Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quando lemos os autores que animaram o movimento da “Renascença Portuguesa”, verificamos que nesses anos de 1910 a 1912, a República procurou responder ao desânimo nacional que sucedeu ao Ultimato inglês, que foi uma humilhação coletiva, pela criação de uma capacidade política e constitucional capaz de dar ânimo a um País profundamente dividido entre o cosmopolitismo urbano e o provincianismo castiço e tradicionalista.
O Padre António Vieira falou de um Quinto Império que pudesse evitar os erros do Império que desfaleceu em Alcácer Quibir, D. João IV tentou recuperar forças que pemitissem passarmos de uma “Corte na Aldeia” a um tempo de criação de riqueza e de respeito do mundo civilizado. Ao Império das Índias sucedeu, porém, o ouro e os diamantes do Brasil, sem que pudesse ter-se organizado o país com energias próprias. E a ilusão da riqueza e da luxúria deram lugar ao grande desastre de 1755. Sebastião José quis organizar um Império esclarecido e baseado no trabalho e na indústria. Mas o drama do Infante D. Pedro e do Principe Perfeito repetiu-se. A fragmentação política impediu a fixação das riquezas. Os ingleses ajudaram-nos contra Napoleão, mas a independência do Brasil determinou um dilema: como garantir a independência e a liberdade?
A Revolução liberal de 1820 e depois as guerras civis levaram a que o cosmopolitismo urbano vencesse. Garrett e Herculano foram os anunciadores de que a cultura poderia vencer pela vontade. O romantismo de Júlio Dinis e Camilo abriu caminho ao sonho de uma “Vida Nova” de Antero, Eça e da Geração de 1870. O centenário de Camões em 1880 acordou a necessidade de uma vontade emancipadora. Depois do Ultimato inglês e do sobressalto republicano, os movimentos culturais como a “Renascença Portuguesa” (1912) e “Orpheu” (1915) lançaram as bases do que culturalmente somos hoje: país emancipado, plural, democrático que assume a sua história, nos seus claros e escuros. Houve avanços e recuos, virtudes e defeitos. E olhando para trás recordamos a polémica entre Teixeira de Pascoaes e Raul Proença, sobre o sentido da “Renascença Portuguesa”. Havia que compreender que uma cultura se afirma pela diversidade como Eduardo Lourenço ensinou – com tradição e modernidade.
Disse Pascoaes no “seu” manifesto: “Já brilha a estrela da nova Manhã! Chegou, na verdade, o momento divino de todos os bons portugueses colaborarem na grande obra da nossa Renascença! (…) Este apelo que fazemos aos portugueses por isso mesmo que nos sai da alma há de ser ouvido. E Renascença Lusitana neste instante em que apresenta ao povo a sagrada ideia que anima, espera firmemente que se reunam em volta dela todas as almas esperançosas que sentem em si o germinar duma nova vida, o acordar de um novo alento criador de beleza, de justiça e de bondade, os três elementos constitutivos de uma verdadeira civilização”. E, em contraponto, Raul Proença propunha ao povo: “Que fazer então? Pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar pelo que interessa os homens de lá fora, dar-lhes o espírito atual; a cultura atual sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais. Temos de aplicar a nós mesmos, por nossa conta, esse espírito do nosso tempo, de que temos estado tão absolutamente alheados. Os problemas são variadíssimos: educativos, económicos, morais, literários, artísticos, financeiros, militares, coloniais. A escola, o livro, a revista, o planfleto, o manifesto, a conferência, a exposição, o inquérito, a viagem de informação, de estudo – tais são os meios que temos ao nosso alcance. Por eles diligenciaremos criar em Portugal estas duas coisas absolutamente novas: uma élite consciente, uma opinião pública esclarecida. (…) É preciso que nos habituemos à ideia que o progresso duma nação se faz mais pelo esforço individual do que pelas providências governativas”. Os dois textos completam-se. A sociedade moderna tem de ter os dois elementos.
E, ao lançar o “Orpheu”, nascido como a “Seara Nova” ou os “Homens Livres” (ligando em 1923 o Pelicano e a Seara, com António Sérgio como redator principal), a partir do impulso de “A Águia”, Fernando Pessoa disse a Camilo Pessanha sobre “Orpheu”: “É uma revista, da qual saíram já dois números; é a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a “Revista de Portugal”, que foi dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas que vão do ultra-simbolismo até ao futurismo. Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como V. Exa. muito bem sabe, a mera banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números não só se têm vendido, como se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de três semanas. Isto alguma coisa prova - atentas as condições artisticamente negativas do nosso meio - a favor do interesse que conseguimos despertar”.
E assim se lançaram as bases da sociedade aberta que somos e queremos continuar a ser…
Quando lemos “A Ilíada”, encontramos a referência aos melhores cavalos de Aquiles, Balio e Xanto, provenientes das “margens do rio Oceano”. Tudo leva a crer que Homero se referia às costas atlânticas da Península Ibérica, tornadas célebres pelos seus equídeos. Do mesmo modo, Xenofonte refere-se aos cavalos ibéricos tidos como invencíveis, que combatiam na Grécia como mercenários. Segundo os mais probos estudiosos, como Ruy d’Andrade, a arte da equitação teria nascido nas planícies do Tejo, onde hoje se cria o Cavalo Lusitano. E, de acordo com a mitologia antiga, a lenda do Centauro, metade homem e metade cavalo, teria sido originada na mesma região do Tejo, onde autores árabes do tempo da conquista moura aludem à crença muito antiga de que as éguas eram fecundadas pelo vento, tal a velocidade e destreza de seus filhos. Assim, o Puro-Sangue Lusitano faz parte das mais antigas referências das culturas mediterrânicas, podendo ver-se já as suas características fundamentais nas representações das grutas do Escoural – em contraste com os garranos primitivos das montanhas, pintados em Lascaux ou Altamira.
