A FORÇA DO ATO CRIADOR
Os filmes a carvão de William Kentridge são um campo privilegiado para captar a transformação da consciência.
“He saw that the water continually flowed and flowed and yet it was always there; it was always the same and yet every moment it was new.”, Herman Hesse In Siddhartha
Os filmes a carvão de William Kentridge (1955) são um campo privilegiado para captar a transformação da consciência. Através do carvão, Kentridge consegue esculpir as várias imagens que se vão formando no pensamento à medida que um desenho se inicia. E é o carvão que permite que o imprevisto aconteça. Os desenhos que sobrevêm uns atrás dos outros não obedecem a nenhum plano prévio. Por isso, as sequências fotografadas tomam rumos inesperados e são o puro espelho de uma multitude de reflexões, ideias, emoções, ações, impressōes e memórias que se vão dando num determinado momento.
O desenho aparece aqui como um rio que não pára de correr. É como uma força em forma de sintonia com o tempo e o espaço, sempre presente e constante, mas sempre em permanente mudança. O desenho que se transforma, é uma interação mas também ao mesmo tempo uma reflexão acerca do mundo interior e exterior.
Kentridge explica que existem uma ou duas imagens chave no início de cada sequência e é sobre essas que a imagem em movimento se vai desenhando e descobrindo. No total, talvez 20 ou 30 desenhos sejam feitos para cada filme, mas cada desenho é sucessivamente apagado e redesenhado vezes sem conta. No final há um papel sujo e borrado, mas que contém o rastro de tudo o que aconteceu no desenho enquanto ele está sendo filmado. Cada desenho é uma acumulação do tempo, do espaço, das ações, das ideias e das narrativas que estão congeladas dentro da câmara.
O papel sobre o qual se desenha está pendurado numa parede do estúdio. Na parede oposta encontra-se a câmara. Kentridge nunca vê o que está a ser fotografado. Kentridge só consegue ter acesso ao momento presente, aquilo que está a ser desenhado, num espaço pequeníssimo de tempo. E é entre o desenho e a câmara que novas ideias surgem e se desenvolvem. Por isso, a câmara grava não só a transformação de um desenho mas também é a testemunha do processo físico e do ato de fazer. O ritmo do desenho é, pois, determinado pela distância e pelos passos que separam o papel da câmara (Kentridge descreve os seus passos no estúdio como sendo equivalentes às ideias que circulam na sua cabeça). A mesma mão que risca e apaga com o carvão, tem de recuar para apertar com a maior desejada frequência o botão da máquina fotográfica. Deste modo, Kentridge permite que o movimento do corpo faça emergir o fluir do pensamento e que este se fixe para sempre.
Os filmes de Kentridge têm a capacidade de perpetuar e conter todos os pensamentos nublados, entrelaçados, emaranhados, entretecidos e misturados que o carvão vai moldando no papel. Quanto mais Kentridge fotografa mais detalhe gravará o filme e mais compreensível será essa simultaneidade. O processo incessante e imparável da transformação de um desenho ficará assim, para sempre, a pertencer a uma unidade.
“He had often heard all this before, all this numerous voices in the river, but today they sounded different. He could no longer distinguish the different voices - the merry voice from the weeping voice, the childish voice from the manly voice. They all belonged to each other: the lament of those who yearn, the laughter of the wise, the cry of indignation and groan of the dying. They were all interwoven, interlocked, entwined in a thousand ways. And all the voices, all the goals, all the yearnings, all the sorrows, all the pleasures, all the good and evil, all of them together what is the world. All of them together was the stream of events, the music of life.”, Herman Hesse In Siddhartha
Ana Ruepp