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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


É o ‘espirito do cinema’ que inunda e alimenta todos os outros ecrãs.


‘The obscenity of our culture resides in the confusion of desire and its equivalent materialized in the image (…) It is this promiscuity and the ubiquity of images, the viral contamination of things by images, which are the fatal characteristics of our culture.’ (Koolhaas 1995, 787)


No livro L’Écran global. Du cinéma au smartphone., Gilles Lipovetsky e Jean Serroy lê-se que são os filmes e os ecrãs que constituem e mudam o mundo de hoje. Vive-se dentro do ecrã - os espaços de encontro da cidade foram substituídos pelas redes sociais e pelas compras online personalizadas. Há uma angústia de não se estar ligado, há uma necessidade em preencher o vazio do isolamento. O individualismo hipermoderno é assim acompanhado por um paradoxo: quanto mais livre e independente é o individuo, mais freneticamente subordinado e sujeito está em relação às ligações imparáveis com os outros. O desassossego surge assim que se está desconectado: ‘Il y a eu une distanciation individualiste, il y a maintenant une interconnection hyperindividualiste. Le ‘je suis’ ne s’affirme plus dans la revendication d’une intériorité authentique et souveraine, mais dans la multiplication des liens virtuels de soi avec les autres au travers de réseaux de socialisation toujours plus larges dans lesquels le sujet est tout à la fois acteur et consommateur.’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


A cultura da transparência expõe online o imediatismo de uma experiência sem segredos, sem recuos e em contínuo. É uma cultura que procura a existência (truncada, desenquadrada, descontextualizada, volátil e incoerente) sob o constante olhar e aprovação dos outros. O autoretrato do individuo hipermoderno constrói-se através da comunicação compulsiva da vida privada e da constante necessidade de publicidade do eu singular. Lipovetsky e Serroy explicam que foram os filmes e sobretudo o cinema que muito contribuíram para esta vivência que se partilha através do ecrã, sem parar. 


‘… le cinéma est celui qui a changé le premier l’imaginaire des hommes et leur rapport au monde, et qui a imposé ce changement en pénétrant tous les autres écrans tout au long du XXe siècle.’  (Lipovetsky et Serroy 2007)


O mundo contemporâneo ao ser um mundo urbano é naturalmente visual, porque queremos ver e ser vistos. Em vez de contemplar, o ser urbano anseia por sensações vertiginosas, excesso, imediatismo, simultaneidade e gratificação instantânea. É através das imagens que se satisfazem todos os desejos de conhecimento, de entretenimento, de socialização e de relacionamento. Para Lipovetsky e Serroy, vivemos no tempo do ecrã total - na tecnologia, no fluxo financeiro, na vigilância, na informação, na arte, na música, no entretenimento, no desporto, na publicidade, no diálogo, no saber… Toda a vida e todas as relações com aquilo e com aqueles que nos rodeiam, são totalmente mediatizadas, por uma multitude de interfaces.


Apesar de nos dias de hoje, o cinema ter perdido a sua posição dominante, ainda é através dos filmes que se aprende a ser - os filmes já fazem parte do imaginário de cada um. O indivíduo da sociedade hipermoderna olha para o mundo como se de cinema se tratasse. O cinema é o filtro inconsciente e perecível por onde se vê a realidade em que se vive. Lipovetsky e Serroy explicam que a esfera de ação dos filmes penetra todos os aspetos da existência e tenta sempre não excluir nenhum tipo de identidade e de experiências. O cinema é formador de um certo olhar que influencia fortemente diversos aspectos da vida contemporânea: ‘…on adore un film comme une mode, c’est-à-dire dans un intervalle court.’  (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema sempre triunfou a explorar o imaginário através da espetacular produção de imagens icónicas e do star-system e esse é o ‘espirito do cinema’, que inunda e alimenta todos os outros ecrãs: ‘…nous sommes tous en passe de devenir des réalisateurs et des acteurs de cinéma (…) on veut non plus seulement voir des ‘grands’ films, mais le film des instants de sa vie et de ce qu’on est en train de vivre.’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema nasceu sem antecedentes, sem passado, sem referências, sem modelos, sem ruturas, nem oposições. Foi a técnica que inventou o cinema. Mas o seu verdadeiro sucesso deu-se assim que se começou a referir a uma narrativa com força emotiva. O cinema, a tela e o ecrã luminoso projetam o movimento da vida através da lógica do efémero e da sedução. O cinema é a arte da ilusão, da idealização, da artificialidade e da mitificação. Explora ao máximo a magia das aparências para ser imediatamente consumida em massa: ‘Le cinéma vise le grand public, un public de masse envisagé sans distinction de classe, d’âge, de sexe, de religion et de nation. (…) Un art d’essence démocratique, cosmopolite, à vocation aussitôt planétaire…’ (Lipovetsky et Serroy 2007)


O cinema é a ‘caixa mágica’ e a ‘catedral do prazer’ que fabrica e contém todo e qualquer tipo de sonho e objeto de desejo mais íntimo. É o cinema que fornece o imaginário do público em massa. Através do cinema, a distância entre o indivíduo e o mundo imaginado/desejado desaparece por completo. Foi a invenção do cinema, que permitiu ao ser humano estar constantemente dentro do mundo que deseja. E a sua retórica simplificada implica o menor esforço possível para que possa ser compreendida, sem demora, pelo espectador (que não necessita de qualquer formação prévia).


Para Lipovetsky e Serroy, o cinema não trata de se referir a qualquer tipo de elevação espiritual e nem tenta revolucionar o olhar que se tem sobre o mundo. O cinema deseja simplesmente ser imediatamente consumido permitindo satisfação instantânea. É a evasão mais fácil e acessível do indivíduo contemporâneo. Tal como a moda, o cinema é capaz de modificar atitudes, códigos de beleza, modos de ser e de fazer. Não é por isso um simples reflexo do seu tempo, porque altera, ainda que breve e transitoriamente, gostos e sensibilidades. Na opinião de Lipovetsky e Serroy, o cinema é tal como um produto de consumo não durável, o seu efeito é efémero e pontual.


A partir do cinema constrói-se assim a ideia de que é possível viver dentro de outras realidades, do efeito poderoso da imagem, da permanente presença do ecrã e da construção de um mundo genérico e global. O ‘espírito do cinema’ muito contribui, por isso, para o presenteísmo extremo da contemporaneidade - através do desejo de vibrar na velocidade e na intensidade do momento descontínuo e na repetida experimentação de sensações diretas e imediatas. Lipovetsky e Serroy reforçam, deste modo, a ideia de que hoje se vive dentro de um constante filme instantâneo, feito de imagens excessivas e extremamente sensoriais e que intensificam o individualismo hedonista e compartimentado.

 

Ana Ruepp

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