A FORÇA DO ATO CRIADOR
L’ami de mon amie e o subúrbio como utopia.
«When he was asked ‘Why are you interested in architecture?’, Rohmer gave two main reasons: ‘First, I want to be classical, but I want to be modern, too, so I undertook to show the architecture of our time. Second, for my television program Le Celluloid et Le Marbre (1966) (…) I had met architects who interested me a great deal. It was they who put me in contact with persons involved in the development of the new towns, in particular Cergy, Évry, Le Vaudreuil, and Marne-la-Vallée.» (Baecque e Herpe 2014, 381)
No filme L’ami de mon amie (1987), Éric Rohmer situa a história em Cergy-Pontoise, que é uma aglomeração urbana dos arredores de Paris, uma cidade totalmente independente, com vida e forma próprias. Parece ser uma cidade ideal, para trabalhar, habitar, circular e cultivar o corpo e o espírito. Rohmer apresenta esta Ville Nouvelle, como sendo o oposto de um mero complexo imobiliário banal de periferia, cidade-dormitório, lugar onde as pessoas nunca se encontram e onde a vida lhes pesa.
«…c’est un peu comme un village, ici. Ça m’est dejá arrivé de retomber sept fois sur la même personne, alors que je lui ai déjà dit bonjour une première fois.», Fabien em L’ami de mon amie (Rohmer 1999, 134)
O interesse de Éric Rohmer pelas questões de planeamento e ambiente urbano, ficou marcado pela série Ville Nouvelles, de cinco episódios, que realizou entre 1974 e 1975, para a televisão francesa: Enfance d’une Ville, La Diversité du Paysage Urbain, La Forme de la Ville e Le Logement à la Demande.
Cergy-Pontoise é, em L’ami de mon amie, um mapa de encontros. É uma cidade que parece não necessitar de Paris para existir. Marne-la-Vallée já tinha aparecido em Les Nuits de la Pleine Lune, como sendo um vivo testemunho da herança moderna. A visão, dada por Éric Rohmer, acerca de Cergy-Pontoise é a de uma cidade utópica. Há uma tentativa de recriar uma cidade pura, estéril e prometedora. É apresentada como um modelo novo de cidade, cheio de optimismo, constituído por uma comunidade jovem urbana que reside, estuda, trabalha e se movimenta, sem cessar. Rohmer define Cergy-Pontoise, como sendo um grande lugar onde as ruas e as praças se cruzam constantemente. E parece ser, uma cidade que oferece quotidianamente trabalho e lazer, vida natural e artificial, realidade criada e idílica, centro comercial paradisíaco e lugares reais de encontro.
«Alexandre: Vous vous plaisez à Cergy?
Blanche: Oui, beaucoup.
Alexandre: Evidemment, avec les quinze chaînes de télévision, les lacs, les tennis, bientôt le golf, les deux théâtres, on aurait du mal à s’ennuyer! Je plaisante, mais moi aussi je ne me trouve pas trop mal ici.
Blanche: Moi, je ne me sens faite ni pour la grande ville ni pour la province.
Alexandre: Moi, je me sens fait pour la très grande ville. Ici, je me trouve beaucoup mieux intégré à l’immensité du Grand Paris que si j’habitais au fin fond du premier arrondissement. Mon champ d'action porte sur toute l'étendue de la mégapole parisienne. Je me déplace sans cesse, du Nord au Sud, de l'Est ou à l'Ouest. Je suis l'homme des mégapoles. » (Rohmer 1999, 124-25)
No livro Eric Rohmer, de Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina lê-se que como unidade urbana, Cergy-Pontoise se apresenta singular e oferece três possibilidades a Rohmer:
- Desenho urbano de linhas espaciais geométricas e muito próximo da natureza;
- Facilidade em fundir profundamente as personagens com o espaço em que se movem, enriquecendo assim a ficção. Possibilitar a existência de sítios para trabalhar, para habitar, para lazer e para férias;
- O desenho espacial nítido, serve uma estrutura narrativa franca e transparente. Uma nova cidade parece trazer novos costumes e uma nova moral. Esta nova arquitetura determina trajetos precisos, e contribui para a história das personagens. (Heredero e Santamarina 1991, 242)
O centro de Cergy-Pontoise parece ser polifuncional e dedicado às interacções (com lugares sociais de encontro e de comércio, recuperando a ideia de praça e de rua); aos transportes (a estação do comboio parece estar na praça central); à universidade; ao poder central (câmara municipal); às torres de escritórios e à habitação (com as residências de aparência neoclássica); ao lazer (parque e piscina). O centro comercial de Cergy parece oferecer espaços de consumo local e ocasional, cuja escala é a de bairro e aparece como peça central, sendo espaço importante para encontros ocasionais, mas determinantes entre Fabien e Blanche.
As zonas periféricas de Cergy, no filme parecem ser dedicadas aos espaços verdes e às antigas aldeias. A favor do espaço verde, Cergy parece ser uma cidade aberta a todos, rodeada de ar, sol, lagos (onde Fabien e Blanche fazem windsurf), parques, florestas e espaços para desporto. Fabien explica a Blanche que até os populares vindos dos arredores passam aqui as suas horas livres e os fins-de-semana.
