A FORÇA DO ATO CRIADOR
Ainda sobre as casas de Kazuo Shinohara.
'Houses cannot exist entirely outside the context of the most insatiable desires of man.',
Kazuo Shinohara, 1967
O espaço das casas, que Kazuo Shinohara projetou, é propositadamente enigmático e desconcertante. Advém de uma sabedoria intuitiva única, numa tentativa de valorizar a singularidade do ser que as habita. Shinohara ao dedicar o seu interesse aos desejos humanos mais profundos deseja produzir algo que perdure no tempo e para sempre.
‘The architectural mainstream, as a critical part of our industrialized society, focuses attention on the shape and profile of the collectivity. This is only natural, given today’s mass society. This condition for the design of a house, reaching out to one unit among countless others, may hardly spark much hope.’, Shinohara, 1967
Shinohara acredita que o arquiteto deve desenvolver o seu talento expressivo único para criar espaços que, ao sublinharem as mais profundas emoções humanas, salvarão a arquitetura de um modelo repetitivo. Os espaços devem assim, a seu ver, ter antes de mais um caracter irracional, produto da enorme potencialidade tecnológica atual . Por isso Shinohara afirma que a tecnologia é magnífica mas a vida e a alma humana são ainda mais extraordinárias. Shinohara declara ainda que o desejo supremo, em criar espaços que estejam mais além da escala física humana e mais além da escala do quotidiano, pode e deve ser captado pela irreflexão intuitiva do arquiteto. É o desvio ao espaço convencional quotidiano que tende a fazer questionar a ação do homem e a transcender as suas referências. É o desvio à norma que traz o incómodo, o espaço não quotidiano e por isso uma nova forma – uma forma construída eterna.
‘The planning of large urban spaces – or the design of great building complexes – now seems most promising.’, Shinohara, 1967
Ora, na Casa Branca (1964-66) o espaço único é público, formal, monumental, simbólico, espiritual e sagrado - é claridade. O pilar que atravessa o espaço principal da casa é o elemento que faz a comunicação entre o céu e a terra (tal como acontece com os pilares nos templos japoneses, que são centro de todos os gestos e movimentos). Já na Casa Terra (1964-66) o espaço é privado, primeiramente emocional e espontâneo. É vitalmente informal, é facetado, multicolor e obscuro. Nos seus escritos, Shinohara revela a sua intenção em expressar diversas emoções reprimidas, na Casa Terra – tal como a ansiedade, a fúria e a alienação. Até ao final da sua vida, Shinohara projeta as suas casas baseando-se no princípio da separação de espaços funcionais e não funcionais (esta efetua-se em planta ou em corte) através da separação entre o espaço único, público, e o espaço anexo oculto, privado. Só assim poderá obter-se a máxima emoção sem comprometer a funcionalidade normal da casa.
A casa do poeta japonês Tanikawa foi feita de acordo com a vontade do proprietário: 'Winter house or pioneer cabin (house). Summer space or church for a pantheist (need not be a house).' Shinohara projectou esta casa como se de um exterior interiorizado se tratasse – um anti-espaço que convida à utilização livre, em que o seu chão de terra segue a pendente natural da colina. O espaço principal é de meditação, mas é também um espaço que Shinohara oferece ao utilizador com uma funcionalidade ilógica. É um espaço nu, vazio puro tomado à natureza e por excelência, o lugar de inspiração do poeta.
A casa Uehara (1975-76) é selvagem: ‘A more significant point was that the large spaces I have always taken as my ‘theatre of operations’ are here nowhere to be found. They had to be replaced by a collection of much smaller spaces, whose combination became a new problem. It was in this connection that the concept of ‘savagery’ arose shortly after the beginning of my Third Style.’ (Kazuo Shinohara, 1977). De acordo com Shinohara a conceção desta casa foi feita em várias fases e o seu carácter de colagem, de partes alietórias, materializa as mudanças que foram sendo feitas ao programa durante o projeto da casa. As desproporcionadas estruturas cruzam os espaços de estar, comer e cozinhar e relacionam-se fortemente com as neuroses da vida contemporânea, corporizando a dualidade entre o funcional (racional e lógico) e o mágico (irracional e ilógico).
A casa em Yokohama (1982-84), hoje demolida, foi gerada através da noção de arbitrariedade controlada – bem presente nas diversas e diferenciadas aberturas ao exterior.
‘I expected a relationship between the interior and the exterior that might go beyond the usual. Thus, counter-contextual movements by people and changes of light do arise quite unexpectedly here. Of course, unqualified Randomness is outside my realm of interest, since this theme has already been realized in today’s cities throughout Japan. I do not think of Randomness as being a negative concept – but rather a positive and active one. For any system if it has no capacity to accommodate random resources, then nothing new can be produced by that system.’, Shinohara, 1986.
A sua forma advém assim de um processo que concilia restrições do sítio e condições conceptuais; domesticidade e emoção; casa e cidade.
Sendo assim, Kazuo Shinohara direciona a sua obra através de princípios opostos e aparentemente irreconciliáveis, reflexo de uma realidade quotidiana incompleta e complexa. Shinohara está imensamente preocupado em restituir identidade às formas construídas de modo a salvar o ser humano da vida contemporânea.
Ana Ruepp