Depois de um momento de glória, em que os cavalos lusitanos eram requisitados para todas as cortes da Europa, pelas suas qualidades artísticas, houve um tempo que pareceu condenar à extinção tão célebre estirpe, esgotada nas campanhas napoleónicas e subalternizada pela moda do Puro-Sangue Inglês. Foi possível, porém, a recriação do cavalo lusitano já no século XX – dócil, sofredor, generoso e ardente – e é essa saga que constitui matéria-prima para o renascimento atual do Puro-Sangue Lusitano. E quando falamos de uma identidade cultural que se afirma e consolida, a propósito de um rico património equestre, estamos a referir-nos à lição fundamental da cultura portuguesa, como realidade multímoda e complexa, que apenas se enriquece quando se abre ao exterior e tem a generosidade e a inteligência de se fortalecer em diálogo com os outros, mercê das trocas, dos encontros e da capacidade de se tornar melhor.
O Puro-Sangue Lusitano é um bom símbolo da cultura portuguesa – menos caracterizada pela de adaptação e mais pela persistência, maturação e gradual afirmação própria. Importa. aliás, recordar Mestre Joaquim Miranda, o último mestre-picador da Casa Real a percorrer então a pacata cidade de Lisboa com os seus alunos, fazendo jus à velha tradição setecentista da Real Picaria … E foi a consideração das qualidades equestres do Puro-Sangue Lusitano que recuperou a ancestral tradição do cavalo de Finisterra. E não podemos esquecer Frei António das Chagas no poema dedicado ao cavalo do Conde do Sabugal, em que “na harmonia de cadências tantas, / É clave o freio, é solfa o movimento. / Ao compasso da rédea, ao instrumento do chão que tocas, /quando a vista encantas…” Ao longo das páginas que se seguem tomamos conhecimento, em testemunho direto, de uma história de amor e de persistência de cultura e de arte – sobre o puro-sangue lusitano. E voltamos a Frei António das Chagas: “Cantam teus pés e teu meneio pronto, / Nas fugas, não, nas cláusulas medido, /Mil consonâncias forma em cada ponto…” Que melhor elogio poderemos ter da harmonia e da destreza, da fidelidade e da nobreza? Bruno Caseirão em “O Cavalo Lusitano – Tradição, Cultura e Património Equestre” ilustra bem a história muito rica dessa heroica estirpe de equídeos ibéricos.
Neste folhetim de Verão de 2021, temos viajado de lés a lés, acompanhámos uma violoncelista genial, que viu abrirem-se as perspetivas de formação graças à intervenção da Rainha D. Amélia. Antes desse episódio, porém, já o Rei D. Fernando II e a Condessa de Edla tinham protagonizado um importante apoio, dado a um jovem pianista José Vianna da Motta (1868-1948), nascido em S. Tomé, que viria a ser compositor e intérprete com reconhecimento mundial. Aos 14 anos concluiu estudos no Conservatório Nacional, onde estudou com Joaquim Francisco de Azevedo Madeira e Freitas Gazul, destacando-se como menino prodígio em concertos públicos muito divulgados e apreciados. Graças à bolsa de estudos da coroa, o jovem foi para Berlim em 1882, onde frequentou o Conservatório dirigido por Xavier Scharwenka, recebendo ainda lições privadas de piano e composição, entre 1886 e 1889, de Carl Schaeffer, da Sociedade Wagneriana. O jovem ingressou, aliás, na Sociedade Wagneriana em 1885 começando a frequentar o Festival de Bayreuth desde o ano anterior e a refletir intensamente sobre a obra e a influência de Richard Wagner. Foi dos últimos alunos de piano de Franz Liszt em Weimar e, em 1887, frequentou em Frankfurt o curso de interpretação pianística de Hans von Bülow. É essencial o testemunho do estudante sobre essa experiência, já que assim se tornou um dos mais fieis intérpretes de Beethoven, como reconheceram os melhores especialistas. Com Philip Wolfrum, fundador da Sociedade Bach de Heidelberg estudou em 1891 direção de orquestra.
Vianna da Motta tem uma carreira profissional brilhante iniciada em 1886 e desenvolvida ininterruptamente até 1945, com uma primeira digressão europeia em 1888 – Copenhaga, Helsinquia, Moscovo e S. Petersburgo. Apesar de residir em Berlim não deixou de vir regularmente a Portugal. Em 1892 apresenta-se em Nova Iorque, onde conhece Feruccio Busoni, também antigo aluno de Liszt. Em 1896 apresenta-se no Brasil com Bernardo Moreira de Sá, iniciando uma presença muito celebrada na América do Sul, designadamente em Buenos Aires. Entre 1900 e 1905 tem intensa atividade docente em Berlim, mas com o início da Guerra de 1914 perde o visto na Alemanha e é contratado pela Escola Superior de Música de Genebra. Em 1917 assume em Lisboa a direção do Conservatório Nacional (1918-1938), coordenando com Luís de Freitas Branco a reforma curricular da instituição e do ensino da Música e Artes. Entre os seus muitos discípulos contam-se Sequeira Costa, Maria Helena Sá e Costa, Campos Coelho, Nella Maissa e Fernando Lopes-Graça. Como compositor, Vianna da Motta introduz, numa tendência europeia, os temas nacionais na sua obra. E afirma: “Talvez a canção popular seja o melhor caminho para chegar à alma do povo, mas terá então de encontrar-se a própria expressão para o sentimernto da nação. E este é o mais alto ponto de vista”. Insere-se nesta preocupação a Sinfonia “À Pátria”, de inspiração beethoveniana, apresentada em primeira audição em Lisboa em 1894 no salão Neuparth numa redução para piano interpretada pelo próprio autor. António Arroyo dirá: “A Sinfonia em Lá maior ‘À Pátria’ é uma página de elevado simbolismo, uma síntese luminosa e profundamente sugestiva dum momento histórico determinado; o autor, representando o momento de crise em que a pátria parece soçobrar, fá-la ressurgir de novo para uma vida gloriosa num como rejuvenescimento da alma nacional”.