«Soleil. Espace. Verdure.
Les immeubles sont posés dans la ville derriére la dentelle d’arbres.
La nature est inscrite dans le bail. Le pacte est signé avec la nature.», (Le Corbusier 1959, 45)
Cergy-Pontoise parece existir, assim, em perpétua atmosfera solarenga e saudável (a história do filme desenrola-se no verão). É uma cidade que parece não ter barreiras. O espaço verde aparece sem fim e vê-se continuamente pelas janelas do apartamento de Blanche. Os caminhos parecem sempre livres, sem obstáculos, nem congestionamentos.
«Filmed by Éric Rohmer, the new towns have something idyllic about them. » (Baecque e Herpe 2014, 397)
Todas as personagens, em Cergy-Pontoise, têm um poderoso sentido de permanecer e de querer pertencer àquele lugar. Sentem-se participantes ativos da cidade. Os diferentes espaços, no filme, são vistos de maneira a identificarem-se com cada personagem – pois cada uma vive num determinado e específico lugar, reflexo de si própria. Por isso, Cergy parece ser capaz de conter diversas e variadas formas que garantem sempre lugares de encontro e de interesse comuns.
E assim, seguimos Blanche, pelos lugares de Cergy, que mais se identificam com a sua personagem – trabalho na Câmara Municipal, almoço na cantina, piscina, residência de aparência aristocrata, as compras, as deslocações e os tempos livres (ténis, windsurf nos lagos, caminhadas pelas grandes zonas verde, pela margem do l’Oise).
«In Cergy, probably as in any new town, there is a certain mediocrity in the construction of the buildings. (…) painting and facing are not always up to snuff, the materials are artificial, and the trees are not big enough or full enough. (…) Life in Cergy was organised around an obsession with being contemporary. Above all, one has to be optimistic, never see life otherwise. It amused me to show that in a fable in which there was a touch of irony, without aggressiveness. And I'm not sure that when they came out the spectators all wanted to go live in Cergy. » Eric Rohmer (Baecque e Herpe 2014, 398-9)
Porém, na verdade, o filme também dá a entender que a realidade de Cergy-Pontoise não é assim tão perfeita. Projetada entre 1981-85, Cergy constitui-se uma das Villes Nouvelles planeadas pelo governo francês nos arredores rurais de Paris, ainda sob domínio ideológico, surgido no período pós-guerra – para descongestionar centros urbanos, controlar comunidades na periferia e oferecer habitação social. As Villes Nouvelles são inevitavelmente densamente urbanizadas e é a influência de Paris que estrutura todo o seu tecido urbano. No filme, ainda existem atividades que só Paris oferece, sendo esta cidade um cenário de fuga para Blanche.
Segundo Antoine de Baecque e Noёl Herpe, no livro Éric Rohmer: A Biography, Cergy-Pontoise, no filme, apresenta-se uma cidade ambígua. Rohmer dá uma visão irónica da realidade ao não filmar propositadamente a banalidade de uma cidade concreta, como por exemplo não mostra os blocos de habitação altos e em massa, para poder assim revelar o que entende por cidade ideal. Cergy concretiza-se então como um todo falsamente neutro, indiretamente crítico e de felicidade monótona.
«Imposing yet inviting, public but private, classical in spirit yet resolutely modern in execution, Les Colonnes de Saint-Christophe presents a world of contrasts. » (Klanten et al. 2019, 110)
As formas pós-modernas confirmam, em relação a Paris, uma dependência histórica. O passado de Cergy tem de ser simulado por formas construídas que fazem lembrar palácios. Paris é ainda centro, com os seus objetos simbólicos. (Ghirardo 1996, 149). O esquema urbano, Les Colonnes de Saint-Christophe (1985), projectado por Ricardo Bofill, onde Blanche habita, apresenta uma praça monumental, com um marco de referência – a Torre do Belvedere. A forma impositiva e cénica do conjunto dá a impressão de se tratar de uma muralha defensiva, que protege uma cidade no seu interior (Klanten et al. 2019, 110).
Bofill ao projetar para as Villes Nouvelles, afirma um «clássico moderno» através da concepção de uma habitação social com sentido e importância - para que a arquitetura seja, agora sim, capaz de exaltar, para se tornar rica em simbologia e cheia de significado. Bofill ao procurar referências na arquitetura neoclássica (no projeto de John Wood, para o Royal Crescent, em Bath) propõe numa escala colossal, um modo de viver artificial e teatral. Bofill traz, para o quotidiano, elementos formais de palácios aristocráticos e até mesmo dos templos e anfiteatros gregos, acreditando que numa sociedade a posição social e o poder político são determinantes. Bofill deseja, com o poder das suas formas monumentais, puramente visuais e de imitação, exaltar o estatuto do indivíduo, como se isso fosse capaz de eliminar problemas de segregação social e de falta de condições de vida (como o desemprego e a pobreza). (Ghirardo 1996, 150)
Ana Ruepp