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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

As fotografias criam uma outra realidade constituída por infinitas unidades desconexas.


“To take a picture is to have an interest in things as they are, in the status quo remaining unchanged (at least for as long as it takes to get a ‘good’ picture), to be in complicity with whatever makes a subject interesting, worth photographing-including, when that is the interest, another person’s pain or misfortune.” (Sontag 2019, 12)


Num mundo inundado de imagens a todos os instantes, sobretudo através das redes sociais, vale a pena relembrar o que Susan Sontag escreveu acerca da fotografia. As suas palavras são provavelmente mais atuais do que nunca.


No texto In Plato’s Cave, Susan Sontag (Sontag 2019, 1-26) revela que as imagens fotografadas não são afirmações sobre o mundo, mas sim bocados dele. São miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer e adquirir.


As fotografias têm a reputação de mostrar a verdade, tal como um espelho. De facto, fornecem evidências mas, na opinião de Sontag são sobretudo o meio mais poderoso da distorção.


Para Sontag, as fotografias tem o poder de alterar e ampliar a ideia sobre o que vale a pena olhar e o que temos o direito de observar. São experiências capturadas e democratizadas. São uma gramática e uma ética de ver - e têm uma grande influência na imagem que construímos do mundo. Sem dúvida que, ao colecionarmos fotografias temos a intenção de colecionar o mundo inteiro.


“Photographs are perhaps the most mysterious of all the objects that make up, and thicken, the environment we recognize as modern.” (Sontag 2019, 2)


Mas a fotografia implica sempre uma relação de poder e de apropriação sobre o objeto fotografado. Tirar uma fotografia significa colocar o sujeito que fotografa numa certa relação de superioridade com o mundo porque sobre esse mundo se impõe um determinado conhecimento.


A fotografia altera a realidade, mas há sempre a suposição de que algo existiu e existe, tal como aparece na imagem. Quaisquer que sejam as limitações ou pretensões do fotógrafo, uma fotografia parece ter uma constante e inerente relação com a realidade visível, muito maior do que qualquer outro objeto mimético. Sontag afirma que a fotografia é a ferramenta derradeira utilizada na sociedade moderna, para vigilância e controlo.


Enquanto a escrita, a pintura e o desenho são sempre vistas como uma interpretação do que sentimos ou do que nos rodeia, uma fotografia é sempre tratada como uma transparência, uma revelação seletiva do real.


Porém apesar da presunção de veracidade total e de reflexo da pura realidade, que dá a todas as fotografias uma espécie de autoridade, interesse e sedução, os fotógrafos são sempre perseguidos por imperativos implícitos de gosto e de consciência. O fotógrafo ao escolher o que mostrar, ao decidir o que cortar e enquadrar, ao manipular a luz, a textura, a forma e a geometria, impõe sempre intenções aos seus objetos. Por isso, na opinião de Sontag uma fotografia será sempre também uma interpretação do mundo.


Fotografar é um ato de não intervenção - quem intervém não pode fotografar, quem fotografa não pode intervir. Porém embora a câmara seja um posto de observação, o ato de fotografar é mais do que um olhar passivo. O ato de fotografar encoraja e dignifica tacitamente o que quer que esteja a acontecer a continuar perpetuamente a acontecer.


Sontag faz notar que sempre que uma fotografia tenta ser totalmente indiscriminante e verosímil torna-se agressiva: “There is an aggression implicit in every use of the camera.” (Sontag 2019, 6)


A fotografia é sobretudo praticada como um entretenimento, um ritual social, um instrumento eficaz de poder, de nostalgia e de imaginária possessão. Há quem só conheça o mundo através do buraco da objetiva. Há quem viva a acreditar que a câmara é o instrumento último e viciante que faz e que mostra a verdade. Vivemos a acreditar que a fotografia é o único meio que certifica, completa, inaltera e imortaliza uma determinada experiência. Mas Sontag acredita que se só certificarmos uma determinada experiência através do ato de tirar uma fotografia, estamos sobretudo a recusar e a negar essa experiência - porque de repente essa experiência interrompe-se por um objeto que interfere e reduz-se a uma procura pelo fotogénico, pelo excessivamente embelezado e interessante, transforma-se numa mera imagem objeto, plana e nivelada e que pode ser possuída.


“While the others are passive, clearly alarmed spectators, having a camera has transformed one person into something active, a voyeur: only he has mastered the situation. What do these people see? We don’t know. (...) Taking photographs has set up a chronic voyeuristic relation to the world which levels the meaning of all events.” (Sontag 2019, 10)


Segundo Sontag, as fotografias não explicam o mundo, criam um outro mundo. São uma outra realidade opaca, manobrável, descontínua e constituída por infinitas unidades desconexas. Se o mundo for visto só através de fotografias transforma-se numa série de pequenas partículas independentes sem passado e sem presente, onde a verdade e a mentira se cruzam sem cessar.


Sontag declara que a fotografia implica que aceitemos o mundo tal qual como a câmara o apresenta. Mas o verdadeiro conhecimento começa só a partir do momento em que questionamos a ordem das coisas. Toda a possibilidade de compreensão está enraizada na capacidade de dizer não. Na realidade nunca entendemos nada só através de uma fotografia - as fotografias preenchem sim lacunas de imagens mentais do presente e do passado. As câmaras que reproduzem a realidade ocultam sempre mais do que revelam. Só o que narra nos pode fazer entender.


As fotografias têm a capacidade de captar sentimentalmente o que não é explicável e tudo o que é sedutor, tudo o que é passível de ser especulado e fantasiado. Testemunham o implacável passar de um momento. São bocados congelados do que já não é. São conhecimento e inventário. São evidências de vulnerabilidade e de transformação. São simultaneamente presença e ausência, ficção e informação, tangível e inatingível, concretização e desejo, distância e proximidade. A sua impressão faz-nos acreditar que dizem respeito a uma verdade derradeira, a uma confirmação do que existiu, a algo memorável. Mas é preciso não esquecer que são sempre uma fatia escolhida, descontextualizada, manipulada e encenada de tempo e de espaço e particular que sempre que repetida até à exaustão nos anestesia.


“The vast photographic catalogue of misery and injustice throughout the world has given everyone a certain familiarity with atrocity, making the horrible seem more ordinary - making it appear familiarity, remote (‘it’s only a photograph’), inevitable.” (Sontag 2019, 22)

 

Ana Ruepp