Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
ATORES, ENCENADORES (XII) DESCENTRALIZAÇÃO TEATRAL - O ÚLTIMO ESPETÁCULO DE AMÉLIA REY COLAÇO por Duarte Ivo Cruz
Há uma certa simbologia, perdoe-se o eventual exagero da expressão, na despedida de cena de Amélia Rey Colaço. Pensemos da sua vasta e exemplar carreira, e particularmente, nas dezenas de anos em que dirigiu a companhia do Teatro Nacional no D. Maria II, no Avenida, e episodicamente noutras salas, além de tournées que incluíram o Brasil. A sua obra e a sua ação em termos de renovação da cena nacional é indiscutível, para lá de oscilações e opiniões, que também não faltaram. E a sua versatilidade como atriz não confirma uma crítica na época habitual – a de que fazia papeis de alta sociedade… lembro ao calhar, para o desmentir, a formidável ama no “Romeu e Julieta” de Shakespeare.
Mas aqui, quero evocar a insólita despedida de cena de Amélia Rey Colaço.
Foi em 1985, tinha 87 anos. E foi num teatro “marginal”, hoje desativado para não dizer desaparecido para a atividade teatral – e aproveitamos também para o evocar – que pela ultima vez Amélia subiu à cena: no Teatro Portalegrense, no papel da Rainha D. Catarina em “El Rei Sebastião” de José Régio.
Este Teatro Portalegrense, projeto do arquiteto José de Sousa Larcher datado de 1856, manteve-se em atividade durante mais de um século, com significativos momentos de expressão literária e artística. Lembre-se que em Portalegre vivia e lecionava José Régio. Lá se estreou em 1935 o “Sonho de uma Véspera de Exame”, de Régio em récita de finalistas do ensino liceal – e um desses alunos era o futuro ator Artur Semedo. E lá voltaria Régio, o Dr. José Maria dos Reis Pereira professor do Liceu de Portalegre, a ser episodicamente representado.
O Portalegrense deixou de funcionar com regularidade como teatro. Mas ficou o edifico, sucessivamente “aproveitado” em atividades insólitas para um teatro do seculo XIX: templo religioso e até ringue de patinagem!
Evoquemos então atores e atrizes nascidos e relacionados em termos pessoais e profissionais com Portalegre.
Sousa Bastos, na sua prosa peculiar, cita em particular Beatriz Rente: “nasceu em Portalegre em 1859 esta rapariga de olhos grandes que todos achavam bonita (…) Aos 15 anos de idade estreou-se no Teatro D. Maria “e depois passou para o Ginásio “fazendo sempre primeiros papéis com bastante agrado”. O pior é que “saindo deste teatro começou a sua decadência no Teatro da Rua dos Condes; apesar do que foi classificada em primeira classe para o teatro de D. Maria até que a morte a roubou em 1906” assim mesmo, numa prosa “teatral” muito típica do “Diccionário do Theatro Português”…
O outro ator de Portalegre, que acima referi, é Artur Semedo (1925-2001). Grande Prémio do Conservatório Nacional e Prémio de Revelação da Crítica, estreou-se no Teatro Ginásio em 1949 num dramalhão de Cristiano Lima, “O Preço da Honestidade”. Estudou em Itália e prosseguiu uma vastíssima carreira no teatro e sobretudo no cinema, como ator e realizador em Portugal, Espanha e Brasil.
Mas tudo isto veio a propósito do último espetáculo de Amélia Rey Colaço, ocorrido como vimos em Portalegre: homenagem ao portalegrense por opção que foi José Régio, mas também homenagem a uma sala oitocentista de teatro que há muito deixou de o ser.
E referência a uma política de património e de descentralização teatral e cultural que é essencial manter e desenvolver.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 25.02.15 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (XI) HOMENAGENS A UM GRANDE ATOR E A UMA GRANDE ATRIZ por Duarte Ivo Cruz
Nos anos 60, inauguraram-se em Lisboa dois teatros em homenagem a dois grandes nomes do teatro português. O que está longe de ser inédito, mas merece destaque pela quase simultaneidade mas sobretudo pela referenciação dos artistas homenageados. Referimo-nos ao Teatro Villaret, iniciativa de Raul Solnado, que o fundou em 1964, e ao Teatro Maria Matos, este de 1969, num conjunto que envolve ainda um cinema e um hotel.
Vejamos um e outro caso.
O Teatro Villaret foi inovador pela rentabilização do espaço. Projetado pelo arquiteto Trindade Chagas com decoração de Daciano Costa, é o primeiro teatro de bolso, digamos assim, construído em Portugal: ocupa a cave de um prédio. O próprio Solnado o dirigiu durante alguns anos e desde logo marcou o espetáculo inaugural com uma adaptação modernizante do “Inspetor Geral” de Gogol.
Falaremos de Raul Solnado noutro artigo. Mas esta evocação permite referenciar outras manifestações de espetáculo, no sentido mais abrangente do termo, conduzidas por Solnado no próprio Teatro Villaret. E citamos designadamente a partir de 1969 a realização e transmissão pela RTP do celebérrimo programa ZIP-ZIP e desde logo, na estreia, a entrevista com Almada Negreiros, que constituiu uma verdadeira lição televisiva: inesquecível, na verdade, o dialogo com Almada e a comunicabilidade da entrevista, numa época em que tais tipos de “espetáculo” no mais nobre sentido do termo, não eram comuns na televisão - e sobretudo naquele registo profundo mas extremamente acessível…E também no Teatro Villaret se efetuou, em 1965, a ultima intervenção de Maria Barroso como atriz (“Antígona” de Anouilh).
O Teatro foi depois dirigido por Artur Ramos, por Vasco Morgado e incidentalmente em desdobramento do Teatro Nacional de D. Maria II. De 1965 a 1968 recebeu a Companhia Portuguesa de Comediantes, que encenou peças de Tennessee Williams e outros autores sobretudo norte-americanos, mas também o “António Marinheiro - o Édipo de Alfama” de Bernardo Santareno.
O Teatro Villaret continua, até hoje, em plena atividade, numa linha eclética quase sempre de qualidade.
