Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Perante os horrores que estamos a viver, escrever o quê? O meu desejo era tão-só pôr como título: Ucrânia: o horror. Depois, pedir para colocarem na página em branco a imagem de uma cruz e, no fundo à direita, duas palavras: Lágrimas e solidariedade. E era tudo.
Mas estamos na Quaresma e, no Domingo passado, o Evangelho narrava as três tentações de Jesus, tentações que, lá no fundo, não são senão uma só: a tentação do poder total enquanto domínio: o poder económico — o diabo disse a Jesus: “diz a estas pedras que se transformem em pão” —, o poder religioso — levou-o ao pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, os anjos levar-te-ão nas suas mãos” —, o poder total — “o diabo mostrou-lhe todos os reinos do universo: Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória; se te prostrares diante de mim, tudo será teu.”
Jesus não cedeu. Mas, quando se cede, caindo na tentação do domínio total, da omnipotência, julgando ser Deus, então é o que se sabe, ao percorrer a História: horrores, tragédias sem fim, a brutalidade pura, reinos destruídos, impérios que se desmoronam, ódio, sofrimento e dor sem nome e sem fim... Lembrando apenas o século XX na Europa: várias guerras, com duas mundiais, custaram quantos mortos? E agora, quando pensávamos ter encontrado a paz, eis que, num desígnio imperial, Vladimir Putin, ignorando o Direito Internacional, a dignidade da pessoa, os direitos humanos, invade um país independente e soberano, a Ucrânia. E aí está outra vez a guerra, e as atrocidades sucedem-se, bombardeamentos indiscriminados, milhões de deslocados, feridos, mortos, edifícios arrasados, idosos, mulheres, crianças a fugir desesperados à morte, num calvário arrepiante, pungente. O intolerável que, no limite da loucura de uma guerra nuclear, poderia arrastar para o auto-aniquilamento da Humanidade...
Mesmo se a União Europeia e a NATO não souberam gerir da melhor maneira o pós-queda do Muro de Berlim e o desmembramento da URSS — não se deverá esquecer a ideia de De Gaulle sobre uma Europa “do Atlântico aos Urais” nem o discurso do Papa João Paulo II sobre o Ocidente e o Oriente como “os dois pulmões” da Igreja e da Europa —, isso não justifica de modo nenhum a invasão. Aliás, felizmente, como que anunciando o despertar para uma nova Europa, nunca a Europa esteve tão unida como nesta condenação e, também na Assembleia geral da ONU, 141 Estados votaram a favor da resolução condenando a invasão; apenas 5 votaram contra. Putin sentir-se-á isolado como nunca, já com um lugar na história dos tiranos, e a solidariedade com os ucranianos é gigantesca e cordial.
Nesta solidariedade e procura da paz mediante negociações diplomáticas, o Papa Francisco tem sido incansável. Logo nos primeiros dias da guerra, encontrou-se com o embaixador russo no Vaticano, telefonou ao embaixador da Ucrânia, manifestando a sua “profunda dor” pela invasão, e falou com o presidente ucraniano Zelensky.
Entretanto, enviou à Ucrânia dois cardeais: Krajewski, o esmoleiro, e Czerny, prefeito do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, como mensageiros da paz. No Domingo passado, foi claro: “Na Ucrânia, correm rios de sangue e de lágrimas. Não se trata de uma operação militar, mas de guerra, que semeia morte, destruição e miséria.” Lembrando as tentações, sublinhou que elas são “uma proposta sedutora mas que conduz à escravidão do coração: cegam-nos com a ânsia do ter, reduzem tudo à posse de coisas, de poder e de fama. Jesus, porém, opõe-se vitoriosamente à atracção do mal. Como? Respondendo às tentações com a Palavra de Deus, que diz que a verdadeira felicidade e a liberdade não estão no ter, mas na partilha, não no aproveitamento dos outros, mas no amor, não na obsessão pelo poder, mas na alegria do serviço.” E, mais uma vez, declarou: “A Santa Sé está disposta a tudo, a pôr-se a caminho pela paz.” Numa conversa telefónica entre o Secretário de Estado do Vaticano e o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, o cardeal Parolin repetiu a Lavrov o apelo de Francisco e a disposição da Santa Sé para todo o tipo de mediação considerado útil para fomentar a paz: “Os combates têm de cessar, impõe-se abrir corredores humanitários, negociar.”