A criatividade do grande artista encontra-se no conjunto de obras do período 1881 a 1905, conservando-se a maior parte dos autógrafos no Centro de Estudos Musicológicos da Biblioteca Nacional de Portugal. Um primeiro grupo integra as obras da infância escritas para piano (1875-1883) – marchas, peças e baile e fantasias sobre temas populares. Um segundo grupo tem as obras compostas entre 1884 e 1895, que corresponde à formação na Alemanha, com peças para piano, Lieder e várias composições instrumentais nos géneros clássicos – incluindo a “Fantasia Dramática” (1893) para piano e orquestra, na tradição lisztiana.
Vianna da Motta é uma referência na cultura portuguesa, muito para além da musicologia, uma vez que concebeu a valorização da identidade portuguesa, não numa perspetiva fechada, mas numa lógica de diálogo e de intercâmbio universalista e cosmopolita, na linha dos maiores autores mundiais.
Guilhermina Augusta Xavier de Medin Suggia nasceu na cidade do Porto a 27 de junho de 1885. O pai Augusto Jorge de Medin Suggia era violoncelista no Teatro de São Carlos, depois de ter sido aluno no Conservatório Nacional. Foi para o Porto para lecionar nas escolas da Misericórdia de Matosinhos. Pouco tempo depois das filhas nascerem, Virgínia e Guilhermina, a família muda-se da Ribeira do Porto para Matosinhos, na Rua do Godinho. Guilhermina começa a aprender violoncelo com o pai aos cinco anos. A irmã Virgínia aprendera piano, pelo que ambas, atuam em sessões públicas na Foz e em Matosinhos. Guilhermina era perfecionista, estudando e aprendendo com extraordinária minúcia. O talento era tal que o Visconde de Villar d’Allen, convidado pela família a assistir aos concertos da pequena Guilhermina, encomendou um violoncelo proporcional à sua altura, já que o instrumento do pai tinha dimensões excessivas. Aos 13 anos, Guilhermina torna-se violoncelista principal da Orquestra do Orpheon Portuense, depois de integrar o quarteto de cordas do violinista Bernardo Moreira de Sá, fundador da agremiação. No verão de 1898, atuava no Casino de Espinho o violoncelista catalão Pau Casals, que viria a ser dos mais celebrados na sua arte. O pai de Guilhermina leva-a ao Casino para ouvir Casals e para conversar com ele, por intermédio de Moreira de Sá. Casals ficou fascinado ao ouvi-la e tornar-se-ia seu mestre e amigo.
Aos 15 anos, ao lado da sua irmã, Virgínia, a jovem atua no Palácio das Necessidades para a família real, manifestando pessoalmente à Rainha D. Amélia desejo de melhorar a sua formação no estrangeiro. A Rainha compreendeu a qualidade da artista e atribuiu-lhe uma bolsa de estudos para Leipzig, na Alemanha, ao lado do seu pai. Iniciou, assim, estudos com o violoncelista Julius Klengel, membro da Gewandhaus Orchestra, dirigida pelo maestro húngaro Arthur Nikisch. Seriam aulas particulares dado o avanço de Guilhermina, no entanto foi um tempo de sacrifícios económicos, pois a bolsa não cobria os encargos do pai, o que exigiu o apoio da irmã, obrigada a abdicar da sua carreira para dar aulas no Porto e Matosinhos. Depois das aulas com Klengel, aos 17 anos, Guilhermina era já a mais jovem de sempre a atuar na orquestra, com a nota especial de o fazer a solo.
Regressada ao Porto, daria um concerto, em março de 1903, que constituiu grande sucesso, ao lado da irmã. Viajou depois por toda a Europa, atuando em Paris, Praga, Berlim, Viena, Amesterdão e Moscovo, sempre com enorme êxito. Em Paris, em 1906, volta a encontrar Pau Casals, por quem se apaixona. E vivem num extraordinário grupo de artistas e filósofos, na Villa Molitor, sendo referidos como a melhor dupla de violoncelistas do seu tempo.
Ao fim de sete anos, o casal separa-se e Suggia vai para Londres. Atua com a Royal Philharmonic Society, London Symphony Orchestra, nos palcos do Royal Albert Hall e Wigmore Hall. Toca Bach, Haydn, Elgar, Saint-Saens, Schumann, Dvojak. Convive com o grupo de intelectuais The Bloomsbury Group, designadamente com Virgínia Woolf. É pintada pelo galês Augustus John (1923). Conhece sir Eduard Hudson, que lhe oferece o castelo de Lindisfarne e o violoncelo Montagnana. O amor não se concretizou e o castelo tornou-se monumento nacional. Contudo, a sala onde atuou é ainda hoje lembrada através de um violoncelo, que simboliza a sua presença. Regressa ao Porto a partir de 1924, compra uma casa na Rua da Alegria, nº 894, aproximando-se da família.
