, realizada em Haia em 1899, estabelece acordos ou convenções sobre a resolução pacífica de conflitos internacionais, dispondo que em caso de “cercos e bombardeamentos” devem ser “tomadas todas as medidas necessárias para poupar os edifícios dedicados à religião, à arte, à ciência, à assistência e hospitais”. Estas convenções de 1899 viriam a ser revistas e aumentadas em 1907.
Então passa a referir-se, expressamente, além dos edifícios citados, os ”monumentos históricos”, devendo em caso de conflito ou bombardeamento naval haver sinais, definidos em formas e cores, a colocar nos edifícios a proteger. O que se passou no outono de 1991 em Dubrovnik, cidade classificada como património da humanidade pela UNESCO, em 1979, é ilustrativo da grande dificuldade na concretização das medidas de proteção. Apesar da missão de paz levada a cabo por Jean d’Ormesson, André Glucksmann e Bernard Kouchner, a missão tentada com a guerra em curso não teve sucesso. Os bombardeamentos continuaram. O mesmo se diga das bárbaras destruições de agosto de 2015, em Palmira, classificada pela UNESCO em 1980, com a trágica morte por decapitação do arqueólogo Khaled al-Asaad, que entregou toda a sua vida ao estudo de uma das mais importantes estações arqueológicas do mundo. A grave destruição de monumentos de valor incalculável foi acompanhada do assassinato do cientista que melhor conhecia a história do lugar. Visou-se, assim, uma destruição simultânea quer do bem material, mas também da base do conhecimento que existia.
Apesar das convenções internacionais serem explícitas, não tem sido possível intervir positivamente nas situações mais graves e dramáticas. O 6.º Congresso Internacional de Arquitetos, realizado em Madrid em 1904, com uma ampla representação portuguesa, distinguiu monumentos mortos e monumentos vivos, devendo os primeiros ser conservados para evitar que caiam em ruínas e os segundos continuar a servir. Prevaleceu, então, a ideia de que deveria ser respeitado o “estilo primitivo do monumento”, sem prejuízo da salvaguarda doutros estilos “sempre que tenham mérito e não destruam o equilíbrio estético do monumento. No imediato pós-guerra, depois de 1945, houve importantes desenvolvimentos. As diversas Cartas de Atenas tiveram grande influência nos domínios patrimonial e arquitetónico. Além da Carta referida de 1931 (sobre conservação e restauro), deve citar-se a que foi aprovada no mesmo ano pela assembleia geral do 4º Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em Atenas (julho-agosto de 1933), dedicado à cidade funcional. Durante este congresso, que contou com a liderança de Le Corbusier, foi elaborada a Carta sobre o urbanismo moderno, não confundível com a Carta dedicada ao restauro de monumentos. Mesmo assim, o capítulo 5º da Carta de 1933 sobre urbanismo e a cidade moderna trata do património histórico das cidades, referindo que os valores arquitetónicos devem ser salvaguardados, quer sejam edifícios isolados ou conjuntos urbanos. Importa ainda lembrar que a tentativa de elaborar uma Convenção Internacional para a proteção de monumentos e obras de arte em tempo de guerra (1936) não pôde ser aprovada em virtude da precipitação dos acontecimentos internacionais que culminaram na tragédia de 1939-45. Vindo, porém, a constituir a base da Convenção de Haia (de 1954) para a proteção dos bens culturais em caso de conflito armado.