Ora, nestes termos, nada mais justo do que a homenagem a João Villaret (1913-1961), notável tanto no teatro declamado como na revista e na televisão – aí, mantendo durante longo período um programa de declamação de poetas portugueses contemporâneos.
Fica na história do espetáculo em Portugal o seu talento e sobretudo a adaptabilidade a géneros e estilos diversos. Cita-se particularmente o seu envolvimento nos Comediantes de Lisboa, companhia que, de 1944 a 1950, renovou o repertório e o espetáculo teatral, sob a direção de Francisco Ribeiro: lembra-se, sobretudo o personagem Tatinho do “Baton” de Alfredo Cortez.
Esteve no teatro de revista desde o final dos anos 30 até 1959 e integrou em 1952 o elenco da primeira revista do Teatro Monumental - “Lisboa Nova” de Fernando Santos, Almeida Amaral de Frederico Valério: são espetáculos ainda hoje evocados pela qualidade, e pelo elenco que reunia a jovem Laura Alves, Eugénio Salvador, Aida Batista, Teresa Gomes…
E recorda-se, no cinema, a curiosíssima intervenção de um personagem mudo em “O Pai Tirano” de Lopes Ribeiro ou o D. João III do “Camões” de Leitão de Barros, ou ainda no “Frei Luís de Sousa” e em “O Primo Basílio” de António Lopes Ribeiro, esta em 1959.
Mas vejamos agora o Teatro Maria Matos. Inaugurado em 1969, Teatro Municipal, segundo projeto dos arquitetos Aníbal Barros da Fonseca e Adriano Simões Tiago, integrando um cinema e um hotel, estreou-se com o “Tombo no Inferno” de Aquilino Ribeiro. Viria depois a funcionar, dirigido por Artur Ramos, como uma espécie de desdobramento de companhias ligadas à RTP.
Em 1974, designadamente, encenou-se lá a ultima peça de Bernardo Santareno “Português, Escritor, 45 Anos de Idade”, a que se seguiu uma série de textos dramáticos de autores portugueses, que antes não seria possível encenar: por exemplo “Legenda do Cidadão Miguel Lino” de Miguel Franco, “O Encoberto” de Natália Correia, e adaptações de Eça (“A Relíquia”) ou de Manuel da Fonseca (“Seara de Vento”).
Maria Matos (1890-1952) merece bem a evocação. Foi atriz desde 1907 e a partir de 1913 fundou com o ator Mendonça de Carvalho, seu marido, uma companhia que na época marcou uma renovação de qualidade no teatro português. Foi professora do Conservatório desde 1940, nas cadeiras de Arte de Dizer e de Estética Teatral – e como tal antecessora de Gino Saviotti, o qual, nessa qualidade, foi já aqui foi evocado. Fez cinema, mas sobretudo, repita-se, marcou gerações de artistas e espetadores, ao longo de uma longa e qualificada carreira teatral.
E foi também dramaturga acidental, com três comédias: “Direitos do Coração”, “A Tia Engrácia” 81936) e “Escola de Mulheres” (1937).
Foto do arquivo de Osório Mateus
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 18.02.15 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (X) EVOCAÇÃO DO CINQUENTENÁRIO DO TEATRO MODERNO DE LISBOA por Duarte Ivo Cruz
O Teatro Moderno de Lisboa representou uma inovação da atividade teatral no ponto de vista simultâneo de repertório, de elenco, mas também de organização dos espetáculos, de espaço e de acesso a um público de certo modo específico e menos habitual na época e na cidade. Tratou-se com efeito de uma experiência de espetáculos em horário menos habitual, para não dizer inovador entre nós, num espaço difícil para a produção teatral – nada menos do que o então Cinema Império - a partir de um repertório algo exigente e difícil – mas sobretudo assente num grupo de atores verdadeiramente excecional da época.
A aventura, por que de uma aventura se tratou, durou ainda assim cerca de cinco anos, de 1960 a 1965: e precisamente, foi em 1965, que a companhia cessou atividades, e com uma estreia essa então muito difícil para a época – “O Render dos Heróis” de José Cardoso Pires.
E bem se entende a dificuldade. Em primeiro lugar, no que se refere ao texto em si mesmo. A peça data de 1960 e constitui, de certo modo com o “Felizmente Há Luar” de Luis de Sttau Monteiro, esta de 1961, como que uma espécie de “introdução” do teatro épico-narrativo de raiz e temática histórica na dramaturgia portuguesa. Com talvez maior “exigência” para a peça de Cardoso Pires, pois representa, ainda hoje, uma difícil conciliação da raiz histórica do temário com uma imensa complexidade e modernidade de espetáculo – e tudo isto numa transposição teatralmente muito feliz.
Espetáculo, sublinhe-se agora, extremamente complexo. Trata-se em primeiro lugar de uma “narrativa dramática em três partes, um epílogo e uma apoteose grotesca” das guerras entre absolutistas e liberais, num envolvimento histórico e político necessariamente muito vasto. E essa complexidade conduz direta e necessariamente a uma abordagem espetacularmente difícil. Basta ter presente que o elenco envolve nada menos do que 27 personagens, para além de figurantes que se possa e queira acrescentar.
Tudo isto numa ação extremamente exigente na perspetiva épico-narrativa: as cenas sucedem-se e alternam num encadeado de conflitos, personagens, situações.
E tudo isto num envolvimento de espetáculo e de interpretação ele próprio, repita-se, também muito exigente, sobretudo a partir da complexidade história e psicológica. Nesse aspeto, a técnica épico-narrativa é extremamente feliz e adequada ao fresco histórico mas também ao envolvimento político, esse então claramente moderno – e como tal, repita-se, muito complexo para a época em que o espetáculo foi encenado…
Ora, é interessante perceber, no contexto do espetáculo, a conciliação do sentido teatral com a técnica do romance, nos textos de ligação, nas falas do narrador e no pormenor e qualidade das notas de cena: uma relação muito feliz entre o teatro e o descritivo de situações, que alternam e constituem um dos grandes fatores essenciais do teatro épico-narrativo.