Era uma mulher independente, com o seu próprio automóvel, praticando vários desportos, como o remo, o ténis e a natação.
Em 1927, casa-se com o médico radiologista José Casimiro Carteado Mena, que conheceu no Grande Hotel do Porto. Um dos padrinhos de casamento seria o célebre escultor António Teixeira Lopes. Na década seguinte colabora em várias iniciativas humanitárias durante a Guerra. Dedica-se ao ensino, prosseguindo a atividade pedagógica de seu pai, que havia falecido, e abre novos horizontes.
Em 1937 é condecorada com o Grau de Comendadora da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada, no ano seguinte com a Medalha de Ouro da cidade do Porto e, em 1944, com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Cristo. Percorre o país e ajuda na fundação do Círculo de Cultura Musical de Viseu. No âmbito do Conservatório de Música do Porto, ajuda a sua diretora, Maria Adelaide de Freitas Gonçalves a criar a Orquestra Sinfónica do Conservatório em cuja apresentação em junho de 1948 no Rivoli, atua como solista. Um ano depois, forma o Trio do Porto, com o violinista Henri Mouton e o violetista François Broos. Por motivos de saúde apresenta-se pela última vez a 31 de maio de 1950, no Teatro Aveirense.
No ano anterior, fez a sua última grande aparição internacional, em Edimburgo, com a BBC Scottish Symphony Orchestra. Faleceria a 30 de julho de 1950, na sua casa na Rua da Alegria. No testamento estipulou que os seus violoncelos Stradivarius e Montagnana fossem vendidos, revertendo o resultado para a instituição de prémios anuais a atribuir aos melhores alunos de violoncelo do Conservatório do Porto e da Royal Academy of Music.
Parte significativa do seu espólio pessoal encontra-se na Biblioteca Municipal em Matosinhos, tendo legado os seus cinco violoncelos a ex-alunas e o seu espólio musical ao Conservatório do Porto. Mário Cláudio dedicaria à extraordinária intérprete uma obra sentida, na qual sobressai o talento único da grande Suggia.
Gabriel Fauré - Sicilienne, for cello & piano, Op. 78, interpretada por Guilhermina Suggia, acompanhada ao piano por Reginald Paul
Ironia das ironias! Bulhão Pato é conhecido por algo que não fez, as ameijoas, por um pequeno equívoco, espalhado como falsa notícia. Essas amêijoas não são suas, mas sim uma homenagem (a ele mesmo) do grande João da Matta, o mais célebre dos chefes de cozinha do final do século XIX. Pato era gastrónomo de primeira classe, mas as suas receitas eram de caça, que servia principescamente na casa do Monte da Caparica. Paulo Plantier («O Cozinheiro dos Cozinheiros») dá-nos o menu coevo: Açorda à Andaluza (com azeite Herculano), Perdizes à Castelhana, Arroz opulento e Lebre à Bulhão Pato. Lebres e perdizes são as que Bordalo Pinheiro representa no “Álbum das Glórias”. E João da Matta quis deixar clara a sua admiração pelo seu amigo dedicando-lhe as celebradas amêijoas!
Raimundo António de Bulhão Pato nasceu em Bilbau e morreu no Monte da Caparica (1829-1912), viveu a sua infância no país basco. Em 1837, a família veio para Portugal e em 1845 o jovem inscreveu-se na Escola Politécnica, frequentando, desde muito cedo os meios literários, onde conheceu Herculano, Garrett, Andrade Corvo, Latino Coelho... Com Herculano estabeleceu uma relação intensa, patente nas recordações através das quais conhecemos muitos pormenores biográficos do historiador. Como poeta cultivou a influência romântica. Em 1866 publicou a muito celebrada «Paquita». Apesar dos elogios dos seus contemporâneos, foi como memorialista de primeira água que Bulhão Pato se afirmou. Escritor dotado e de pena fácil dedicou-se ao jornalismo. Amigo de Antero de Quental, sobre este disse: «bem no fundo, Antero foi sempre um romântico. Até no morrer como Werther! No temperamento extremamente sensível, o influxo da educação dos primeiros anos e a natureza do País em que nasceu, desenvolveram-lhe a sensibilidade, e a luta constante. (…) O entusiasmo é bom; mas a crítica é melhor – exclamava ele repetidas vezes. E foi sempre muito mais entusiasta do que um crítico; foi, acima de tudo, um poeta, e como poeta fez a sua obra-prima! Ainda bem!».
Sobre a viagem de Antero de Quental a Nova Iorque, o relato de Bulhão Pato esclarece tudo a propósito da suposta troca com João de Deus. Antero era amigo próximo de Pato, conviviam, nos anos setenta, às quintas-feiras jantavam. «Comia pouco mais que um pintassilgo na sua gaiola; não o atormentava a digestão, que lhe fora tantas vezes cruel! O exercício da palavra, depois do breve jantar, fazia-lhe bem». Pato admirava-o. Sobre a perfeição da verve disse do poeta micaelense: «a língua, que principiava a ser desfeiteada, respeitou-a ele sempre. Percebeu que quanto houvesse moderno, seguindo todas as correntes, numa evolução progressiva, se podia dar dentro dela”. Também Antero estimava Bulhão Pato, de quem disse, em 1873: «literariamente as tuas sátiras são um verdadeiro triunfo; rigor, concisão, simplicidade, - naturalidade. Tens ali versos que hão de ficar na língua». Era um sinal sincero de amiga bondade. O último encontro que houve entre os amigos foi em setembro de 1885, estava Antero em casa de Oliveira Martins no Porto.