Com a criação, com sede em Paris, da UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, que sucedeu à Comissão Internacional de Cooperação Intelectual, o património cultural assume um papel de maior importância – nascendo, no seu âmbito: o Conselho Internacional de Museus (ICOM), em Paris, organização não-governamental criada a 16 de novembro de 1946, que sucede ao Serviço Internacional de Museus; o Centro Internacional de Estudos para a Conservação e o Restauro dos Bens Culturais (ICCROM), com sede em Roma e fundado em 27 de abril de 1957; bem como o Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS) criado, com sede em Paris, a 21 de junho de 1965. Importa referir que, após a realização da Conferência de Washington D.C. em 1965, foi feita uma recomendação no sentido da aprovação da Convenção para a Proteção do Património Mundial, Cultural e Natural, que viria a ser assinada a partir de 1972, englobando hoje 1121 referências culturais, 213 naturais e 39 mistos, localizados em 167 países, e num total de 39 transfronteiriços, estando 53 estão em perigo. A Itália é o país com maior número de sítios classificados, com 55, tal como a R. P. da China, também com 55, seguida da Espanha com 48, da Alemanha com 46 e da França com 45. No diz respeito à distribuição por grandes áreas geográficas, verificamos que na Europa localizam-se 529 bens classificados em 50 países, em África 96 em 35 países, na América Latina e Caraíbas 142 em 28 países, na Ásia e Pacífico 268 em 36 países, nos Estados Árabes 86 em 18 países. Neste contexto, Portugal tem 17 bens na lista do Património Mundial. A Convenção considera a cultura humana e a natureza como valores indissociáveis e parte da ideia de que há património cultural ou natural de uma região ou de um país que tem um valor excecional, não só para a comunidade, mas também para todos os povos do mundo. Daí a ideia de uma lista onde são inscritos monumentos, conjuntos, paisagens e elementos do património imaterial, considerados mais significativos, segundo critérios previamente definidos. Em 2003, a UNESCO aprovou a Convenção para a Proteção do Património Imaterial, destacando o património vivo que abrange outras tipologias de bens culturais, como tradições e expressões orais, lugares de memória, saberes e manifestações tradicionais. Neste âmbito, inserem-se 7 bens imateriais no território português, como o fado, a dieta mediterrânica e o figurado de Estremoz.
Definido ao longo do tempo pela ação humana, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, passa a ter de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunha e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo extremamente rico. Usando a expressão de Rabelais, estamos sempre perante “pedras vivas”, já que as “pedras mortas” dão testemunho das primeiras. O património surge, nesta lógica, como primeiro recurso de compromisso democrático em prol da dignidade da pessoa humana, da diversidade cultural e do desenvolvimento durável. E constitui um capital cultural resultante do engenho e do trabalho de mulheres e homens, tornando-se fator de desenvolvimento e incentivo à criatividade. Quando falamos de respeito mútuo entre culturas e as diversas expressões da criatividade e da tradição estamos, assim, a considerar o valor que a sociedade atribui ao seu património cultural e histórico ou à sua memória como fator fundamental para evitar e prevenir o “choque de civilizações”, mas, mais do que isso, para criar bases sólidas de entreajuda e de entendimento.
A esta luz se entende o apelo da Convenção de Faro à “reflexão sobre a ética e sobre os métodos de apresentação do património cultural, bem como o respeito pela diversidade de interpretações”, aos “processos de conciliação a fim de gerir, de modo equitativo, as situações em que são atribuídos valores contraditórios ao mesmo património cultural por diferentes comunidades”, ao “conhecimento do património cultural como um modo de facilitar a coexistência pacífica, promovendo a confiança e compreensão mútua, tendo em vista a resolução e prevenção de conflitos” e à integração destes desígnios “em todos os aspetos da educação e formação ao longo da vida”. E tudo se liga ao enriquecimento dos “processos de desenvolvimento económico, político, social e cultural”, bem como ao ordenamento do território, aos estudos de impacto do património cultural e às estratégias de redução dos danos.
A intervenção do Cardeal D. José Tolentino Mendonça no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no Mosteiro dos Jerónimos, merece uma leitura muito atenta e uma reflexão séria.
RECUSAR A IDOLATRIA DO TER Como poderemos entender quem somos, de onde vimos, para onde vamos, sem compreender as raízes, a comunidade, as pessoas, o encontro das várias gerações, o enriquecimento mútuo das experiências e dos exemplos, a atenção e o cuidado com os outros e com o que nos cerca, a troca das aprendizagens, a dignidade do ser e a recusa da idolatria do ter? No recente discurso proferido por ocasião do dia de Portugal, a convite do Presidente da República, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça recordou um ensaio de Simone Weil “destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Guerra”, onde afirma que “um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando quer esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama desta é muito mais pura”. E aqui está a raiz do patriotismo e a diferença relativamente aos nacionalismos. Também Eduardo Lourenço tem insistido neste ponto, afirmando que mais do que a glória passada, importa considerar que, cada um, não sendo nem melhor nem pior do que outros, tem o dever de partir da imperfeição para o desafio emancipador e de superação das dificuldades (cf. Portugal como Destino). O amor do país, como patriotismo prospetivo, obriga, assim, à compaixão, como exercício efetivo de fraternidade (cuja importância Marcuse reconheceu a Habermas no leito de morte). Com base na compaixão é que importa ligar as raízes à vivência da comunidade. E a comunidade associa etimologicamente os dois termos latinos cum e munus. Trata-se de ligar um dever comum (munus) a uma tarefa partilhada. Nestes tempos de pandemia fica assim lembrada a primeira tarefa de uma comunidade: cuidar da vida. “Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa e mais atual”. E Camões é recordado por Tolentino Mendonça – na referência à tempestade, que invoca a ideia de vulnerabilidade, “com a qual temos sempre de fazer conta”, já que as “raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo”. De facto, não há super-homens nem super-países, todos temos as nossas forças e as nossas feridas. E o certo é que a raiz da civilização é a comunidade.
