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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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À CONVERSA COM FREI IVO…


Minha Princesa de mim,


Foram bons os dias que passámos em Paris, ainda bem que pudeste vir ter comigo e partilhar concertos, exposições, infindáveis conversas. Antes de regressar ao Japão, ainda dei um pulo ao Saulchoir, por me terem dito que poderia encontrar-me com o Padre Yves Congar. Senti vontade de falar com esse dominicano - um verdadeiro mestre de teologia eclesial no Vaticano II, e não só - depois da conversa que tínhamos tido sobre a vocação militante e até missionária da tua irmã GM. É verdade que ela foi muito influenciada pelo seu amigo Cardeal Cardijn, mas entusiasmou-se sobretudo pela visão da Igreja como Povo de Deus (que se foi afirmando na sequência de um novo surto dos estudos da tradição bíblica e patrística sobre a continuação de Israel do Antigo para o Novo Testamento) e da função apostólica dos leigos, tal como apregoada por Pio XI (1922-1939), o Papa de Cristo-Rei, da Ação Católica e das missões... Sabes como sempre estive politicamente bem longe dos ideais demo-sociais da GM, mas não posso deixar de admirar a generosidade de carácter da jovem aristocrata que, às escondidas da família, se ia "vestir de operária" e trabalhar numa fábrica para iniciar uma das primeiras células da JOC! Foi quando te conheci, nos anos 20, tinha a tua irmã acabado o curso superior de assistência social, o primeiro em todo o mundo, na Rue de la Poste, em Bruxelas. E da JOC a missionária leiga no Congo, sempre por sugestão do Cardijn, foi um pulo. Por isso Pio XI a recebeu e agraciou e ela se casou tarde, que para freira não servia. Registo um comentário do Congar sobre esse apelo de Pio XI aos leigos: "Como já antes o tinham feito Leão XIII e Pio X, mas com renovada insistência, Pio XI convidou os leigos a tomarem a sua parte na missão da Igreja ou do seu apostolado. Isso não significava apenas a ação na ordem temporal, mas também atividades de evangelização e de testemunho. Se a Ação Católica oficialmente organizada supunha um certo "mandato" (palavra muito raramente empregue pelos papas), o apostolado leigo fundamentava-se na própria ontologia sobrenatural do cristão: batismo, confirmação, dons espirituais e carismas, dever de reconhecimento. O convite incansavelmente dirigido pelo papa a "participar no apostolado hierárquico" (Pio XII mudaria participar para cooperar) apoiou-se na revalorização do sacerdócio comum dos batizados". Nasceu frei Ivo (Yves Congar) a 13 de abril de 1904 na cidade de Sedan, naquela Alsácia-Lorena que alemães e franceses sempre disputaram. Talvez por isso - como Robert Schumann para a Europa - a sua vida tenha sido uma procura incessante da união das igrejas na Igreja universal. É curioso observar que aquilo que talvez seja o mais completo e brilhante tratado de eclesiologia, desde o Vaticano II - esse livro de frei Ivo intitulado "L’Église, de Saint Augustin à l´époque moderne" - tenha a sua primeira edição simultaneamente em francês e alemão: "Die Lehre von der Kirche von Augustinus bis zur Gegenwart". Essa publicação é recente, como sabes. O Padre Congar ia manuseando um exemplar dela, enquanto me falava da Constituição dogmática "Lumen Gentium", documento em que o Concílio Vaticano II definiu ou descreveu, pela primeira vez de forma sistemática e autorizada, a Igreja. Faz-se ali uma revisão e um aproveitamento do que de melhor a Igreja foi pensando de si ao longo de séculos, incluindo a forma que se afirmou no Vaticano I. "Mas, diz Congar, há uma libertação resoluta do assombramento da autoridade e da preponderância do jurídico, do societário, que pesava sobre a eclesiologia há século e meio. O concílio - acrescenta ele - fez a justiça de operar um recentramento vertical sobre Cristo e um descentramento horizontal sobre a comunidade e o povo de Deus...  ... Restitui-se assim a imagem de uma Igreja que comporta uma pluralidade de ministérios, segundo as missões, as tarefas, os carismas..." Sabes que tive a tentação de me meter pelo caminho da profissão religiosa, como vida de consagração a Deus e aos outros. Sem sacerdócio - sempre tive e tenho alguma reserva quanto a essa "unção" que nos chegou das religiões primitivas, nacionalistas, bairristas e concorrentes, que se organizaram hierarquicamente, com castas transmissoras dos poderes divinos... Sinto-me espiritualmente mais próximo, quer da mística dos primeiros eremitas e cenobitas, quer da "diakonia", do serviço da comunidade, do que do chamado "exercício do poder espiritual" (expressão que me arrepia). Será uma questão de sensibilidade, mas é assim. Opuseram-me, beneditinos e dominicanos, ao meu desejo de ser simplesmente um "converso", isto é, um "irmão-faz-tudo", a importância da minha educação e cultura, e a necessidade dela para a missão "pastoral" da Igreja, também chamada "seara do Senhor"... E, pensava eu, bem aventuradas são as mulheres que, desde as diáconas da Igreja primitiva - e mais próxima do ideal evangélico - sempre puderam servir com a humildade sublime da Mãe de Deus, sem se revestirem dos símbolos de poder que douraram os báculos dos bispos e puseram três coroas na cabeça do papa. Pois os ministros da Igreja, afinal, não devem ser reconhecidos no sentido político do que manda, mas no do que serve o evangelho. A própria administração dos sacramentos nunca pode esquecer-se desse conceito fundador que é o de Igreja-sacramento primordial, raiz e cultura (no sentido de ambiente vivificante) de todos os sacramentos - por isso mesmo missionária e medianeira para o mundo. Não quero nem posso negar a importância e necessidade dos gestos e dos ritos, para a fidelidade dos quais é certamente necessária uma qualquer organização eclesial. Mas quero, posso e devo dizer que aquilo a que habitualmente se chama "sacramentos" não são receitas médicas nem varinhas de condão. São sinais efetivos do primeiro sacramento do amor de Deus que é Jesus Cristo, cuja forma sacramental atual é a Igreja, seu corpo místico, animada, em cada um de nós, pelo Espírito Santo. Assim também, qualquer vocação monástica, por exemplo, é sacramento. Estar fora do mundo, para no mundo ser testemunho de Deus e medianeiro dos homens. É claro que frei Ivo me sorriu, com condescendência benevolente pela minha ignorância em matéria teológica. Mas também me falou mais - e muito generosamente - da essência da Igreja como sacramento e da importância da sucessão episcopal dos apóstolos na administração dos sacramentos dessa mesma Igreja. E nessa perspetiva esteve sempre presente, também, o seu carinho ecuménico. Em resposta às minhas interrogações sobre o acerto de decisões ou interpretações "dogmáticas" que uma hierarquia, nem sempre recomendável eticamente, foi fazendo ao longo da história, sacudiu por cima do ombro o escapulário do hábito branco e disse-me: "Olhemos para a frente. Temos conseguido, graças a Deus, com apoio em investigações científicas e históricas, compreender melhor a história que envolve a Igreja e a dela mesma - como pensamento e ação que se vão declarando na circunstância mutante do tempo, sejam eles da Igreja oficial ou de tanta gente que nela comunga mesmo quando a interroga... Aproximarmo-nos do sopro e da obra de Deus na história dos homens..." E apontou-me umas linhas do livro que tinha na mão. Conto-te o resto depois. Estou cheio de sono, isto é ciência de mais para a minha carruagem… Adeus, Princesa. "Num apontamento avulso, Camilo Maria vai tecendo considerações sobre ecumenismo cristão, diálogo inter-religioso e... a Europa no projeto de Robert Schumann e Jean Monnet! Curiosa analogia…

 

Camilo Martins de Oliveira