O grande objectivo de Francisco é poder entrar em contacto, pelo menos telefónico, com Vladimir Putin. Para isso, precisaria da mediação do Patriarca ortodoxo de Moscovo, Kirill, que, desgraçadamente, se tem colocado ao lado de Putin.
Termino com parte da letra de uma canção, enviada por um amigo, intitulada: “Senhor Putin”.
“Sr. Putin, permita que lhe pergunte: afinal, quem é? Nasceu de pai e mãe? Tem coração que bate? Pensa? Sente? Já alguma vez sofreu? Já chorou? Como é possível sob o seu comando tanta gente perder a vida, perder a paz, ter de abandonar as suas casas, fugir das armas e tanques de guerra, tudo sob o seu comando? Como pode ver crianças a sofrer, a chorar assustadas, crianças mortas? Crianças a nascer em bunkers, mulheres a ver os seus maridos e filhos a morrer? Quem é afinal, Sr. Putin? Pense... Alguém lá acima, mas muito acima..., Esse, sim, a quem todo o poder pertence, Ele fará justiça e o Sr. Putin irá então encontrar-se consigo mesmo, dando conta da sua pequenez, ignorância, insignificância, frieza, crueldade e materialismo. A vida aqui tem um tempo limitado. Abra os olhos. Pare, Sr. Putin, pois esta guerra não é dos russos, é do Sr. Putin. Deus, sim, Ele é o Senhor de tudo.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 12 de março de 2022
Taras Shevtchenko (1814-1861) é um dos símbolos da Ucrânia moderna, tendo sido poeta, pintor, desenhador, artista e humanista, fundador da literatura moderna ucraniana e visionário.
COMPREENDER A UCRÂNIA Ao longo da história, Kiev, capital da Ucrânia, é uma das cidades mais antigas e com maior riqueza histórica da Europa Oriental, tendo passado por diversas fases de notoriedade e de decadência. A urbe foi fundada pelo menos no século V da nossa era, como um entreposto comercial, tendo ganho progressivamente importância, a ponto de se tornar o centro da civilização eslava oriental, até passar a ser a capital política e cultural entre os séculos X e XII. Importa lembrar que a Igreja Ortodoxa Russa se afirmou com especial intensidade no século IX em Kiev, lugar onde, segundo a tradição, Santo André teria profetizado a criação de uma grande e influente cidade cristã. Daí que o nascimento da Terceira Roma tenha tido as suas raízes em Kiev, ainda que com a queda de Constantinopla (1453), Moscovo se tenha afirmado como sucessora de Roma, em virtude de Kiev estar numa fase de subalternização. De facto, Kiev foi completamente destruída pelos mongóis em 1240, tendo então perdido grande parte de sua influência. Tornou-se então uma capital de província de pouca relevância na periferia dos territórios controlados por vizinhos mais poderosos: o Grão-Ducado da Lituânia, a Polónia e a Rússia. A cidade apenas voltou a prosperar com os primeiros sinais da revolução industrial russa no final do século XIX. Após o período turbulento que se seguiu à Revolução Russa de 1917, Kiev passou a ser uma cidade importante da República da Soviética da Ucrânia e, a partir de 1934, sua capital. Durante a Segunda Grande Guerra, Kiev voltou a sofrer danos pesados, mas recuperou no pós-guerra, continuando a ser a terceira maior cidade da hoje Federação Russa. Em 24 de outubro de 1945, a Ucrânia foi aceite como membro das Nações Unidas com a Belarus, conseguindo assim o então bloco soviético três votos formais. Com o colapso da União Soviética e a independência real da Ucrânia em 1991, Kiev manteve-se como capital do país.