O CERNE DO CONCEITO DE PATRIMÓNIO Estamos no cerne da noção de património cultural, como realidade viva, por cuja defesa o diretor do Arquivo e Biblioteca do Vaticano foi reconhecido na atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva 2020, da Europa Nostra, Centro Nacional de Cultura e Fundação Calouste Gulbenkian. Como salientou a esse propósito José Tolentino Mendonça, “a cidadania europeia é também uma cidadania cultural. E esta liga-se ao tesouro da memória, à pluralidade das tradições e raízes, que através das gerações alicerçam uma identidade e um quadro de valores onde nos reconhecemos. E desafia-nos a não fechar o património cultural no passado. O património cultural é um motor indiscutível do presente e só com ele podemos pensar que há futuro”. E, como disse Agostinho de Hipona, os tempos são três: “o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras”. Essa tripla dimensão liga-nos às marcas da história. Daí que o prémio ponha a tónica no património como realidade viva e permanente, material e imaterial, natural e paisagístico, digital ou criação contemporânea, tendo sido anteriormente outorgado a Claudio Magris, Orhan Pamuk, Jordi Savall, Pantu, Eduardo Lourenço, Wim Wenders, Bettany Hughes e Fabiola Gianotti – e agora o júri afirmou-se impressionado com a capacidade que o premiado demonstra ao divulgar a Beleza e a Poesia como parte do património intangível da Europa e do mundo. “Queremos homenagear a sua arte de comunicar não apenas através da sua notável poesia, mas também dos seus artigos de opinião publicados na imprensa portuguesa e italiana. Hoje, quando a Europa e o mundo se confrontam com uma crise sem precedentes, precisamos de ouvir as vozes desafiadoras dos principais intelectuais e artistas”. No discurso dos Jerónimos, o Cardeal lembrou que as tempestades põem a céu aberto as nossas raízes. Daí que devamos construir um pacto comunitário que obrigue a robustecer um pacto intergeracional. Temos de pensar em quem nos antecedeu e em quem nos seguirá. “O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros”. A aprendizagem é sempre partilha e troca e não podemos dispensar ninguém. E o orador recordou a sabedoria de sua avó, a comunicar, como os antigos aedos, a sabedoria ancestral dos cancioneiros e das tradições.
A ESSÊNCIA DA TRANSMISSÃO A transmissão dos conhecimentos, como aconteceu com os poemas celebrizados por Homero, faz-se de geração em geração, não podendo ser perdida essa extraordinária capacidade renovadora. E o poeta recordou a antropóloga Margaret Mead a dizer, para surpresa dos seus interlocutores, que o primeiro sinal de civilização, não foi a pedra de amolar ou os recipientes de barro, mas um fémur quebrado e cicatrizado… Uma pessoa não foi deixada para trás sozinha”. Alguém a acompanhou na sua fragilidade, cuidou dela até que recuperasse e continuasse a ser útil. E, regressando ao canto VI de “Os Lusíadas”, disse-nos que “a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco”. Afinal, Camões, poeta maior e símbolo de todos nós, invoca um país em viagem e foi mais longe, representando o país como viagem. E não nos ensinou ainda Eduardo Lourenço, que mais importante que o destino é a viagem? Esta a nossa marca! Como explica o poeta, ilhéu da Madeira, que não fora a pandemia deveria ter usado da palavra em cerimónia na sua terra natal, esta noção de viagem, ao encontro dos outros e de nós mesmos, torna-se uma espécie de “rasto de fulgor”, parafraseando Maria Gabriela Llansol, que exprime “a ardente natureza do sentido que interrogamos” porque uma grande viagem é como um grande amor, que permite entender, segundo Herberto Helder, “como pesa na água (…) a raiz de uma ilha”. E que é a vida senão esta compreensão?