Passados estes 50 anos, o espetáculo tal como o recordamos, não teria perdido atualidade, por o texto obviamente a não perdeu!
Recorde-se finalmente que a encenação foi de Fernando Gusmão e entre o numeroso elenco destacaram-se Rui de Carvalho, Carmen Dolores, Rui Mendes, Morais e Castro, Fernanda Alves, Fernando Gusmão e tantos mais.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 11.02.15 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (IX) EVOCAÇÃO DE GINO SAVIOTTI NOS 70 ANOS DO CÍRCULO DE CULTURA TEATRAL E DO TEATRO ESTÚDIO DO SALITRE por Duarte Ivo Cruz
Fazemos hoje uma evocação de Gino Saviotti e das grandes iniciativas de cultura e de espetáculo teatral com que este italiano, fixado em Lisboa a partir dos anos 40, marcou, e de que maneira, a cultura e a atividade profissional do teatro português. Digo desde já que participei nos cursos livres de Filosofia do Teatro que em 1958 e anos seguintes Saviotti ministrava no então Conservatório Nacional. E quando, anos depois, assumi no Conservatório e depois na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa a cadeira de História da Literatura Dramática e do Espetáculo Teatral, muito recordei e evoquei os ensinamentos de Saviotti…
O Círculo de Cultura Teatral foi criado em 1945, a partir de um grupo notável de escritores e intelectuais portugueses. Os objetivos eram basicamente “desenvolver o gosto pelo teatro como intervenção literária e espetacular, a cultura intelectual, o sentido artístico e as faculdades criadoras pela poesia e o pensamento dramáticos”, segundo o manifesto de criação assinado por individualidades tais como Alves Redol, Arquimedes da Silva Santos, Jorge de Faria ou Vasco Mendonça Alves e Luis Francisco Rebello que aqui citamos.
No mesmo ano, Saviotti publicou um texto programático intitulado “Premissas para a Constituição em Lisboa de um Estúdio Teatral”. E efetivamente, em 1946, arranca no Instituto Italiano de Cultura, onde Saviotti era professor, um chamado 1º Espetáculo de Teatro Essencial que marcaria o início do Teatro Estúdio do Salitre, importante movimento de renovação teatral.
Mas passados menos de 10 anos, encontramos Saviotti a dirigir uma Nova Companhia do Teatro de Sempre-NCTS, que por direito próprio se inscreve num movimento de renovação de repertórios e de espetáculos. Era no Teatro Avenida, e reunia um rupo de então jovens atores, com destaque para Rogério Paulo e Carmen Dolores, designadamente: havemos de falar nas carreiras respetivas.
Mas neste texto, importa sublinhar sobretudo a renovação de repertório que esta NCTS trouxe ao meio teatral à cultura teatral portuguesa. Destaco em particular dois espetáculos.
Desde logo, em 1958, “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão, peça quase desconhecida na época não obstante uma brevíssima produção (apenas quatro espetáculos!) em 1927 e um espetáculo universitário em 1945. Rogério Paulo interpretou e protagonista e encenou em 1961 uma versão no Nederlamd Kamernoteel de Antuérpia.
A encenação de Gino Saviotti no Avenida teve assim foros de revelação. Como o teve também o texto de Brandão, na decadência resignada o pobre Gebo, para quem “a felicidade na vida é não acontecer nada, “pois (ele) não pode se senão isto”. Para proteger o filho assume um roubo que não cometeu. Mas volta da prisão completamente pervertido: e a última fala da peça é sintomaticamente – “tudo foi inútil”.
Ora, tal como escreveu Urbano Tavares Rodrigues, “todas as personagens ou quase todas, através dos 4 atos da peça, se interrogam a si próprias, mas do que se dirigem aos outros” (“Noites de Teatro” II – 1961). E João Pedro de Andrade: “Trata-se de uma tragédia do tempo presente, em que a fatalidade é gerada pelas modernas potências que tomam o lugar dos deuses na tragédia antiga” (in Dicionário do Teatro Português pág.348).
Tudo isto constituiu revelação para o público de 1958. E também teve foros de revelação, na mesma companhia, a estreia, a seguir, de “Seis Personagens à Procura de Autor” de Pirandello, interpretado por Carmen Dolores e encenado por Gino Saviotti.
São espetáculos que, decorrido mais de meio século, não esquecem!
Raul Brandão da autoria de Tagarro
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 04.02.15 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (VIII) EVOCAÇÕES, DESLOCALIZAÇÕES por Duarte Ivo Cruz
Faz-se hoje referência a dois aspetos distintos de uma política, digamos assim, de descentralização e deslocalização teatral: atores, encenadores, que ou fizeram a carreira fora de Lisboa, ou que foram devidamente homenageados fora de Lisboa. E tenha-se presente que esta circunstância não é despicienda, dada a secular centralidade do teatro-espetáculo em Portugal.
Referimos, nesse aspeto, em primeiro lugar, Rosa Damasceno (1849-1904). E se a cito, é porque, tal como vimos no artigo anterior com o ator e os Teatros Taborda, o prestigio de Rosa Damasceno manteve-se até muito depois da sua morte: e sobretudo, justificou, a partir de 1893, a denominação de Teatro Rosa Damasceno a um velho Teatro de Santarém, erguido em 1894 no local onde existira a Igreja de São Martinho, e onde, desde pelo menos 1810 se produziam espetáculos. E não só: há noticia de uma representação do “Frei Luis de Sousa”, em 1847, no antigo Convento de São Domingos, espetáculo de que Herculano dá notícia.
De qualquer maneira, o que agora interessa é que a carreira de Rosa Damasceno justificou a homenagem.
Esse primeiro Teatro Rosa Damasceno deve-se a um projeto de José Luis Monteiro e dele ficou a memória de uma sala imponente, com 800 lugares entre plateia, 60 camarotes e geral. Seria substituído em 1938, no mesmo local, por um novo Teatro Rosa Damasceno, este da autoria do Arquiteto Amílcar Pinto: “obra prima da arquitetura moderna e da art déco em Portugal” escreveu Jorge Custódio. (in Relatório para a CMS citado em Duarte Ivo Cruz- “Teatros de Portugal” - 2005) E só é de lamentar que tenha sido votado ao abandono durante décadas, não obstante a notável fachada e a qualidade arquitetónica do interior.