KIEV E A CULTURA ESLAVA Muito se tem falado da cultura ucraniana, nem sempre com conhecimento de causa. De facto, o que hoje é a Ucrânia corresponde a um território sob as influências dos Impérios dos Habsburgos e da Santa Rússia, pelo que é um lugar único onde as culturas do oriente e do ocidente se cruzam, devendo haver uma especial compreensão dessa realidade. Taras Shevtchenko é um símbolo dessa determinação. Foi um poeta, pintor, desenhador, artista e humanista ucraniano, fundador da literatura moderna ucraniana e visionário da Ucrânia moderna. O poeta nasceu 25 fevereiro de 1814 em Morintsy província de Kiev (hoje, região Cherkasy). Seu pai era um servo que pertencia ao senhorio Engelgardtu. A vida de Taras foi, assim, marcada pela situação dramática dos servos da gleba, que persistiram até muito tarde na sociedade russa. Taras revelou, no entanto, desde muito cedo as suas excecionais qualidades artísticas que, aliás, lhe permitiram obter a liberdade em 1838, por 2.500 rublos, graças à qualidade da sua arte revelada no modo como executou a difícil encomenda de um retrato. Os melhores anos da vida de Taras situam-se entre 1840 e 1847, nos quais o seu talento poético floresce. Em São Petersburgo, em 1840, escreve uma primeira coleção de poemas "Kobzar", que o tornam admirado e célebre, interpretando os sentimentos do povo ucraniano. Lança, assim, as bases para uma nova era na história da língua e da literatura do seu povo. O poema épico "Haydamaky" – a mais importante obra de Shevchenko - aparece em 1841-42. Entre outras obras deste período, salientem-se: em 1838, "Katherine"; em 1842, "Blind", bem como o drama de 1843 "Nazar Stodolya", além de "Sonho" (1844) e "Cáucaso" (1845). A denúncia do despotismo e da discricionariedade são evidentes, apelando o poeta à conquista da liberdade. Tal é evidente no célebre «Testamento» de 1845, aqui lembrado em tradução livre: «Quando eu morrer, sepultai-me /Na minha amada Ucrânia./ Meu túmulo ficará sobre um monte elevado, / No meio da planície, /Entre campos e estepes sem limites, / Cuja margem mergulha no Dniepre, / Onde meus olhos possam ver e meus ouvidos ouvir / O rugido poderoso do rio. / Quando os ursos da Ucrânia / Lançarem no profundo mar azul / O sangue dos inimigos, / Então, eu vou deixar esses montes / E campos férteis / e voar para longe / Para a morada de Deus / Onde irei rezar. / Mas até esse dia / Eu nada saberei de Deus. / Depois de me enterrarem, porém, levantem-se. / E quebrem as cadeias que nos prenderam. / Lancem na água o sangue dos tiranos / E comemorem a liberdade que irão conquistar./ E na grande família nova, / A família do livre, do Justo e do Fraterno, / Com fala serena e palavras amáveis, / Lembrem-se também de mim».
UMA REFERÊNCIA PERENE Shevtchenko viajou por toda a Ucrânia. As aspirações emancipadoras do escritor e poeta, reforçaram-se no contacto com os camponeses de Chernihiv, Poltava e Kiev. Em 1846, Taras terá entrado na sociedade secreta de Cirilo e Metódio, fundada no ano anterior por alunos e professores da Universidade de Kiev e composta de jovens interessados no desenvolvimento dos vários povos eslavos, incluindo ucraniano. A pouco e pouco, Taras Shevchenko tornou-se um símbolo, em especial para os mais jovens e para os cultores da identidade ucraniana. No entanto, os últimos anos de vida foram dominados pela doença, em parte originada pelas dificuldades da vida e pelos excessos da juventude. A morte encontrou-o em S. Petersburgo em 26 de fevereiro de 1861, um dia depois de ter completado 47 anos … Hoje, a sua memória é venerada pelo povo ucraniano, como um símbolo, mas mais do que isso, como um exemplo de determinação, de amor à liberdade, às tradições populares, às raízes da cultura. É assim de toda a justiça, em homenagem à diáspora ucraniana em Portugal, que a memória do grande artista, do autor fique perpetuada entre nós – mantendo na lembrança o seu inesquecível “Testamento”.
Guilherme d'Oliveira Martins
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