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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A metrópole revela-se como um lugar único, que se desenvolve através de correntes opostas, onde a nossa existência fugaz é apenas mais uma pequena célula.


“Je marche dans la foule qui sort de la Gare Saint-Lazare, et s’écoule dans les rues avoisinantes. 
J’aime la grande ville. La province et les banlieues m’oppressent. Et, malgré la cohue et le bruit, je ne rechigne pas à prendre un bain de foule. J’aime la foule comme j’aime la mer, non pour m’y engloutir, m’y fondre, mais voguer à sa surface, en écumer solitaire, docile en apparence à son rythme, pour mieux reprendre le mien propre, dès que le courant se brise ou s’effrite. Comme la mer, la foule m’est tonique et favorise ma rêverie. Presque toutes mes pensées me viennent dans la rue, même celles qui concernent mon travail.”, Éric Rohmer In L’amour l’après-midi


No filme L’Amour l’après-midi (Rohmer, 1972) Frédéric confessa o seu gosto pela grande cidade. A metrópole facilita oposições e vive de contradições. É através do mergulho na multidão, que Frédéric consegue revigorar-se e encontrar o seu próprio ritmo - e apesar de todo o barulho quase todos os seus pensamentos lhe vêm à cabeça na rua.


No texto “The Metropolis and Mental Life” ((adapted by D. Weinstein from Kurt Wolff (Trans.) The Sociology of Georg Simmel. New York: Free Press, 1950, pp.409-424)), Georg Simmel escreve que as condições da vida numa metrópole estão associadas a rápidas aglomerações de imagens em constante mudança, a descontinuidades acentuadas, a apreensões inesperadas e a impressões que se precipitam. O ritmo e a multiplicidade da metrópole contrasta com a vida das aglomerações mais pequenas onde há mais espaço e mais tempo para que as imagens mentais e sensoriais fluam mais lenta e uniformemente. Simmel explica que a vida nos círculos mais pequenos assenta em relações emocionais mais profundamente sentidas que crescem rodeadas em ritmos constantes e costumes ininterruptos. 


Já a vida metropolitana tem como base o predomínio do intelecto. Segundo Simmel, o intelecto é a mais adaptável das forças interiores. O intelecto ajusta-se à mudança e ao contraste dos fenómenos sem choques, nem convulsões interiores. São as forças racionais que dominam o ser metropolitano. A intelectualidade é assim vista como uma capacidade menos sensível e mais afastada da profundidade da personalidade. E Simmel pensa ser esta a capacidade que preserva a vida subjetiva contra o poder esmagador da vida metropolitana. 


A economia monetária e o intelecto estão intrinsecamente ligados na metrópole, ao partilharem a atitude mais dura e irrefletida perante pessoas e coisas. Simmel afirma que o intelecto pode ser indiferente a toda a individualidade genuína e a racionalidade extrema reduz tudo e todos a um número indiferenciado. 


O individuo metropolitano relaciona-se com as outras pessoas de acordo com interesses e realizações objetivas. No pequeno círculo as pessoas conhecem-se e a produção tenta satisfazer a pessoa particular. Na metrópole a produção é feita em massa, para satisfazer pessoas anónimas, e por isso os interesses puramente individuais sobrepõem-se e tomam uma importância desmedida.


A metrópole, como organismo composto, só se concretiza na agregação de muitas pessoas com interesses muito diferenciados e na integração de muitas atividades e relações dentro de um espaço estável e impessoal. A pontualidade, a calculabilidade e a exatidão são impostas a todas os indivíduos por causa da extensão e da complexidade da metrópole.


Em contraste com a exatidão, a precisão e a impessoalidade na metrópole pode surgir uma incapacidade em reagir a novas sensações. Esta atitude de indiferença, resultado também da importância da economia monetária, pode provocar o alheamento em relação ao sofrimento e à exploração do outro.


O metropolitano tenta preservar o eu. O individuo da grande cidade ao ser mais reservado torna-se mais insensível - e a indiferença pode provocar estranheza, aversão, e até repulsa mútua, e que levada ao extremo pode transformar-se em ódio e em conflito físico. 


Porém apesar do perigo da indiferença é a distância e a estranheza que protegem os indivíduos na grande cidade. Simmel explica que a dissociação da vida metropolitana é, na realidade, apenas uma das suas formas elementares de socialização. A reserva é o fenómeno mental mais geral da metrópole, pois pode conceder ao indivíduo liberdade pessoal e tolerância.