A atriz Rosa Damasceno estreou em 1867 no Teatro da Trindade com um dramalhão intitulado “A Mãe dos Pobres” de Ernesto Biester. Casada com o ator Eduardo Brazão, cumpriu uma longa carreira no Teatro D. Maria II e no Teatro D. Amélia, com destaque para o que era, na altura, o teatro romântico e contemporâneo português, em estreias de peças ou de adaptações, desde Garrett a Júlio Dinis, a D. João da Camara e ao então estreante Júlio Dantas: mas também os clássicos portugueses, e ainda Shakespeare, Molière, Tolstoi, e muito repertório romântico e ultrarromântico francês, ou seja, o repertório “moderno” da época.
Avancemos algumas dezenas de anos.
Vamos então encontrar, a partir de 1953, o Teatro Experimental do Porto - TEP, fundado e dirigido, até 1961 por António Pedro (1909-1966). Tal como noutro lado escrevi, a sua marca sente-se “no combate por uma renovação do espetáculo teatral nos Companheiros do Pátio das Comédias ou sobretudo, nos anos 50, no Teatro Experimental do Porto ou e na magnífica reflexão erguida sobre uma notável sabedoria técnica que é o Pequeno Tratado de Encenação”. (in “História do Teatro Português” - 2001).
Deveu-se-lhe sobretudo como encenador uma obra decisiva de renovação da cena portuguesa, escreveu Luis Francisco Rebello (in “100 Anos de Teatro Português – 1880-1980” – 1984). Mas António Pedro é também um dramaturgo de qualidade, sobretudo em linhas de conciliação do sentido técnico-dramático com uma modernização de estilos e técnicas de espetáculo, patentes tanto nas encenações como nas próprias peças de sua autoria: “Teatro – Comédia em um Ato”, “Desimaginação”, “Andam Ladrões cá em Casa” “Antígona”, “Reginaldo” e “O Lorpa”.
Mas sobretudo, António Pedro foi um grande homem de teatro, no sentido mais abrangente. Contribuiu, como diz Luciana Stegagno Picchio, para dar “um cunho especial” ao teatro português. (in “História do Teatro Português” – 1962).
E basta recordar os autores que encenou no TEP, entre 1953 e 1961, de acordo com um rigorosa levantamento feito por Carlos Porto (in “O TEP e o Teatro em Portugal” – história e imagens” – 1997):
Léon Chancerel, Egito Gonçalves, Anton Tchekhov, Arthur Miller, Jean Cocteau, Victor Ruiz Iriarte, Shakespeare, Sófocles, António José da Silva, J. M. Synge, Guilherme Figueiredo, Romeu Correia, John Steinbeck, Bernardo Santareno, Eugene ONeill, António Pedro, Oscar Wilde, Miguel Torga, Camilo, Ben Jonson, William Faulkner, Molière, Armando Martins Janeiro, Ugo Betti, Bernardo Santaremo, Pedro Bloch, Raul Brandão, Ionesco, Ibsen, Francisco Ventura…
Assisti a muitos desses espetáculos, ouvi e falei com António Pedro: e tudo isto é inolvidável.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 28.01.15 neste blogue.
Taborda (fonte-GEPB vol. 30) e Laura Alves (fonte Laura Alves cit.)
ATORES, ENCENADORES (VII) ATORES QUE DERAM NOME A TEATROS por Duarte Ivo Cruz
Não é muito comum entre nós a denominação de teatros evocativa de atores. Recentemente, referimos o teatro Maria Vitória no conjunto dos teatros do Parque Mayer: hoje já ninguém recorda a atriz que deu o nome ao teatro, edificado numa construção ”provisória” como na altura se assumiu, em 1922. Penso que a decoração art deco é posterior. Mas trata-se de um dos poucos teatros portugueses que evoca um artista de cena.
Não assim com escritores. Sousa Bastos, no Dicionário do Theatro Português que aqui temos citado (1908) assinala, na época, em todo o país, quatro Teatros Camões/Luís de Camões, um Teatro D. João da Câmara, um Diogo Bernardes, sete Gil Vicente, um Garcia de Resende, um Pinheiro Chagas, um Sá de Miranda: e apenas um Rosa Damasceno, três Taborda, um Virgínia… e nada menos do que 13 teatros cuja designação evoca diretamente Reis, Rainhas, Príncipes e demais membros da família real, com o destaque óbvio do Teatro D. Maria II, que é de 1846.
E aqui queria neste momento chegar. Em 1908, Sousa Bastos descreve três Teatros Taborda, em Abrantes (1828), em Lisboa (1870) e em Oeiras (1884). Evoca, em termos ditirâmbicos, o ator Taborda, homenageado pelo próprio nome nos teatros acima referidos: qualifica-o como - e citamos literalmente - “incomparável”, de “brilhantíssima carreira”, “caráter de ouro que tem um amigo sincero e um admirador devotado em cada português (…) a joia mais preciosa do palco português “ em “criações brilhantíssimas “ e “trabalho excecional e verdadeiramente único”!...
De notar que Sousa Bastos era à época casado com a jovem Palmira Bastos: e a biografia que lhe dedica no Dicionário não fica atrás! Mas Luis Francisco Rebello, mais de 90 anos decorridos, ainda evoca “o grande Taborda” como ator dos primeiros espetáculos de revista. (in “História do Teatro de Revista em Portugal” vol. 1- 1984). E na “História do Teatro Português” Rebello cita Taborda à cabeça de um grupo de atores que “trilharam caminhos de maior exigência artística”. “História do Teatro Português” 5ª ed. - 2000)
Ora bem: chega-nos um estudo ainda não publicado da autoria de Pedro Marçal Vaz Pereira, acerca do Teatro, ou dos sucessivos teatros edificados a partir de 1883, em Cernache do Bonjardim. E precisamente, o edifício em vias de restauro, herdeiro ou sucessor de edifícios e/ou agrupamentos de amadores locais – Clube Bomjardim, Teatro Cernachense, Teatro Bonjardim, Teatro de Cernache – adota a partir de 1899 o nome de Teatro Taborda, sendo o ator consagrado numa homenagem em que atuou Alfredo Keil, que executou ao piano trechos da ópera “A Serrana.