"Património Cultural – Realidade Viva" (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020) será lançado no dia 30 de janeiro no Centro Nacional de Cultura, com a presença do arqueólogo Luís Raposo, presidente do ICOM-Europa e do jornalista Henrique Monteiro – além do autor Guilherme d’Oliveira Martins. Apresentamos hoje um excerto da obra.
«Definido ao longo do tempo pela ação humana, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, tem de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunha e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo extremamente rico. Usando a expressão de Rabelais, estamos sempre perante “pedras vivas”, já que as “pedras mortas” dão testemunho das primeiras. O património surge, nesta lógica, como um primeiro recurso de compromisso democrático em prol da dignidade da pessoa humana, da diversidade cultural e do desenvolvimento durável. E constitui um capital cultural resultante do engenho e do trabalho de mulheres e homens, tornando-se fator de desenvolvimento e incentivo à criatividade. Quando falamos de respeito mútuo entre culturas e das diversas expressões da criatividade e da tradição estamos a considerar o valor que a sociedade atribui ao seu património cultural e histórico ou à sua memória como fator fundamental para evitar e prevenir o “choque de civilizações”, mas, mais do que isso, para criar bases sólidas de entreajuda e de entendimento. Impõe-se, deste modo, o reconhecimento mútuo do património inerente às diversas tradições culturais que coexistem no continente e uma responsabilidade moral partilhada na transmissão do património às futuras gerações. E não esqueçamos o contributo do património cultural para a sociedade e o desenvolvimento humano, no sentido de incentivar o diálogo intercultural, o respeito mútuo e a paz, a melhoria da qualidade de vida e a adoção de critérios de uso durável dos recursos culturais do território. Daí a importância da “cooperação responsável” na sociedade contemporânea, através da ação conjugada dos poderes públicos, do mundo da economia e da solidariedade voluntária. Perante a exigência do reconhecimento mútuo do património inerente às diversas tradições culturais que coexistem e de uma responsabilidade moral partilhada na transmissão do património às futuras gerações, realizamos um exercício prático, onde, a propósito da herança cultural e da salvaguarda de marcos de memória, descobrimos a importância do diálogo entre valores e factos, entre ideais e interesses, entre autonomia e heteronomia. O certo é que os valores quando reconhecidos socialmente adquirem um carácter de permanência, tornam-se expressão da memória e do movimento, da tradição e da criação e aliam-se às constantes e invariáveis axiológicas numa relação complexa em que o património e a herança culturais se tornam fatores de liberdade, de responsabilidade, de emancipação, de respeito mútuo e de afirmação da dignidade humana. Uma obra de arte, uma catedral ou uma choupana tradicional, um conto popular, as danças e os cantares, a língua e os dialetos, as obras dos artesãos, a culinária ancestral – eis-nos perante expressões de valores que põem em contacto a História e a existência individual, a razão e a emoção, que constituem a matéria-prima de uma cultura de paz.
Há ainda exemplos que nos são dados pela natureza e que constituem motivo sério de reflexão sobre as noções de património e de memória. As borboletas-monarca são alvo de atenções especiais dos cientistas, em virtude das misteriosas migrações que protagonizam de muitos milhares de quilómetros e há milhões de anos, no Atlântico e no Pacífico, especialmente nas Américas. Tendo uma vida curta, de 2 a 7 meses, esse tempo não permite a estas borboletas realizarem mais do que uma viagem em vida e num só sentido – demonstrando que a memória genética pode ser mais importante do que a aprendizagem. Um segundo exemplo tem a ver com as nossas observações do firmamento. Verificamos que muitos dos corpos celestes que ainda vislumbramos, há muito que estão extintos e no entanto ainda parecem ser nossos contemporâneos, em virtude da «lentidão» da velocidade da luz. Vemo-los, mas já não existem… O terceiro caso relaciona-se com os belos jacarandás que temos em Portugal e que têm uma fugaz floração, quase impercetível no outono europeu, uma vez que prevalece a lembrança genética da primavera brasileira. Afinal, as árvores têm memória. As três referências levam-nos a dar uma especial atenção às nossas responsabilidades ligadas ao tempo e ao que dele recebemos. No fundo, temos o dever de estar atentos ao valor dinâmico do que recebemos e do que legamos – seja memória genética, seja perceção virtual do passado, seja reminiscência histórica… Quando falamos de património cultural é de atualização criadora que cuidamos – pelo que não é apenas o passado que importa, mas sim uma responsabilidade presente que renova e atualiza a fidelidade à herança recebida. Quantas épocas diferentes, quantos estilos, quantas intervenções compõem o mosteiro dos Jerónimos? O mesmo se diga das grandes catedrais europeias, que foram sendo construídas em diversos momentos e em camadas arqueológicas e arquitetónicas múltiplas. Na catedral de Salamanca, entre os elementos decorativos foi acrescentada no século XX a representação de um pequeno astronauta, que não choca quem o descobre e que apenas demonstra que a História não se detém. Também no património imaterial, assistimos a atualizações, desde a gastronomia aos hábitos e costumes, não esquecendo a língua…
