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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A ESTÉTICA DO EFÉMERO - IV

 

   O instante que nos surpreende pela beleza ou irradiação da efemeridade que revela é, assim, simultaneamente, um sacramento do inefável que não alcançamos, do invisível que ainda não sabemos ver, da palavra que, pronunciada, cria. Mas outrossim podemos imaginar ou inventar um instante, criando então um instantâneo artificial, seja visão infernal de terror, seja aparição abençoada e benfazeja... Tal artifício também poderá servir para exprimir desejo nosso, ou aspiração, ou, mais devotamente, uma prece. Assim, dizemos, se formulam votos. Assim também poderá uma ilusão consolar-nos de uma perda, do desaparecimento de alguém ou, em jeito mais chão, do nosso desespero de reencontro com um amor avistado, fugido e já perdido.

 

   De Sir Thomas Wyatt, diplomata e homem da corte de Henrique VIII, disse C. S. Lewis que esteve sempre enamorado de mulheres de quem não gostava. Talvez assim fosse para com Ana Bolena, dama da rainha Catarina de Aragão, mais tarde, ela também, mulher do rei e mãe da futura rainha Isabel I. Dum caso amoroso mal esclarecido, entre tantos devaneios e namoros corteses e cortesãos, ficou-nos, entre outros documentos, um soneto de Wyatt, que transcrevo e traduzo:

           

Whoso list to hunt, I know where is an hint
But as for me, alas, I may no more.       
The vain travail hath wearied me so sore           
I am of them that fartes cometh behind.
Yet may I, by no means, my wearied mind         
Draw from the deer, but as she fleeth afore,  
Fainting I follow. I leave off therefore,      
Since in a net I seek to hold the wind.                                       
Who list her hunt, I put him out of doubt,   
As well as I, may spend his time in vain.         
And grave with diamonds in letters plain
There is written, her fair neck round about,  
"Noli me tangere, for Ceasar´s I am,             
And wild for to hold, though I seem tame."                
         

Para quem queira caçar, eu sei onde a cerva está
Mas quanto a mim, pobrezinho, mais não posso.
Pois que empresa tão vã me gastou e amargou
E de mim fez o derradeiro de todos os que a seguem.    
E todavia não posso minha alma cansada desligar
Daquela cerva e, enquanto ela à minha frente foge,
Desfalecendo a sigo e logo desisto e abandono,
Pois que numa rede quis prender o vento.
E a quem a quiser caçar eu posso assegurar
Que tal como eu em vão irá desperdiçar o tempo.
Eis com diamantes escrito em letra cheia,
Na coleira à volta do seu pescoço esbelto,
"Noli me tangere, pois pertenço a César,
E, parecendo mansa, brava demais  para segurar."

 

 

   Cerva  - cervo (veado) no masculino  -  diz-se, em inglês, deer, palavra homófona de dear (caro, querido) prestando-se assim a metáforas bastante usadas na literatura inglesa da Renascença. Neste soneto, inspirado em Petrarca, como aliás muitas outras composições do poeta e diplomata inglês (chegou a ser embaixador junto da corte de Carlos V), interessa-me aqui  mais do que o caso dos amores com Ana Bolena (incluindo o anúncio da próxima posse dela pelo rei  -  for Ceasar´s I am), a metáfora da caça como perseguição amorosa e, sobretudo, o recurso à efeméride da aparição da cerva como imagem de amor bruxo e breve. Em Petrarca, no soneto que a seguir transcrevo e traduzo, tal aparição corresponde à evanescência de Laura, sua tão amada, sobre quem Deus tinha poder absoluto:

 

Una candida cerva sopra l´erba   
verde m´apparve con duo corne d´oro,  
fra due riviere, all´ombra d´un alloro,             
levando ´l sole, a la stagione acerba.  
                          
Era sua vista sí dolce superba,    
ch´i´ laciai per seguirla ogni lavoro;                                
come l´avaro, che´n cercar tesoro,  
com diletto l´affanno disacerba,

«
Nessun mi tocchi  -  al bel collo d´intorno  
scrito avea di diamante e di topazi  -           
libera farmi al mio Cesare parve».      
                         

Et era ´l sol già volto al mezzo giorno;                            
gli occhi miei stanchi di mirar non sazi,
quando´io caddi ne l´acqua, et ella sparve.                

Cândida cerva sobre a erva verde 
com dois cornos de ouro me aparece,
entre dois ribeiros à sombra dum loureiro,
quando se erguia o sol na primavera.

 

Tão doce e soberba era tal visão;   
que para segui-la deixei qualquer labor
como o avaro que para buscar tesouro
com deleite abandona outros afãs.

 

«Ninguém me toque  -  à volta do pescoço belo     
com diamante e topázio estava escrito  - 
ao meu César pôr-me livre aprouve.»

 

E já chegava o sol ao meio dia;
com os olhos meus cansados de mirar
caio à água e ela desvanece.

 

     

A lenda da cerva de César é antiga, começou a circular talvez trezentos anos depois da morte do augusto romano. Como metáfora é plurivalente, ambígua até, como, aliás, se vê pelas duas versões acima retidas, a de Wyatt e a de Petrarca. Para a primeira, a cerva é intocável porque pertence, é presa de César. Para a segunda, ela é livre, pois que livre a fez um poder mais alto. Num texto ou carta que há anos atrás escrevi, falava de uma ilustração japonesa do Conto do Genji, em que uma menina segura em suas mãos um pássaro que, afinal, não consegue prender: símbolo do amor, simultaneamente como liberdade e prisão necessária. Não há volta a dar-lhe: as almas e as vidas humanas são tecidas pelo engenho e as tensões - dos nossos paradoxos e contradições. Construímo-nos de efemeridades a que pretendemos encontrar ou dar sentido. 

 

   Pela sua recitação - ou aparente repetição - a fugaz aparição perdura. E é essa sua própria, essencial, fugacidade que torna o efémero sacramento do permanente. Assim intuímos como o sentido da nossa vida é a graça da incessante procura da visão.

  

Camilo Martins de Oliveira