Mas avancemos no tempo.
Em 1968, Vasco Morgado inaugura um novo teatro em Lisboa: tratava-se da adaptação do velho cinema REX a teatro, com obras de restauro e recuperação designadamente no palco.
Publiquei aqui um texto, em 24 de setembro último, a encerrar a série dedicada aos mais antigos teatros de Lisboa, assinalando a essa reconversão do REX em teatro: e evoquei a atriz Laura Alves, pois o novo teatro chamou-se precisamente Teatro Laura Alves.
No que respeita ao edifício, destruído por um incêndio em 2012, remete-se para o texto aqui publicado neste blogue. Mas o que importa agora é evocar a grande atriz que foi Laura Alves (1921-1986), pois ao longo de mais de 45 anos marcou o teatro português numa diversidade impressionante de géneros e de interpretações, da comédia ao drama, à revista à opereta, ao teatro musicado e ao cinema.
Passou pela companhia do Teatro Nacional mas sobretudo a partir de 1951, ano da inauguração do Teatro Monumental, com a opereta “As Três Valsas”, representou todos os géneros e inúmeros autores, aí incluindo muito teatro português, muita comédia e drama contemporâneo, mas também Shakespeare, Gil Vicente e tantos clássicos: um carreira de mais de 400 personagens!
Cito, para terminar, algumas referências recolhidas no álbum de homenagem publicado no inicio dos anos 70 assinalando os 20 anos do Teatro Monumental. (in “Laura Alves – Êxitos de 20 Anos da sua Carreira” dir. Mário de Aguiar, texto de Alice Ogando).
De Ramada Curto: “Esta atriz é essencialmente genérica, porque se adapta a todos os géneros. Tem inventiva cómica e ninguém como ela comunica com o publico pela graça espontânea e caricatural, sem descer ao grosseiro, para logo a seguir interpretar uma alta comédia com inteligência e corda dramática”.
De Aquilino Ribeiro: “Em Paris, seria uma atriz de grande ribalta. Entre nós, é uma flor a perfumar um matagal”.
De David Mourão Ferreira: “Laura Alves realiza plenamente o sonho mais íntimo de todos os artistas – que é o de obter o vibrante entusiasmo das multidões e o aplauso esclarecido das minorias mais exigentes”.
E muito me honro de ter também colaborado neste livro de homenagem, frisando designadamente que “tantos anos de carreira profissional, vinte dos quais no mesmo ambiente, é coisa rara, quase um milagre teatral”…!
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 21.01.15 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (VI) A COMPANHIA REY COLAÇO-ROBLES MONTEIRO: QUALIDADE E LONGEVIDADE por Duarte Ivo Cruz
Num meio cultural e profissional tão instável como é o teatro-espetáculo português, merece destaque a continuidade e a capacidade de renovação da Companhia Rey Colaço- Robles Monteiro, designadamente na sua longa permanência, ação cultural e capacidade de renovação, a nível de elencos e a nível de repertório, o que nem sempre é reconhecido.
A longevidade tem destas coisas e então, num meio, repita-se, instável como é por definição o teatro, e em particular entre nós, mais se fez e faz notar o quase meio século de atuação da empresa. Mas refiro aqui a empresa como tal: pois a própria Amélia Rey Colaço ainda nos anos 80 participou em Portalegre num espetáculo de homenagem a José Régio.
Por seu lado, Robles Monteiro faleceu em 1958: já anos antes deixara de exercer a atividade de ator, mas numa primeira fase duradoura da Companhia integrou os elencos e encenou numerosíssimas peças do repertório, com destaque também para autores portugueses, e designadamente Ramada Curto.
É evidente que tão longa permanência em cena implicou necessariamente desigualdades de atuação e assimetrias no conjunto da obra cultural exigível a uma companhia oficial. E isso envolve tanto os aspetos de repertório como de elenco. Mas hoje não restarão duvidas acerca da qualidade global dos sucessivos elencos da Empresa Rey Colaço – Robles Monteiro e da relevância que, tantas e tantas vezes assumiu na revelação e atualização de repertório – e isto, tanto no âmbito da dramaturgia portuguesa como da dramaturgia universal.
Amélia estreou-se em 1917 no então chamado Teatro Republica, (São Luiz), com uma peça então relevante, “Marianela” do dramaturgo espanhol Benito Pérez Galdós. Gloria Bastos e Ana Isabel P. T. de Vasconcelos situam o sucesso no contexto do espetáculo teatral da época:
“Mas talvez a revelação mais significativa tenha sido a de Amélia Rey Colaço, cuja estreia no Republica com a peça Marianela foi desde logo saudada calorosamente pelo público e pela crítica”. E remetem para Vitor Pavão dos Santos: “demonstrou ser uma atriz diferente de todas as outras, aliando a um talento e cultura invulgares, métodos de representação verdadeiramente modernos” (cfr. G. Bastos e A.I .Vasconcelos in “O Teatro em Lisboa no Tempo da Primeira República” ed. MNT 2004 pag.146: V. P. Santos in “A Companhia Rey-Colaço – Robles Monteiro” ed. MNT 1987 pág. 4).
A companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, constituída como tal em 1923, instala-se pois no D. Maria II em 1929 como companhia oficial e lá se mantem-se até 1964, quando o incendio que quase destruiu o teatro (e que neste momento é invocado numa exposição de fotografias no próprio D. Maria II) remeteu a companhia para o Teatro Avenida. E em 1967 o Avenida arde! A companhia passa então para o Capitólio até 1970, depois para o Trindade e por muito pouco tempo, para o São Luiz. Extingue-se em 1974.
O repertório clássico teve momentos muito altos. Recordo, entre tantos mais, um “Tartufo”, um inolvidável “Romeu e Julieta”, ou o “Macbeth” que estava em cena na noite o incendio e foi reposto no Avenida, mas antes apresentado num espetáculo no Coliseu, em que toda a classe profissional e intelectual da época se reuniu no palco.
