A ESTÉTICA DO EFÉMERO - IV
O instante que nos surpreende pela beleza ou irradiação da efemeridade que revela é, assim, simultaneamente, um sacramento do inefável que não alcançamos, do invisível que ainda não sabemos ver, da palavra que, pronunciada, cria. Mas outrossim podemos imaginar ou inventar um instante, criando então um instantâneo artificial, seja visão infernal de terror, seja aparição abençoada e benfazeja... Tal artifício também poderá servir para exprimir desejo nosso, ou aspiração, ou, mais devotamente, uma prece. Assim, dizemos, se formulam votos. Assim também poderá uma ilusão consolar-nos de uma perda, do desaparecimento de alguém ou, em jeito mais chão, do nosso desespero de reencontro com um amor avistado, fugido e já perdido.
De Sir Thomas Wyatt, diplomata e homem da corte de Henrique VIII, disse C. S. Lewis que esteve sempre enamorado de mulheres de quem não gostava. Talvez assim fosse para com Ana Bolena, dama da rainha Catarina de Aragão, mais tarde, ela também, mulher do rei e mãe da futura rainha Isabel I. Dum caso amoroso mal esclarecido, entre tantos devaneios e namoros corteses e cortesãos, ficou-nos, entre outros documentos, um soneto de Wyatt, que transcrevo e traduzo:
Whoso list to hunt, I know where is an hint | Para quem queira caçar, eu sei onde a cerva está
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Cerva - cervo (veado) no masculino - diz-se, em inglês, deer, palavra homófona de dear (caro, querido) prestando-se assim a metáforas bastante usadas na literatura inglesa da Renascença. Neste soneto, inspirado em Petrarca, como aliás muitas outras composições do poeta e diplomata inglês (chegou a ser embaixador junto da corte de Carlos V), interessa-me aqui mais do que o caso dos amores com Ana Bolena (incluindo o anúncio da próxima posse dela pelo rei - for Ceasar´s I am), a metáfora da caça como perseguição amorosa e, sobretudo, o recurso à efeméride da aparição da cerva como imagem de amor bruxo e breve. Em Petrarca, no soneto que a seguir transcrevo e traduzo, tal aparição corresponde à evanescência de Laura, sua tão amada, sobre quem Deus tinha poder absoluto:
Una candida cerva sopra l´erba Et era ´l sol già volto al mezzo giorno; | Cândida cerva sobre a erva verde
Tão doce e soberba era tal visão;
«Ninguém me toque - à volta do pescoço belo
E já chegava o sol ao meio dia;
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A lenda da cerva de César é antiga, começou a circular talvez trezentos anos depois da morte do augusto romano. Como metáfora é plurivalente, ambígua até, como, aliás, se vê pelas duas versões acima retidas, a de Wyatt e a de Petrarca. Para a primeira, a cerva é intocável porque pertence, é presa de César. Para a segunda, ela é livre, pois que livre a fez um poder mais alto. Num texto ou carta que há anos atrás escrevi, falava de uma ilustração japonesa do Conto do Genji, em que uma menina segura em suas mãos um pássaro que, afinal, não consegue prender: símbolo do amor, simultaneamente como liberdade e prisão necessária. Não há volta a dar-lhe: as almas e as vidas humanas são tecidas pelo engenho e as tensões - dos nossos paradoxos e contradições. Construímo-nos de efemeridades a que pretendemos encontrar ou dar sentido.
Pela sua recitação - ou aparente repetição - a fugaz aparição perdura. E é essa sua própria, essencial, fugacidade que torna o efémero sacramento do permanente. Assim intuímos como o sentido da nossa vida é a graça da incessante procura da visão.
Camilo Martins de Oliveira