A proximidade permite-nos conhecer muitos dos pormenores da vida do mestre Herculano: «viajar (com ele) era, às vezes, ouvir lições de história, na mais elevada, elegante e ao mesmo tempo despretensiosa linguagem”. (…) «Herculano era generoso, mas económico. Comprado Vale de Lobos, aplicou todos os rendimentos ao custeio da propriedade rural e à edificação da casa» (…) «Azeite de prato, como é notório, era coisa que não se conhecia em Portugal”. Foi Herculano quem começou a fabricar o precioso azeite em Vale de Lobos. E Bulhão Pato ainda explica: «Os invejosos mordazes até inventaram que A.H. era homem áspero e brutal no trato. Não conheci ninguém mais sincero, mais simples e ao mesmo tempo mais amorável e sem afetação, delicado».
Conta-se que a Domenico Scarlatti (1685-1757), o extraordinário músico, foi perguntado na chegada a Portugal pelo infante D. António, irmão do rei D. João V, se poderia encarregar-se de dar algumas lições de aperfeiçoamento ao jovem António Carlos Seixas, ao que o italiano terá respondido que tal seria difícil, uma vez que, perante o “apuradíssimo dedo” do jovem de Coimbra, era ele mesmo que desejava receber ensinamentos do português. Lenda ou não, até porque Carlos Seixas era muito mais novo e Scarlatti era um dos maiores cravistas do seu tempo, considerado até superior a Händel, a verdade é que a celebridade do português cedo atravessou fronteiras, apesar de um relativo apagamento formal… Carlos Seixas(1704-1742) é considerado um excecional compositor de concertos e sonatas para instrumentos de tecla, sendo hoje as suas obras conhecidas universalmente, e ele o autor português mais divulgado, discutindo-se as relações e influências das suas obras. Figura cimeira da música portuguesa do séc. XVIII, o seu estilo tem sido alvo de grande debate, nomeadamente na questão da influência de Domenico Scarlatti. O compositor e cravista italiano foi contratado pelo Rei D. João V, em 1719, para exercer as funções de Mestre da Capela Real portuguesa, tornando-se professor de cravo da Infanta Dona Maria Bárbara, filha do monarca, que casaria com o rei Fernando VI, e do Infante D. António. Carlos Seixas tornou-se então organista da Capela Real. As sonatas de Carlos Seixas representam de um modo brilhante a transição estilística entre as épocas Barroca e Clássica.
José António Carlos Seixas nasceu em Coimbra em 11 de junho de 1704. Era filho de Francisco Vaz e de Marcelina Nunes, e estudou com o pai, a quem substituiu como organista da Sé Velha de Coimbra, cargo que exerceu durante dois anos. Aos 16 anos partiu para Lisboa e foi solicitado como professor de música das famílias da corte, bem como nomeado organista da Sé Patriarcal e da Capela Real. Carlos Seixas gozava da fama de ser excelente músico e mestre muito celebrado, impondo-se como organista, cravista e compositor. Com o seu trabalho sustentou a mulher, que desposara aos 28 anos, e os cinco filhos, dois filhos e três filhas, e adquiriu algumas casas nas vizinhanças da Sé. Em 27 de abril de 1736 foi eleito Almotacé de Lisboa (encarregado da verificação dos pesos e medidas e da qualidade dos abastecimentos). Carlos Seixas, sendo Mestre da Capela Real, morreu a 25 de agosto de 1742, com apenas 38 anos de febre reumática. A obra de Seixas é muito significativa da sua época e dos ambientes que frequentou, havendo clara influência da corte do rei Magnânimo e preferência pelas peças de carácter vistoso e brilhante. Oiça-se o Concerto em Lá maior e depressa se compreende a originalidade e o grande domínio instrumental. As cerimónias religiosas ou cortesãs em que intervinha, designadamente para apresentar as suas célebres sonatas, foram sempre muito concorridas e apreciadas, uma vez que o artista tinha uma grande versatilidade, como solista, diretor de orquestra e compositor.
Luís de Freitas Branco considerou ser António José da Silva, o Judeu (1705-1739), o verdadeiro fundador da ópera nacional. Sem ele teriam decorrido trezentos anos da nossa história do Teatro, depois de Gil Vicente até Garrett, sem uma dramaturgia digna de registo. Pode dizer-se que António José da Silva simboliza no teatro português o período que corresponde ao reinado de D. João V, em pleno ideal barroco, envolvendo a luxúria e a ostentação de uma faustosa corte, beneficiária dos lucros do ouro do Brasil. Havia um chocante contraste entre a opulência e as misérias de uma sociedade frágil, pobre e atrasada. O clero representava um influente poder dentro do Estado e a Inquisição atuava impiedosamente, perseguindo judeus e cristãos-novos. A família de António José emigrara para o Brasil desde a geração dos trisavós maternos, fugidos do Santo Ofício, por práticas judaizantes. Em 1711, António José tinha seis anos quando a sua família foi obrigada a abandonar o Rio de Janeiro na sequência do reforço da ação inquisitorial na colónia.