Um círculo social pequeno somente permite aos seus membros um campo limitado para desenvolver determinadas qualidades e movimentos individuais. Assim que uma pequena associação se expande (numérica e espacialmente) a unidade interior enfraquece e a rigidez da demarcação original contra os outros é suavizada através de múltiplas relações e ligações. E o indivíduo ganha liberdade de movimentos e adquire também uma individualidade específica e diferenciada, à qual a divisão do trabalho no grupo alargado dá ocasião. 


Segundo Simmel, quanto maior for o círculo que forma o nosso meio e quanto mais abertas forem as relações com os outros, mais se dissolvem as fronteiras, mais se quebra o círculo que limita realizações, condutas de vida e perspetivas do indivíduo, e mais facilmente se dá uma especialização quantitativa e qualitativa.


A proximidade corporal e a estreiteza do espaço tornam a distância mental, entre indivíduos, muito visível e mais dificilmente suportável. Por isso, a reserva e a indiferença recíprocas sentidas na multidão da metrópole até estimula a independência e a aceitação de cada indivíduo. 


Não é apenas a dimensão alargada da área e o elevado número de pessoas que faz da metrópole o local da liberdade. É também através da transcendência da extensão visível, onde o horizonte de cada indivíduo se expande de acordo com aspetos quantitativos da vida. No pequeno círculo, o indivíduo é reduzido aos limites do seu corpo. Mas, na metrópole o indivíduo não se esgota nos limites do seu corpo ou no espaço da sua atividade imediata. Na metrópole, alcance físico de uma pessoa é antes constituído por uma alargada rede de conexões que se disseminam temporal e espacialmente. 


A liberdade individual, da metrópole, não deve ser entendida apenas no sentido da mera liberdade de mobilidade e da eliminação de preconceitos. O importante é que a particularidade e a incomparabilidade, que cada ser humano possui, se possa também exprimir na elaboração de um modo de vida particular e inconfundível. A grande diversidade de serviços, a enorme concentração de pessoas e a intensa dependência em relação ao outro, obrigam, o indivíduo a especializar-se numa função que é insubstituível. O indivíduo tem assim de afirmar a sua personalidade dentro das dimensões da vida metropolitana - a brevidade e a escassez dos contactos inter-humanos contribuem para que o individuo se possa destacar. 


Na opinião de Simmel, o desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se então pela preponderância do "espírito objetivo" sobre o "espírito subjetivo”. A atrofia da cultura individual através da hipertrofia da cultura objetiva é uma das razões do ódio amargo que os pregadores do individualismo mais extremo nutrem contra a metrópole. Apesar de livre, o indivíduo sente-se igualmente só e perdido na multidão metropolitana. Na metrópole assiste-se igualmente a um retrocesso da cultura do indivíduo no que diz respeito à espiritualidade e ao idealismo. Esta discrepância resulta essencialmente da crescente divisão do trabalho e da crescente importância dada à economia monetária, como já foi atrás referido. O indivíduo é uma pequena peça inserida numa enorme organização de poderes - que lhe retira todo o movimento, toda a espiritualidade e todo o valor, de modo a transformar a sua forma subjetiva numa forma de vida puramente objetiva. 


Por isso, Simmel explica que embora a vida se torne mais fácil para a personalidade se afirmar na medida em que os estímulos, os interesses, o uso do tempo e da consciência lhe são oferecidos por todos os lados, na metrópole a pessoa é transportada como se estivesse numa corrente, sem quase precisar de nadar por si própria. Mas, a vida metropolitana é composta por conteúdos e ofertas impessoais que podem provocar incomparabilidades. Isso faz com que o indivíduo recorra ao máximo à singularidade e à particularização, a fim de se preservar.


A metrópole contribui para a independência individual e para elaboração da própria individualidade mas também é o terreno que ultrapassa toda a vida pessoal. É desta tensão e conflito que vive a metrópole. É função da metrópole proporcionar espaço para esta luta e para esta reconciliação. Pois a metrópole apresenta as condições peculiares que nos são reveladas como oportunidades e estímulos para o desenvolvimento do indivíduo. A metrópole revela-se como um lugar único, que se desenvolve através de correntes opostas, onde a nossa existência fugaz é apenas mais uma pequena célula.


Ana Ruepp