Para entender a memória e o património cultural invoquemos ainda uma afirmação que é muito citada, mas mal compreendida… Fernando Pessoa através do semi-heterónimo Bernardo Soares fala-nos da língua como pátria. A frase é normalmente citada fora do contexto, como tantas outras. Mas quando se lê o texto onde ela se insere notamos, normalmente, um sentimento contraditório. Em primeiro lugar, temos uma surpresa, uma vez que se julga que a afirmação é heroica. No entanto, o autor não lhe dá essa natureza. Depois, quando se lê melhor, compreende-se que há um patriotismo aberto e desdramatizado, não territorial, não patrimonial, mas espiritual, eminentemente cultural. Anglo-saxonicamente, Soares dá força à palavra. É o domínio da língua, das palavras e do respeito mútuo que está em causa. Afinal, dizer bem a língua e as suas palavras é um ato elementar de dignidade, de cidadania e de sede de compreensão e de sentido.
«Não tenho sentimento nenhum político ou social (diz o “Livro do Desassossego”). Tenho, porém num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em quem se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha». Pátria – língua! «Procuras Portugal e andas com ele / nos mil destinos do teu destino. / Doí-te na pele. / Babilónia Sião Paris Babel. / Meu povo peregrino» — diz Manuel Alegre. A identidade enquanto identidade aberta começa, no fundo, nesse peregrinar e na hospitalidade de receber muitos povos e pessoas neste pedaço de terra à beira-mar plantado. Somos, mesmo na língua, e sobretudo nela, um cadinho, um melting-pot: iberos, celtas, fenícios, gregos, romanos, visigodos, suevos, alanos, vândalos, árabes… E na base há a herança indo-europeia e o sânscrito. De cada um ficaram marcas, palavras e sinais.
O Atlântico e o Mediterrâneo cruzam-se neste ocidente peninsular — a cordilheira central e a nossa Beira-Serra dividem as influências... E o romance galaico-português, paredes-meias com a língua asturo‑leonesa (que permanece no mirandês), consolidou a nossa identidade pela palavra. Língua, fronteira, povo — fizemo-nos portugueses ou “portugaleses”, com quase nove séculos de autonomia. A história fez a língua que é a herança viva com que podemos contar. E o romance galaico-português tornou-se profeticamente, com o provençal, a língua própria do género poético — cantigas de amor, cantigas de amigo, escárnio e maldizer. Afonso X, o Sábio, cultivou a língua dos trovadores (do trovar da língua d’Oc) e D. Dinis, seu neto, pôde dizer: «Se sabedes novas do meu amigo / ay deus e hu e». E não o ouvimos também dizer: «Quer´eu en maneira de provençal / fazer agora um cantar d’amor»? Ao ouvirmos, dos confins do tempo, a nossa língua podemos entender que o velho português se construiu pelo cuidado da palavra e das palavras. Como afirmou António Ferreira: «Floresça, fale, cante, ouça-se e viva / a portuguesa língua, e, lá onde for, / Senhora vá de si, soberba e altiva.». E podemos ainda ouvir mestre Gil, na transição dos temas medievais para os modernos: «Ó, famoso Portugal, conhece teu bem profundo».
Mesmo na ironia, a palavra ressalta alegre e viva, versátil e risonha em Camões — «Perdigão que o pensamento / subiu ao alto lugar, / perde a pena do voar, / ganha a pena do tormento. / Não tem no ar nem no vento / asas com que se sustenha: / não há mal que não lhe venha». Isto em contraste, mas complemento, em “Os Lusíadas”, com: «Ficava-nos também na amada terra / o coração, que as mágoas lá deixavam»… A língua pátria, a língua materna construíram-se e constroem-se de vida, ora erudita ora simples, ora sagrada, ora profana, ora amorosa, ora picaresca. E não se diga que o património é constituído pelos marcos de pedra ou pelos grandes monumentos da arquitetura — o património cultural é constituído por pedras mortas e por pedras vivas, por monumentos e tradições, o património imaterial, mas também pela natureza, pela paisagem e pela criação contemporânea, pelo valor acrescentado que adicionamos ao que recebemos das gerações que nos antecederam. A identidade exige a compreensão da memória, da vivência, da recepção e da entrega, do receber e do dar. Uma identidade viva tem de ser disponível, aberta, rigorosa e apta a receber e a dar».
TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO Especial. 31 de dezembro de 2018.
Sou um leitor fiel, há muitos anos, do “Borda d’Água”. Aqui está o meu exemplar, na edição dos noventa anos. Foi uma tradição deixada pelo meu avô, que fazia da vida do campo o seu quotidiano. Lembro-me do seu Almanaque cuidadosamente anotado a lápis – ora com as lembranças e com os compromissos a realizar, ora para dar nota das boas e das menos boas colheitas. Nunca usava a expressão má colheita, todas eram resultado da graça de Deus – com maior ou menor fortuna. E foi ele que me contou pela primeira vez a história de José do Egipto. Havia que poupar e não desperdiçar, que prevenir e que guardar, que cuidar e que proteger. O trigo ou o milho multiplicavam-se e os melhores e menos bons momentos eram criteriosamente referenciados. Anos havia em que a floração das plantas e das árvores era mais tardia ou serôdia, como aconteceu neste ano de 2018, e outros eram mais prematuros ou temporãos. E nos calendários tudo era anotado. Pelo S. João havia os primeiros figos, em Agosto anotava-se o número de milhos-reis ou milhos-vermelhos, pelo S. Miguel havia as vindimas, em outubro colhiam-se as romãs. E havia o varejo das amêndoas, das alfarrobas e das azeitonas – com vara e redes… Estou a recorrer à memória, sem ter o cuidado de ir rever a coleção dos Borda d’Água de meu avô – e dentro das folhas havia orações para as boas colheitas – a agricultura ligava-se à fé, e o espírito franciscano aí pairava numa genuína atitude ecologista, como diríamos hoje… Cada mês tem a sua especificidade, cada tempo tem o seu valor – e o culto dos campos permite compreender a natureza como natural prolongamento de nós mesmos. Que são as verdadeiras Humanidades senão a procura do equilíbrio entre o desejo e a lembrança? Duarte Nunes do Leão dizia por isso que essas eram as características da saudade. E como não considerar a “Menina e Moça” de Mestre Bernardim e o “Grande Sertão” de Guimarães Rosa os mais belos romances de amor da literatura da língua portuguesa? Mas o Borda d’Água tinha ditos e provérbios inesquecíveis: o mesmo solo que te faz cair, faz levantar-te (adágio hindu); transportai um punhado terra todos os dias e fareis uma montanha (Confúcio); quem na sopa deita vinho de velho se faz menino; à boa fome não há mau pão; dinheiro compra pão não compra gratidão; cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso… Era um não mais acabar… Para terminar por hoje, no final deste ano do Património Cultural fica a ideia simples que é de vida que falamos. Referi aqui de muitas coisas – desde as pedras às tradições, da natureza às paisagens, dos transportes às culturas… E termino com sempre fiz neste Tu cá tu lá. Com um poema, desta feita de um amigo de meu Avô, que tantas vezes lhe arranjava o Borda d’Água. Falo de António Aleixo, também amigo do Professor Joaquim Magalhães, que saudosamente aqui recordei há dias. E é de amor que aqui fala o poeta! Que melhor fecho para este Ano…
«Que feliz destino o meu Desde a hora em que te vi; Julgo até que estou no céu Quando estou ao pé de ti.»
GLOSAS
Se Deus te deu, com certeza, Tanta luz, tanta pureza, P'rò meu destino ser teu, Deu-me tudo quanto eu queria E nem tanto eu merecia... Que feliz destino o meu!
Às vezes até suponho Que vejo através dum sonho Um mundo onde não vivi. Porque não vivi outrora A vida que vivo agora Desde a hora em que te vi.
Sofro enquanto não te veja Ao meu lado na igreja, Envolta num lindo véu. Ver então que te pertenço, Oh! Meu Deus, quando assim penso, Julgo até que 'stou no céu.
É no teu olhar tão puro Que vou lendo o meu futuro, Pois o passado esqueci; E fico recompensado Da perda desse passado Quando estou ao pé de ti.»
Votos de Bom Ano Novo! Esta secção termina. Depois virá: “Cada Roca com seu Fuso”…