A família vem para Lisboa e o pai, João Mendes da Silva, exerce a sua atividade de advogado. António José estuda, provavelmente, no Colégio de Santo Antão e, em 1722, inscreve-se para estudar Leis e Cânones na Universidade de Coimbra. Em 1726, interrompe os estudos, regressando a Lisboa onde é acusado num primeiro processo inquisitorial. Também sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar, são acusados de práticas judaizantes e condenados a abjuração. Em 13 de outubro, António é preso nos Estaus e duramente torturado. Sai ao fim de dez dias, com os seus bens confiscados e condenado a pena de cárcere, hábito penitencial perpétuo e exigência de ser instruído nos mistérios da fé. Trabalha no escritório de advocacia do pai e do irmão Baltasar. Em 1733 representa no Teatro do Bairro Alto a sua primeira ópera, “A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança”. Morava então no Socorro, próximo do Teatro do Pátio das Arcas, que funcionava onde hoje é a rua Augusta, tendo sido fundado por Fernão Dias de La Torre cerca de 1590. O teatro ardera em 1697, mas fora reconstruído como importante pátio de comédias, cujas receitas revertiam a favor do Hospital de Todos os Santos. O teatro apaixona o homem que lida com os tabeliães e se torna o mais importante dos dramaturgos portugueses. A obra do “Judeu” tem influências evidentes da comédia espanhola, nomeadamente de Lope de Vega e Calderon de la Barca, designadamente no espírito inconformista segundo os ideais do Barroco e os cânones usados em Itália e nos palcos europeus. O artista vive o espírito do tempo segundo uma nova arte, menos retórica e mais ocupada com o deleite dos sentidos. António José da Silva escreve sobretudo em prosa, sendo que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; inserindo a música na intriga dramática, de acordo com o modelo de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano.
No Teatro do Bairro Alto, numa sala do Conde de Soure, na rua da Rosa, adaptada às lides teatrais, chamada Casa dos Bonecos, António José faz representar entre 1733 e 1739 as oito óperas que lhe são atribuídas: D. Quixote (1733), Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), esta última quando o autor já se encontrava encerrado nos cárceres da Inquisição. Nas célebres Guerras, com música de António Teixeira (1707-1774), estamos perante uma ópera joco-séria, na qual dois caça-dotes, Gil Vaz e Fuas, procuram cair nas graças de duas irmãs ricas, Clóris e Nise, utilizando o criado de Gil, Semicúpio. Este, arma estratagemas para introduzir o patrão na casa da pretendida, mas acaba por se enamorar de Sevadilha, criada de Clóris. D. Lancerote, tio das meninas, deseja casá-las com o primo D. Tibúrcio. No final, desfeitos os equívocos da comédia de enganos, casam-se os namorados e Semicúpio com Sevadilha.
Em 1735, António José da Silva casa-se com Leonor Maria de Carvalho, antiga penitenciada em Valhadolid, de quem tem uma filha Lourença. As suas peças e representações obtêm grande sucesso de público e reconhecimento nos meios cultos. Em 1737 é preso com a mulher, a mãe, o irmão e a cunhada durante as cerimónias judaicas de Yom Kipur. Após um longo processo é condenado em 1739 de convicto, negativo e relapso, sendo relaxado em carne, garrotado e queimado. Em 1744, Francisco Luís Ameno publica “Teatro Cómico Português” (2 volumes) onde se incluem as oito obras de António José da Silva, sem menção de autoria. Trata-se do exemplo de quem representa a vitalidade da cultura portuguesa, impondo-se contra a cegueira da intolerância.
Foi Francisco Adolfo de Varnhagen na sua “Notícia Descritiva do Mosteiro de Belém” (1842) que usou pela primeira vez o termo “manuelino”, que se afirma e desenvolve numa época especial da cultura portuguesa. A identificação da arquitetura e da decoração do manuelino tem como referência a esfera armilar. “In Deo Spero”, conferida como divisa por D. João II a seu primo e cunhado, futuro rei D. Manuel, interpretada em ligação com a Cruz de Cristo como sinal de desígnio divino para o reinado. A simbologia é exuberante, incluindo cordas torcidas e elementos naturalistas como corais, algas, pinhas, além de elementos fantásticos como dragões, serpentes, sereias e gárgulas. Os símbolos pessoais do Rei estão presentes. É o gótico português que continua ou é diferente? Há continuidade e desenvolvimento. E há paralelismo e diferença relativamente ao plateresco (como é visível no Hospital dos Reis Católicos de Santiago de Compostela). O Mosteiro dos Jerónimos, a porta sul e o claustro, constituem elementos paradigmáticos da referência estilística. Também a Torre de Belém, com o Jerónimos classificada como património da humanidade pela UNESCO, é marca indiscutível. É um gótico flamejante com personalidade própria. E há importantes antecedentes que anunciam a novidade e a especificidade – falamos do Convento de Jesus em Setúbal, mas também da parte final do mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha), o pórtico das Capelas Imperfeitas e de elementos essenciais do Convento de Cristo de Tomar, sobretudo na emblemática janela da Casa do Capítulo. E não esqueçamos a surpresa de Sintra. D. Manuel