Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Vi Roma a arder, e neros vários bronzeados à luz da califórnia guardar em naftalina nos armários timidamente, a lira babilónia; as capitais da terra, uma a uma, desfeitas em nuvem e negra espuma, atingidas de noite no seu centro; mas nunca vi paris contigo dentro. E falta-me esta imagem para ter inteiro o álbum que me coube em sorte como um cinema onde passava «a morte»; solene imperador, abrindo o manto onde ocultei a cólera e o pranto, falta-me ver paris contigo dentro.
I saw Rome burning
I saw Rome burning, and several neros tanned by the californian light timidly stashing away in closets mothballs and babylonian lyres; the world’s capitals, one by one, darkened into froth and cloud, crushed in their core at night; but i never saw paris with you inside. And this is the missing image in my fate-allotted photo album like a cinema showing certain ‘death’; solemn emperor, opening the shroud in which I hid my anger and my plight, I’ve yet to see paris with you inside.
porque existe este ritmo de luzes no barco que atravessa as margens do poema as palavras procuram lugares secretos para nomear o mundo destruído pela falta de sentido no sentido o poema é um barco no rio para lugar algum relembras por entre barcos os ritmos e a primeira viagem de regresso para o território neutro da cidade insensível ao poema como geografia lunar é tempo no poema de voltar.
in Um Barco no Rio, 2002
Because there is this rhythm of lights…
because there is this rhythm of lights on the boat crossing between the poem’s margins the words search for secret places to name the world destroyed by the lack of meaning in meaning the poem is a boat on the river to nowhere amongst boats you remember the rhythms and the first return voyage to the neutral territory of the city as unresponsive to the poem as a lunar landscape it’s time in the poem to go back
Adormece a meu lado, a rosa sulfúrea, amarela de enxofre, aurífera, metálica. Firme em seus densos, espessos capítulos, tem o pedúnculo exaltado em firmeza insegura de amante e matéria de treva. Guarda do fogo o calor, do âmbar a rota indolor. Ó tu, verónica prostrada, misteriosa em tua natureza fremindo, sê artéria, mansa cor, antes da forma, essência, antes do fim, princípio, anel de chamas.
Ring of flames
It goes to sleep beside me, the sulphurous rose, sulphur yellow, auriferous, metallic. Firm in its dense, thick capitula, its stalk is elated in a lover’s insecure resolve and hidden matters. It keeps the heat from fire, from amber the painless path. You, prostrate veronica, mysterious in your pulsating nature, be artery, docile colour, before shape, be essence, before the end, the beginning, ring of flames.
Se eu varresse todas as manhãs as pequenas agulhas que caem deste arbusto e o chão que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência que o nada representa, veria que o arbusto não passa de um inferno, ausente o decassílabo da chama. Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os ramos, também a entendia, a essa imperfeição de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse este poema em tom de conclusão, notaria como o seu verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e descontínua que foge ao meu comum. O devagar do vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou a um neurónio meu, uma memória que teima ainda uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária. A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.
in A arte de Ser Tigre, 2003
The most perfect image
Were I to sweep every morning this shrub’s spiky leaves off their harbouring ground, I would then have a perfect metaphor for the reason why I’ve come to unlove you. Were I to wipe clean every morning this window pane and feel beyond my reflection the distracted transparency of nothingness, I would see the shrub is but a small inferno in the absence of the decasyllabic flame. Were I to look every morning at the cobweb woven between its branches, I would also understand the imperfection that eats at its thread, from May to August, disarming its geometry, its colour. Were I even now to see this poem in the manner of a conclusion, I would notice how its lines grow, unrhymed, in an uncertain and discontinuous prosody unlike mine. Like slow wind, eroding. I would also learn that longing belongs to a web woven in another time, a memory of some insistent beauty perched on some neuron of mine: the fire of a funeral pyre. The most perfect image of art. And of farewell.
Oh Lisboa Como eu gostava de ser O terceiro corvo do teu emblema Estar implícita na tua bandeira Negra e branca Como tinta e papel Como escrita e espaço!