Mas importa agora referir a qualidade do repertório moderno, ao longo de todos estes anos, e particularmente, a sucessiva atualização que foi praticado, tarefa por vezes complicada, dada a época e as circunstâncias.
Se reportarmos a 1934 encontramos o escândalo de publico que foi a estreia dos “Gladiadores” de Alfredo Cortez, peça iniciática de um certo expressionismo ainda hoje escasso na história do teatro português. E nessa linha de modernidade, encontramos estreias - mais ou menos compreendidas e aplaudidas - de toda uma época e de uma geração que vai de Carlos Selvagem a Ramada Curto, ambos com dezenas de peças, de Virgínia Vitorino a Romeu Correia e José Régio, a Bernardo Santareno e Luis Francisco Rebello entre tantos mais. Encontramos também Pirandello (estreia mundial de “A Volupia da Honra” com a presença do autor), Lorca, Eugene O’Neill mas também Albert Camus, Marcel Pagnol, Ionesco, Cocteau, Harold Pinter (“Feliz Aniversário”), Durrenmatt (“Visita da Velha Senhora”), Edward Albee (“Equilíbrio Instável”) ou Slamowir Mrozeck (“Tango”). E em muitas delas, Amélia marcou o seu talento de atriz.
E finalmente: a concessão do teatro nacional obrigava à programação de clássicos portugueses. Nem sempre esta clausula contratual atingia objetivos de atualização das encenações e dos espetáculos em si: mas eram sempre de grande qualidade e garantiam, sobretudo a um púbico escolar, o contacto com os clássicos portugueses em cena, que é onde eles devem ser vistos e estudados…
Não entramos na lista de atores que trabalharam na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, ou dos cenógrafos e figurinistas, com destaque aqui para Almada. Mas referimos apenas Mariana Rey Monteiro, filha de Amélia e de Robles – e ela própria grande atriz.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 14.01.15 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (V) DOIS EXEMPLOS DA TRANSIÇÃO DO SÉCULO por Duarte Ivo Cruz
Vimos no artigo anterior o papel essencial de Garrett na estruturação do teatro português, através da reforma de 1836. Nesse diploma, encomendado, recorde-se, por Passos Manuel e transformado em Portaria assinada por D. Maria II em 15 de novembro de 1836, estava prevista a criação de uma Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional: e referia-se especificamente no texto legal a necessidade de construção de um edifício, mas também, a estruturação de uma companhia que garantisse certa estabilidade e uma base de ação cultural ao teatro português, na dupla dimensão de espetáculo mas também de criação dramatúrgica.
Trata-se do que viria a ser e ainda hoje felizmente é, apesar do incendio devastador de 1964, o Teatro de D. Maria II.
Demorou a execução deste ponto específico do programa de Garrett. Foi criada uma “sociedade de capitalistas” que teve no Conde de Farrobo o primeiro subscritor. O processo arrastou-se: mas em 13 de abril de 1846 sobe à cena, no Teatro de D. Maria II, com foros de grande acontecimento cultural e urbano, uma peça hoje completamente esquecida: “Álvaro Gonçalves, o Magriço ou dos Doze de Ingraterra” de Jacinto Aguiar Loureiro, este tão esquecido como a peça… Em qualquer caso, vem dessa época, com óbvia oscilação de qualidade e continuidade, uma ação referencial na história moderna do teatro português.
E aqui, há que evocar alguns atores que marcaram não só a continuidade cultural e profissional do teatro em si, como, através de mais de um século, a própria criação dramatúrgica e arte do espetáculo em Portugal. Assim, encontramos por exemplo uma continuidade de décadas na companhia inicialmente denominada Rosas e Brazão, que se manteria no D. Maria II, com óbvias alterações de elencos e também, a partir de certa altura, da própria constituição societária e artística, e que constituiu a base artística de uma notável transição, a nível de artistas de cena e de dramaturgos, do teatro romântico para o teatro realista-naturalista.
É que, com alternâncias óbvias dada a instabilidade da profissão e da exploração teatral, encontramos, na época e em certos casos, como veremos adiante, quase até aos nossos dias, uma continuidade e permanência no Teatro D. Maria II desde finais do século XIX meados do século XX.
Veja-se a carreira de Eduardo Brazão. Ingressa em 1875 no D. Maria, onde se mantem até 1898, integrando a Companhia Rosas e Brazão, “uma das mais célebres e ilustres de toda a história do teatro português” escreveu Luiz Francisco Rebello (in “Dicionário do Teatro Português” pág. 110). Prosseguiu uma carreira relevante de ator e encenador. E saliento o destaque na revelação, encenação e interpretação de autores portugueses, numa abrangência que o coloca na primeira linha da renovação da dramaturgia na transição do romantismo para o realismo: D. João da Câmara, Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, Júlio Dantas, Eduardo Shwalbach – eram os dramaturgos modernos da época. Brazão voltaria mais tarde intermitentemente, ao D. Maria II.
E no D. Maria II fez grande parte da carreira a grande atriz Palmira Bastos que, com talento indiscutível, marcou, durante décadas o meio teatral português. Estreou-se em 1890, com 15 anos, no Teatro da rua dos Condes, que já aqui evocamos. Em 1894, recém-casada com Sousa Bastos, também muitas vezes aqui citado como autor do “Diccionário do Theatro Português” (1908) inicia uma carreira de atriz-cantora de opereta que a leva em tournée ao Brasil. Percorreu depois as principais companhias portuguesas.
Em 1931 ingressa na Companhia Rey Colaço Robles Monteiro: e aí, com uma breve interrupção em 1936/37, mantem-se em atividade destacada até ao incendio de 1964. Mas ainda trabalhou em 1966, tendo falecido no ano seguinte. Cito o protagonismo em “As Arvores Morrem de Pé” de Alexandre Casona, creio que o ultima grande papel que desempenhou com uma energia que ficou na memória do jovem crítico que na altura eu era…
E cito também alguns dos dramaturgos portugueses seus contemporâneos que Palmira Bastos estreou ou interpretou: Olga Alves Guerra, Vasco Mendonça Alves, Virgínia Vitorino, Ramada Curto, Júlio Dantas, Costa Ferreira, Joaquim Paço d’Arcos, Augusto de Castro…
Esteve em cena até aos 89 anos. E sobre ela escreveu, numa prosa muito da época, D. João da Câmara, o que só por si atesta a longevidade da carreira: “Foi brilhante a sua aurora e no carro triunfal, mais rápido do que Apolo, no tempo que dura um relâmpago, trepou até ao Zénite e por lá se deixou ficar”!