amava a arte mudéjar e considerava que deveria ligar influências múltiplas. Lembremo-nos dos gomos nas guaritas da Torre de Belém, de influência Omanita e do golfo pérsico. No Palácio da Vila de Sintra descobrem-se as origens de um estilo que se foi apurando e que o revivalismo oitocentista do Palácio da Pena sintetizou sumamente. Vejam-se em Olivença alguns elementos decorativos, que marcam decisivamente uma identidade inconfundível. Um portal, uma janela, uma pequena igreja permitem encontrar referências manuelinas onde menos esperamos. Referindo-nos a nomes, citemos João de Castilho, responsável pela galilé e capela-mor da Sé de Braga; Diogo Boitaca, arquiteto do Mosteiro de Jesus de Setúbal e Mateus Fernandes, na parte final da Batalha, enquanto Castilho, Boitaca e Francisco e Diogo de Arruda intervieram na Torre de Belém, o Castelo de S. Vicente a par de Belém. O Mosteiro de Santa Maria de Belém articula componentes de serviço aos mareantes, cenóbio e mausoléu. É a única igreja do século XVI europeu que consegue a plena isotropia dos elementos no programa das igrejas-salão. As três naves são à mesma altura, cobertas de abóbada única rebaixada, polinervada, assente em oito pilares octogonais esculpidos. O cruzeiro é um espaço unitário com abóbada de berço, apoiada em mísulas e em dois grandes pilares que rematam o corpo da igreja. O transepto apresenta nos topos os túmulos de D. Sebastião e do cardeal-rei D. Henrique, bem como altares de alabastro com frontais em relevo alusivos a São Jerónimo. O Arco triunfal é ladeado por dois púlpitos de pedra, octogonais. Capela-mor coberta por abóbada de berço de caixotões de mármore, possuindo lateralmente, as arcas tumulares de D. Manuel I, D. Maria de Aragão e Castela, D. João III e D. Catarina da Áustria, sobre elefantes de mármore. O grande sacrário de prata é revestido com painéis pintados da Paixão de Cristo e Adoração dos Magos. O manuelino é um tempo. Lembra-nos Herculano a dizer: “Que queremos que se faça acerca dos monumentos? Que se deixem em paz, as pedras pedem repouso”.
Os Conventos femininos foram durante séculos um extraordinário alfobre da melhor culinária gastronómica e hoje ainda é nos antigos livros de receitas que descobrimos segredos únicos que nos permitem provar, comer e sonhar por mais (lembre-se o “Livro de Cozinha da Infanta D. Maria”, levado pela neta de D. Manuel para Itália, quando se casou com Alexandre Farnese, em 1565). A razão de ser desta experiência tem a ver com a convergência entre as tradições trazidas pelas meninas de família que vinham para os mosteiros com o melhor que sabiam em matéria de manjares e condimentos. A abundância dos doces feitos de gemas de ovos deve-se ao aproveitamento do que se usava no branqueamento das hóstias para consagração com claras de ovos, mas também ao uso das mesmas claras nos engomados no irrepreensível branco dos hábitos das freiras. Nada se perdia, e sobravam gemas – daí a fabricação de doces em abundância, muito procurados pelas famílias requintadas, que conheciam o segredo das monjas. O caso de Arouca é bem ilustrativo. Aí encontramos um rol fantástico de especialidades: barrigas de freira, morcelas doces, papos de anjo, pães de ló, pães de S. Bernardo, castanhas doces, toucinho do céu, roscas de amêndoa.
Se falo de Arouca, poderia referir todo o litoral norte, com muitas variedades de receitas. Além das monjas e freiras, havia ainda as «moças da ordem», serviçais e laicas, que trabalhavam e ajudavam as freiras mas também serviam as casas senhoriais. Daí o encontro do melhor que poderia produzir-se. Os Conventos eram um verdadeiro espaço social procurado pelas famílias senhoriais das regiões e daí a passagem de informação para além de 1834, data da extinção das ordens religiosas, designadamente através das “moças da ordem”. Vejamos o exemplo do pão de ló: terá sido criado na segunda metade do século XVIII, quando o cozinheiro genovês Giobatta Carbona foi enviado a Espanha pelo marquês Domenico Pallavicino e presenteou o rei Fernando VI espanhol, com um bolo extremamente leve, que designaram por Pan di Spagna. Para outros, a designação vem de um mítico doceiro alemão de nome Loth. No Japão designa-se, por influência portuguesa, por Kasutera, que terá a ver não com Castela, mas com claras em castelo… O pão de ló é diferente de norte para sul: mais seco em Margaride (Felgueiras) e molhado em Ovar e Arouca. A lista da doçaria conventual é interminável. Dou uma dúzia de designações, e não mais: suspiros de Braga, ovos moles de Aveiro, foguetes de Amarante, pasteis do Lorvão, nogados de Semide, tigelada, pasteis de Tentúgal, bom-bocado, queijadas e travesseiros de Sintra, pasteis de Belém, D. Rodrigos e morgados. E por fim falo-vos do extraordinário Abade de Priscos, o Padre Manuel Joaquim Machado Rebelo (Turiz, 29.3.1834 – Vila Verde, 24.9.1930) foi um presbítero católico e gastrónomo português que se destacou pelas suas famosas receitas culinárias, especialmente a do celebrado Pudim Abade de Priscos. Foi pároco da freguesia de Priscos em Braga durante 47 anos, e lá desenvolveu o seu génio gastronómico - sendo segundo a população local, "um homem de grande paladar".