Ser teu desenho Tua nova lenda Invenção deste século Que já não inventa E se interroga: Donde vieram estes corvos?
Como tu, Vicente, Eu também não sou de cá Não sou daqui Não pertenço a esta terra E talvez nem sequer Pertença a este mundo…
Porém estou aqui Nesta dolorosa praia lusitana Cheia de um tumulto inútil Que enegrece as tuas areias E polui o ventre do rio Que os golfinhos há muito desertaram
E olhando as nuvens dedilhadas pelo vento Sentindo a terna dor do teu sentir sentido Peço-te, Lisboa Surge de novo bela Reinventa A santidade perdida do teu emblema
in Itinerários, 2003
The Third Crow
Oh Lisbon I would so like to be The third crow in your shield To be implicit in your flag Black and white Like ink and paper Like script and space!
To be your drafted shape Your new legend Invention of this century That no longer invents And wonders: Where have these crows come from?
Like you, Vincent, I’m not from these parts Not from this place Not from this land And perhaps I don’t even Belong to this world…
Yet here I am On this sorrowful Lusitanian beach Full of a useless turmoil That blackens your sands And pollutes the river’s womb Long abandoned by the dolphins
And seeing the clouds fingered by the wind Feeling the gentle pain of your felt feelings I beg you, Lisbon, Rise again in beauty Reinvent The lost sanctity of your shield
Marthiya of Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta 33
33. Para voltar A ver-te Um só instante, A ti, Que és mais bela que a lua, Antes que a manhã recolha As estrelas Uma a uma E as guarde Do outro lado do céu,
Vou atravessar O rio Coberto de holofotes, Que transformam o verde claro Numa fosforescência De água assustada.
Se não me matarem Nem me apanharem vivo, Mantém-te alerta, Mantém alerta O desejo mais antigo e o mais novo.
Vou passar Do lado de fora Da parede Perfurada Pelas balas:
Passa-me um lenço De seda Com o teu perfume.
Marca-o com o segredo Dos teus lábios.
in Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, 2005
Marthiya of Abdel Hamid according to Alberto Pimenta 33
33. To see you Again Only for an instant, You, Who are fairer than the moon, Before the morning gathers The stars One by one To keep them On the other side of the sky,
I’ll cross The river Covered by the searchlights That change its clear green Into a phosphorescence Of frightened waters.
If I’m not killed Or caught alive, Be alert, And keep alert The most ancient The most youthful desire.
I’ll walk Along The other side Of the bullet Pierced wall:
Sentados no alto da colina contemplando o arvoredo ouvindo o regato murmurar
São três os primeiros Mestres o quarto está a chegar
II
Aquela era a casa inocente aquela era a casa feliz o portão não tinha grades e tu vias toda a gente ao jardim vinham gaivotas a mãe dizia não pousem pois será a chuva certa e fugias para o quarto que tinha a janela aberta esperando o amigo fiel o pescador dos segredos que surgia de repente e te levava com ele em noites de lua negra em direcção ao mar alto às grutas mais escondidas que só ele iluminava
III
– Vem comigo e nunca temas, são as águas mais antigas será esta a nossa casa a magia renovada do prazer mais inocente aqui dormiremos juntos com as estrelas do mar a embalar-nos para sempre…
Sitting on top of the hill looking at the trees below listening to the flow of the stream
They are three the first Masters the fourth is on the way
II
This was the innocent house this was the happy house with no bars on the gate you welcomed everyone seagulls flew over the garden mother told them not to land for they’d surely bring rain and you ran into your room the window always ajar waiting for the loyal friend the fisherman of all secrets who wouldn’t be very far to take you away with him on black moonlit nights towards the highest seas into the most hidden caves that only he could make bright
III
‘Come with me and never fear these are the most ancient waters it’s here that we shall live in the renewing magic of the most innocent pleasure here we’ll sleep together and all the starfish in the sea will waft us round forever…’
Havia dois atalhos pelo meio do pinhal, direcções espantosamente precisas, animais que não voltei a ver. Enquanto as colheitas amadureciam nos campos, havia talismãs pendurados nas árvores e mercúrio para tratar certas lesões, uma peça vital do equipamento. Havia girassóis à volta da casa e as palavras imortais dos espantalhos, uma forma de evitar que eu desse em doido. E havia um muro que era preciso saltar, a manhã gloriosa da escalada, a ciência das grandes migrações.
