A FORÇA DO ATO CRIADOR
O cinema e a arquitetura.
“Les productions de l’architecte font au contraire partie intégrante du monde même, ce sont des choses parmi les choses, dont l’ambition n’est pas de refaire la nature, mais l’enrichir d’acquisitions nouvelles (...) Par œuvre architecturale, j’entends, non pas le monument «en soi», offert dans un écrin à l’appétit du touriste, mais tout l’ensemble des «arts décoratifs», toute la masse des objets usuels, dans la mesure où ils se flattent de ressortir à l’esthétique." (Rohmer 2010, 906-7)
A propósito da intrínseca relação do cinema com a realidade, Éric Rohmer diz que no mundo atual vive-se rodeado de uma paisagem semi-artificial - não existem espaços intocados. Por isso, na sua opinião, a arquitetura faz naturalmente parte da realidade do mundo - existe desde sempre e em todo o lado - é mais uma coisa entre muitas outras coisas.
Rohmer acredita que o cinema e a arquitetura podem contribuir para ordenar a paisagem ao detalhe de modo a contribuir para o máximo deleite do olhar.
A arquitetura e o cinema proporcionam algo diferente de uma atração impensada perante uma paisagem, porque se afirmam sempre na ordem subjetiva.
O cinema e a arquitetura não pretendem transcender a natureza, querem sim acentuar a beleza do maravilhoso mundo físico.
As vastas planícies, as montanhas e o infinito do mar nunca produzem um efeito total sobre nós - a não ser que seja evidente a adição humana. O sentimento de perfeita harmonia entre a natureza e a forma construída pelo ser humano é talvez a única e a melhor porta de entrada para a compreensão da ordem divina. (Rohmer 2010, 935)
Luís Urbano, no texto ‘Discurso Direto’ (em Histórias Simples. Textos sobre Arquitetura e Cinema. Rutura Silenciosa, 2013) escreve que o cinema permite ver a arquitetura de uma forma semelhante àquela que experimentamos quando percecionamos o espaço, e que se relaciona com o movimento. Urbano explica que a nossa perceção da arquitetura não é uma coisa inerte. A arquitetura é sim entendida por cortes (montamos a arquitetura, na nossa cabeça, por partes) e através do som.
Em News from Home de Chantal Akerman (1977) o som de Nova Iorque faz-nos pertencer aquele lugar - não muitas vezes, em cinema, se ouve o verdadeiro som das cidades, (às vezes ensurdecedor) - e sobrepõem-se até às palavras das cartas que estão a ser lidas.
A arquitetura real, construída e visível, é essa que interessa ao cinema - porque cada pequena coisa concreta se deve destacar e deve ter a capacidade de evocar o todo. O cinema também se vai construindo através de cada bocado da arquitetura.
“Um espaço interior
criei
nestes poemas
onde estalam os móveis
e os sentidos
onde as ideias
a meia-luz
respiram
e a vida
as imagens
não se refletem
só nos vidros.”
António Reis em Poemas Quotidianos (Tinta da China, 2017)
Para Luís Urbano, o cinema e a arquitetura têm a capacidade de juntar coisas diferentes, de maneira a criar um significado comum ou um novo significado. A relação entre a arquitetura e o cinema só faz sentido pelo meio da metáfora. Os cineastas têm a capacidade de contar uma história através da arquitetura e têm o poder de controlar completamente tudo o que se passa nela - a maneira como entra a luz e o modo como o espaço é ocupado. Os arquitetos não têm essa capacidade de controlo total, por mais que queiram e ambicionem.
A arquitetura conta uma história através daquilo que representa (transporta iconografias, simbologias, identidades, tipologias, modos próprios de construção). Porém a grande qualidade da arquitetura, em relação ao cinema, na opinião de Luís Urbano, é a capacidade de permitir que todas as histórias aconteçam no seu interior. O cinema também conta uma história e mostra uma realidade, mas ao mostrá-la em partes pode atribui significados diferentes a essa realidade e até pode tornar visível e evidente uma realidade que não se vê.
Ana Ruepp