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 07.01.15 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (IV) GARRETT ATOR por Duarte Ivo Cruz
Podemos dizer que o teatro português inicia a sua modernização com Garrett? De certo modo, sim: porque o romantismo nasce com ele, prolonga-se por um excesso ultrarromântico ao longo do século XIX e só atinge as portas do realismo duro e puro com “Os Velhos” de D. João da Câmara, em 1893… muito embora: a genialidade de Garrett faz adivinhar, em certas peças e em certas cenas e ainda na copiosa análise e teorização estético-dramática que produziu, os novos caminhos do teatro português.
E mais ainda: Garrett assume uma posição transversal na arte global do teatro. Foi o grande dramaturgo que se conhece, e foi-o desde a juventude. Mas foi também, na solicitação que lhe é feita, em 1836, por Passos Manoel, o verdadeiro inovador (modernizador?) da estrutura teatral portuguesa, através da reforma que elaborou e que abrange com um extraordinário sentido de modernidade, a estrutura compósita e complexa da arte do teatro, nas suas componentes: o ensino, o espetáculo, a formação de atores, o estímulo à produção dramatúrgica, a criação de espaços/edifícios e até a intervenção do Estado – e tudo isto, repita-se, em 1836, e numa globalidade que em rigor dura até hoje.
E senão, vejamos rapidamente o que integra a reforma estrutural de Garrett consubstanciada em três diplomas legais:
Portaria de 28 de setembro de 1836 – encarrega Garrett de apresentar “um plano para a fundação e organização de um teatro nacional”;
Relatório datado de 12 de novembro de 1836, assinado por Garrett;
E finalmente, Portaria de 15 de novembro de 1836, assinada por D. Maria II e referendada por Passos Manoel, criando as bases da reforma do teatro português na sua globalidade: Inspeção Geral de Teatros e Espetáculos Teatrais, Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional, Criação do Conservatório Geral de Arte Dramática, Criação de uma Companhia Nacional Concursos do Conservatório, Proteção dos Direitos Autorais, Politica de Subsídios.
Tudo isto foi concebido e redigido por Garrett, que aliás não se poupa a autoelogios. E realmente, todas estas instituições com as óbvias modernizações e alterações duram até hoje!
E mais: ao rever a dramaturgia de Garrett, e não necessitamos de nos concentrar apenas no 2º ato de Frei Luís de Sousa, encontra-se uma modernidade que a faz antecipar décadas e estéticas e até pragmáticas teatrais.
Ora bem: será interessante lembrar que Garrett foi ator e encenador, passe a carga modernista deste último termo. E desde muito cedo. Assim em 1819, vemo-lo em Coimbra, escolar de Leis como então se dizia, a dirigir ensaios da sua primeira peça completa, “Mérope”, ainda marcada por um estilo clássico anterior à renovação romântica. Não foi representada na altura, mas Garrett por essa época já se lançava numa primeira versão de “Amor e Pátria”, que viria a dar a “D. Filipa de Vilhena”.
Em 1821 intervém como ator no “Catão”, levado à cena no Teatro do Bairro Alto. E surge também no elenco do “Imprompeto de Sintra”, peça representada em 8 de abril de 1822 “na Quinta do Cabeço em Sintra”. E entretanto, em Coimbra, são referenciadas intervenções suas, declamando versos ou interpretando pequenos papéis em récitas.
E refere-se agora o garrettiano “Auto de Gil Vicente”: Teófilo Braga escreveu que “o próprio autor teve de ensaiar no Teatro do Salitre, vencendo a rudez dos atores, foi apresentado em 15 de agosto de 1838, quando estava mais acesa a luta da reação de carlistas contra setembristas; a impressão do público foi de deslumbramento”.
E mais acrescenta Teófilo: “No Teatro da Quinta do Pinheiro, junto a Sete Rios, pertencente a Duarte de Sá, fez-se em 4 de julho de 1843 a memorável primeira representação de “Frei Luís de Sousa”; aí brilhou com o seu extraordinário talento D. Emília Krus, desempenhando o papel de D. Madalena de Vilhena; o próprio Garrett sujeitou-se a representar o personagem do escudeiro velho Telmo Pais. A esta representação assistiu Alexandre Herculano e chorou”. (cfr. Teófilo Braga e também Gomes de Amorim “Garrett- Memórias Biográficas” 1881-1884)
Mas é Teófilo quem o diz! E mais acrescenta que o “Frei Luís de Sousa” só em 1850 seria representado no Teatro D. Maria II. (cfr. Teófilo Braga “Dois Monumentos”).
Hernâni Cidade analisa detalhadamente o teatro de Garrett. E sobre o “Frei Luís de Sousa” considera que o mais relevante “é a introdução, entre os elementos constitutivos da peça, daquela figura de Telmo, com a sua fé sebastianista, que é a do povo contemporâneo” fazendo um paralelismo entre “a crença no regresso de D. Sebastião (e) a crença no regresso de D. João de Portugal” (in “Século XIX – A Revolução Cultural em Portugal e Alguns dos seus Mestres” 1985 págs. 27). De notar que a peça foi escrita por Garrett retido em casa devido a uma “forte canelada”, tal como refere o amigo Gomes de Amorim, que gaba o acidente!... (in “Garrett- Memórias Biográficas – vol. III pág. 67).
Vasco Graça Moura relaciona a modernidade do “Frei Luis de Sousa” com a “interrogação do próprio destino nacional” que surgirá designadamente em Oliveira Martins, em Pessoa e em Eduardo Lourenço, expressamente citados (in “Colóquios tão simples, desfigurações” na revista Camões - janeiro/março 1999 pág. 62).