O Arcebispo D. Manuel Baptista da Costa, conhecedor das suas habilidades culinárias, sempre que alguém importante visitasse Braga convidava o Abade como chefe de cozinha. Um dos segredos do seu afamado pudim estava na utilização da gordura do toucinho. Fazia-se acompanhar de uma maleta recheada de iguarias e temperos desconhecidos, na qual se julgava estar o seu livro de receitas. Contudo, tal livro nunca foi encontrado, porque, segundo o próprio, as receitas estavam na sua memória, nos seus dedos e no seu paladar. Teria sido ele o inventor da célebre francesinha, trazida depois de uma viagem a Paris com o rei D. Luís. Aliás, conta-se dessa relação, que no dia 3 de outubro de 1887, o rei, com a Família Real, foi de visita à Póvoa de Varzim. O Abade foi convidado para dirigir a cozinha e preparar banquete. No fim do real repasto, o monarca mandou chamá-lo à sua presença, querendo saber qual era a composição de certo prato complicado e de sabor delicioso. O Abade sorridente, informou: – “Com licença de Vossa Majestade, era palha, Real Senhor!” – “Palha!?” – obtemperou atónico o Rei – “Então dás palha ao Rei de Portugal?” O Abade baixou os olhos a fingir-se envergonhado e, com sorriso matreiro, esclareceu: – “Real Senhor! Todos comem palha, a questão é sabê-la dar…”. E D. Luís riu a bom rir…
Andando de norte para sul e de sul para norte, fixamo-nos hoje no centro, na Arrábida, santuário único do Mediterrâneo no Atlântico. E recordo Manuel Viegas Guerreiro a lembrar uma antiga excursão de estudiosos à Arrábida com Orlando Ribeiro (o grande revelador dos maiores enigmas desse lugar mágico), no tempo em que se dedicava intensamente ao estudo da região. «É com saudade que evoco (…) a travessia da serra da Arrábida, de Azeitão ao Portinho, com estação obrigatória no convento, quando Orlando Ribeiro preparava a sua tese de doutoramento. De sacola às costas e martelo em punho, aqui quebrando uma pedra, acolá examinando um seixo, lá íamos serra acima, falando de tudo e até do Materialismo Histórico que já nessa época era moda defender e contestar, na Faculdade. Depois, diante do santo de boca encadeada e cilícios remissivos, tempo de meditação». Orlando Ribeiro é claríssimo: «Por mim direi que não conheço em Portugal nenhum outro lugar onde, em tão pequeno espaço, se possam contemplar tão variados aspetos naturais. Esta riqueza de paisagens se por um lado dificulta muito o estudo geográfico da região, por outro compensa o investigador com a diversidade de ensinamentos que lhe proporciona.»
«É impressionante ver (continua Orlando), do limite do planalto, a mais de 100 metros de altitude, o mar impetuoso quebrar em franjas de espuma na base da arriba quase vertical. As rochas desta zona, calcários e dolomias compactas, duras e resistentes, têm a superfície coberta de rugosidades em todos os sentidos». A exposição a sul permite que o Mediterrâneo aqui se reproduza, como se estivéssemos na Grécia ou no Meio-dia italiano. É verdade que a água do Portinho é mais fria do que a da Falésia algarvia ou do que a da Rocha, mas a magia é semelhante, no cheiro inebriante do “maquis”, graças ao carrasco, aderno, zambujeiro, alfarrobeira, aroeira, urze, medronheiro, rosmaninho, alecrim, tomilho e alfazema… E o geógrafo explicava, virado para o mar no Conventinho, que a razão principal da distribuição da população na Arrábida esteve «no aproveitamento das águas (pesca, salinas, comunicações) e na natureza do solo arável» - as oliveiras de Azeitão, as vinhas de José Maria da Fonseca e da Periquita, os pastores e os rebanhos, vindos da Serra da Estrela, que criaram um novo queijo, com a mesma técnica mas um sabor totalmente outro, pela diferença dos terrenos e pastagens. E a região geográfica é um extraordinário somatório de características físicas e humanas comuns, específicas de um determinado espaço singularmente belo. A «pequena região natural» possui uma «individualidade geográfica» inequívoca que o estudioso demonstra com sensibilidade e talento. A Arrábida é «única pela estrutura entre as recentes montanhas portuguesas, polimórfica no relevo, no clima, na vegetação, na forma dos agrupamentos humanos.» A Arrábida é uma «nesga mediterrânica entre terras e águas atlânticas» que pode ser descoberta ou redescoberta através do extraordinário esboço geográfico de Orlando Ribeiro.
Em terra de poetas (de Sebastião da Gama a Pedro Tamen e António Osório) ninguém melhor do que Frei Agostinho da Cruz (1540-1619), irmão de Diogo Bernardes, que viveu a vida entre Sintra e a Arrábida, para nos guiar nesta viagem a um domínio que se apresenta como antecâmara da eternidade.
«No meio desta serra, onde se cria / Aquela saudade d’alma pura, / Que no duro penedo acha brandura, / Ardente fogo dentro n’água fria: / Ouço do passarinho a melodia, / Vejo vestir o bosque de verdura, / Variar-se no céu outra pintura, / Que em vários sentimentos me varia. / Pasmando de quam mal se gasta a vida / De quem na terra quer subir ao céu / Pois caminhar em fim ninguém duvida. / Menos da vida estreita que escolheu, / Dos seus mais escolhidos mais seguida, / Christo Jesu, que numa Cruz morreu».
«Dos solitários bosques a verdura, / Nas duras penedias sustentada, / N’esta serra, do mar largo cercada, / Me move a contemplar mais fermosura. / Que tem quem tem na terra mor ventura, / Nos mais altos estados arriscada, / Se não tem a vontade registada / Nas mãos do Criador da criatura? / A folha que no bosque verde estava, / Em breve espaço cai, perdida a flor, / Que tantas esperanças sustentava. / Por isso considere o pecador, / Se quando na pintura se enlevava / Não se enlevava mais no seu pintor.