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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

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Raul Lino e a Casa do Cipreste (1907-14).

 

‘Para ninguém deve já ser surpresa que as casas são projetadas a partir do interior. Como moradia, a casa tem de obedecer ao modo de vida e às predileções dos principais moradores; como construção terá de sujeitar-se às condições físicas do sítio (natureza do solo, orientação, acessos, vistas).’
Raul Lino em ‘Casas Portuguesas. Alguns Apontamentos sobre o Arquitetar das Casas Simples’, 1992

 

A Casa do Cipreste está situada na periferia de Sintra, numa das encostas do Castelo dos Mouros. Numa propriedade designada outrora por ‘Pedreira’, Raul Lino (1879-1974) começou a esboçar as primeiras ideias da sua casa de habitação sazonal a partir de 1907, prolongando-se até 1914, data de conclusão da obra.

Contra o academismo importado francês de cariz mais racionalizante de Ventura Terra (1866-1919) e mais revivalista de Marques da Silva (1869-1947), a Casa do Cipreste introduz um novo entendimento da arquitetura doméstica, baseada na nostalgia e na procura transcendente das raízes culturais, tradicionais e espirituais de Portugal.

A casa apresenta-se organicamente distribuída, totalmente integrada na paisagem e segue a tipologia de casa-pátio. Adotando a ideia de que cada volume tem uma forma acordada à função, os módulos vão-se distribuindo em diversas plataformas do terreno. Em torno do pátio-jardim criam-se assim, uma sucessão de ambientes sublimes, de escala mais intimista e de contemplação. A paisagem invade o interior e a luz entra filtrada pela vegetação. A racional hierarquização do programa diversificado, desenrola-se por uma sucessão de acontecimentos ora descobertos, ora escondidos, desde o piso colado à terra até às águas furtadas.

A zona de serviços localiza-se a Norte, a zona de maior importância social a Ocidente e a Sudoeste e as zonas de maior privacidade estão voltadas a Sul. A zona social detém uma maior complexidade planimétrica, sendo a sala de jantar oval e a de estar octogonal.

O desenho é total. Raul Lino desenhou também os painéis de azulejos que se encontram nos alpendres e em alguns interiores e escolheu criteriosamente o mobiliários de maneira a constituírem-se como que corpos integrados.

Raul Lino passou a infância em Lisboa, estudou num colégio em Inglaterra até 1893, ano em que se mudou para a Alemanha, onde estudou artes decorativas e trabalhou no atelier de Albrecht Haupt, estudioso admirador da arquitetura portuguesa, com quem manteve contacto e que muito contribuiu para a sua formação arquitetónica. Em 1897, Raul Lino regressou a Portugal. A partir de então e durante mais de setenta anos realizou inúmeras obras – tais como o concurso para o Pavilhão Português na Exposição Universal de Paris (cujo arquiteto escolhido foi Ventura Terra), a Casa dos Patudos para José Relvas (1904), o Jardim-Escola João de Deus (1914), o cinema Tivoli (1924) e o Pavilhão do Brasil na Exposição do Mundo Português (1940).

Ora, o advento da indústria, no final do séc. XIX dividiu a cultura arquitetónica entre progressistas (os que aceitavam a indústria com otimismo) e os românticos (os que recusavam a indústria por receio do estrito funcionalismo, da produção em série e sem alma). Vanguarda e nostalgia são noções que vão dominar as tendências da arquitetura portuguesa do início do séc. XX e que se irão prolongar ao longo de todo o século.

Raul Lino contraria o advento da era materialista, ‘a regressão aconselhada pelo triste resultado da desumanição geral da vida’ (Lino, 1992) e o gosto pela era da máquina, reclamando antes a expressão de ideias e de emoções profundas. Tenta dar força a todos os aspetos do ambiente doméstico através da inclusão de valores como a espiritualidade, a integridade estrutural e contextual, a assimilação da cultura local, a utilização de materiais locais acompanhados por um respeito pelos métodos tradicionais de construção.

Assiste-se a uma orientação mais artesanal muito a par do trabalho de John Ruskin, Philip Webb e William Morris. O respeito pelo carácter sagrado do artesanato e pela terra tem o poder de aproximar a arquitetura à vida. Raul Lino está convencido que a função cultural do trabalho artesanal é a individualização humana ou até a humanização objetual. Raul Lino apreendeu de Haupt a conceção da cultura como elemento vivo, que deve ser passível de ser experimentada e participada. O uso do ornamento não pode ser excessivo mas a criação de qualquer obra de arte tem de ser total – o design total é a única maneira de dominar todos os aspetos da vida doméstica.

Raul Lino teorizou os seus princípios, não como modelos a aplicar epidermicamente mas antes como valores de distinta intuição cultural – A Nossa Casa, 1918; A Casa Portuguesa, 1929; Casas Portuguesas, 1933; e Auriverde Jornada, 1937.Com a publicação de ‘Casas Portuguesas’ (1933) as preocupações poéticas e artesanais de Raul Lino foram encadeadas de maneira a estabelecer uma série de princípios para ‘arquitetar casas simples’. É ilustrada com vários desenhos de projetos de casas de vários tamanhos, para vários climas e diversas regiões de Portugal numa tentativa direta de recuperar os méritos básicos da casa do pequeno proprietário português e assim tentar colocar a arte ao serviço da sociedade. O desejo pela casa unifamiliar aproxima-se ao postulado pelo movimento das cidades-jardim, formulado por Ebenezer Howard (1850-1928).

A Casa do Cipreste pode ser assim vista como a síntese do significado de arquitetura para Raul Lino – produto do homem para o homem com lugar, história, raízes, e que facilita ‘o sonho de uma moradia própria, independente, ajeitada à nossa feição e adereçada a nosso gosto; reduto da nossa intimidade, último refúgio do indivíduo contra a investida de todas as aberrações do coletivismo… façamo-la verdadeiramente nossa, reflexo da nossa alma, moldura da vida que nos é destinada.’ (Lino, 1992).

Ana Ruepp