Mas não vale a pena entrar em mais detalhes. Este é o meu corpo. Esta é a minha mente. Conhecem-se desde a infância e cumpriram pena juntos.
Do futuro nada sei. Apenas que vem aí.
in Este é o meu Corpo, antologia de poemas sobre o pão, 2013
Seeds
Two paths crossed the pine wood, astonishingly precise directions, animals I never saw again. While the crops were ripening on the fields, there were charms hanging from the trees and quick-silver to treat certain ailments, a vital piece of equipment. There were sunflowers surrounding the house and the scarecrows everlasting words preventing me from going mad. And there was a wall which had to be jumped over, and the glorious morning of the climb, the science of the great migrations.
But there’s no need to go into more details. This is my body. This is my mind. They’ve known each other since childhood and together they’ve served their sentence.
Of the future, I know nothing. Except that it will come.
uma sebe de hidrângeas em que o azul explode faz a moldura deste verão para o teu retrato e contra o verde largo das folhas, sob o vento, ondula o véu, ondula o véu de leves dobras a envolver-te a cintura,
e a tua pele recolhe a luminosa serenidade da manhã como um tratamento de beleza, um bálsamo benfazejo que não seja para mais ninguém. e penso: como eu andava ao deus-dará e tu estavas aqui, nesta casa das nuvens, a respirar no seu recato
modulado. fosse o destino, o fado, o acaso, a sina, tu estavas aqui, desde ontem, ao lusco-fusco, entre as surdinas de sombra que cresciam pelo vale e a música severa de que se engendram as palavras. ah, se eu morresse
agora, só diria, em-mim-mesmado, como adriano, ó alminha, brandinha, vagabunda, suspende a clepsidra e deixa-te ficar um pouco mais comigo, só para eu poder contemplá-la e depois acabar serenamente,
entre a resignação do estóico, um estremecimento de ternura, um fulgor grave do seu olhar, a faiança azul das hidrângeas e um cheiro de alecrim, ao findar agosto de dois mil e nove, quando o vento se torna mais bravio.
in O Caderno da Casa das Nuvens, 2010
wild is the wind
a hedge of hydrangeas bursts in blue setting this summer’s frame for your portrait and against the wide green of the leaves, in the wind, is the waving of the veil, the waving of the veil folding lightly around your waist,
and your skin takes in the luminous serenity of the morning like a beauty treatment, a beneficial balm destined for no one else. and i think: the ways i’ve wandered and you were here, in this house in the clouds, breathing inside its modulated
shelter. be it by destiny, fate, chance, fortune, you have been here, since yesterday, in the dusk, between the softness of shadows that spread through the valley and the severe music out of which words are begotten. ah, were i to die
now, i would just say, self-entranced, like Hadrian, o, gentle, meek, vagrant soul, suspend the hourglass and stay a moment longer, that i may contemplate her and end at peace,
amid the stoic’s resignation, a tremor of tenderness, the grave shine of her gaze, the blue china of the hydrangeas and the smell of rosemary, in the ides of august of two thousand and nine, when the wind becomes wilder.
Repara nos velhos. Dementes, doridos, restos de casas. Vivem agora a lepra de todos nós. Não lhes chegamos. Tresandam. Esquecem. Apoderam-se do nada. E nós, capitosos, brindamos com o vinho que também eles sorveram, desdenhando a morte que, amarga como a nossa indiferença, haveremos de provar.
in Napule, 2011
See the old
See the old. Sore, demented, derelict. They live for now the leprosy of us all. We don’t touch them. They stink. They forget. They grab nothingness. And we, big-headed, toast with the wine they once sipped, scorning death which, as bitter as our indifference, we shall taste.