E finalmente: Annabela Rita, num estudo muito recente, estabelece uma correlação entre obras e figuras referenciais na história e na literatura: “D. Madalena e Maria, cada uma debruçada sobre a sua dupla, em que parecem literalmente geradas: a Inês de Castro camoniana e a Menina e Moça (1554) de Bernardim Ribeiro, respetivamente” (cfr. “Luz e Sombras do Cânone Literário” 2014 pág. 188).
Veremos a partir daqui, os atores e encenadores que surgem na transição dos séculos XIX/XX.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 31.12.14 neste blogue.
ATORES, ENCENADORES (III) O TEATRO NA CORTE E NA RUA (SÉCS. XVIII-XIX) por Duarte Ivo Cruz
Poderá falar-se já em encenadores, no teatro português do século XVIII? A expressão será prematura quanto a encenadores tal como hoje os entendemos: mas a profissionalização do espetáculo teatral a partir dos finais de 700, com forte incidência no inicio dos anos de 800, implica, isso sim, a existência de uma atividade de direção de cena e de espetáculo. E da mesma forma, e aí sem a menor duvida e com ampla documentação, ocorre a proliferação de atores e de autores.
Refiro aqui sobretudo o chamado teatro de cordel, expressão de um espetáculo popular que invadiu as ruas de Lisboa na época, com para cima de 1500 títulos, de que restam algo como 500 a 600 edições, de uma boa centena de autores: e a expressão deriva da venda ambulante dessas peças, tal como as identifica Nicolau Tolentino de Almeida na sátira “O Bilhar”.
“Todos os versos leu da Estátua Equestre/ E todos os formosos Entremezes/ Que no Arsenal ao vago caminhante/ Se vendem a cavalo num barbante”.
Ou a nota que assinala a venda ao publico da “Comédia Nova intitulada A Amizade em Lance” editada por um tal António Gomes em 1794:
“Na mão de Romão José, cego, na esquina das rua dos Padres de São Domingos no Rossio, voltando para a Praça da Figueira, ou em sua casa”…
São pois dezenas de atores e centenas de peças. Mas o que aqui nos importa é assinalar que este movimento, em tudo preparatório da grande renovação romântica do teatro português impulsionada por Garrett, como veremos mais tarde, teve nestes dramaturgos, hoje mais ou menos esquecidos, e nestes atores, um prenúncio extremamente significativo, da renovação cénica e do espetáculo em Portugal.
E sobretudo porque o movimento se assim se pode chamar, coexiste com a exigência literária – e não tanto cénica, note-se bem – do chamado Teatro da Arcádia Lusitana ou Olissiponense, fundada em 1756 e prolongada até ao século XIX através da Nova Arcádia: mas o movimento marca muito mais pela analise teórica, expressa em numerosíssimos “prólogos” “discursos” e dissertações sobre a arte do teatro. E afinal, a produção, que varia entre as duas peças de Correia Garção, as de Domingos dos Reis Quita, ou as largas dezenas de Manuel de Figueiredo, entre outros, debatidas em colóquios pelo Árcades “identificados” por pseudónimos latinos, ficam quase sempre aquém de uma verdadeira expressão de espetáculo que o teatro deve necessariamente conter. E alguns como que fazem a transição: assim, José Manuel Rodrigues da Costa, em cerca de 15 peças, de certo modo partilha a exigência da Arcádia com a popularidade do cordel.
Importa ainda referir que esta expressão teatral mais literária do que cénica tem um único precedente de qualidade e relevo, António José da Silva – o Judeu, cujas tragédias de forte expressão barroca, escritas na primeira metade do século XVIII, ficam aquém, numa visão contemporânea do teatro espetáculo, da comédia dramática – as ainda hoje notáveis “Guerras do Alecrim e Mangerona” (1737)…Veja-se este diálogo:
“D. Fuas – Aonde vás, tirana? Procuras acaso o teu amante? Oh, murcha seja a tua manjerona. Que como planta venenosa me tem morto/ D. Nise – Homem do demónio ou quem quer que és, que em negra hora te vi e amei, que desconfianças são essas? Que amante é esse, que quem me andas aqui apurando a paciência, e sem quê, nem para quê, descompondo a minha mangerona?/ D. Fuas – Pois quem era aquele que saiu da caixa a dizer-te mil colóquios? / D. Nise – Que sei eu quem era? Salvo fosse… Mas retira-te que aí vem gente”.
E a comédia de costumes segue nesta ambiguidade de posições e confrontações. Em qualquer caso, o que quero agora referir é que o teatro de cordel marca a afirmação profissional da arte do espetáculo, através de centenas de atrizes e atores que ao longo sobretudo da segunda metade do século XVIII “preparam” a profissionalização e a formação académica que em 1836 Garrett e Paços Manoel consagram na reforma do teatro português. E alguns desses autores ainda hoje merecem destaque.
Faço aqui uma evocação de Nicolau Luis da Silva, o qual, ao longo da segunda metade do século XVIII, fez representar sobretudo no Teatro do bairro Alto, centenas de traduções e adaptações, mas, ao que se saiba hoje, apenas uma peça original sua, “OS Marido Peraltas e as Mulheres Sagazes”. Inocêncio F. da Silva transcreve, no Dicionário Bibliográfico Português”, uma descrição contemporânea de Nicolau Luis:
“Morava no fim da rua da Rosa, toucado com uma cabeleira de grande rabicho, que ninguém viu na rua senão embuçado em capote de baetão de toda a roda, notável pelo desalinho e desmazelo do seu vestuário, trazendo consigo um grande cão de água, que o acompanhava sempre, e sorvendo repetidas pitadas de simone, com toda a placidez e majestade catedrática”… E quem eram os atores que representavam estas peças? Alguns nomes ficaram para a História: António José de Penha, Francisca Eugénia, Vitorino José Leite, Joana Inácio da Piedade, e tantos mais.
Garrett ainda apanhou esta geração: mas a ele se deve, como veremos a seguir, a “modernização romântica” de atores, encenadores e salas, de peças, dramas e comédias.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 24.12.14 neste blogue.