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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

O espaço urbano segundo Henri Lefebvre.

 

‘I really love this idea that a utopia should be categorized by the meaningful interactions between people, that a society is “perfect” not because of how well-off the inhabitants are, but because of the happiness they’ve found amongst one another.’, Henri Lefebvre

 

Henri Lefebvre afirma que o espaço urbano necessita de uma reforma capaz de harmonizar noções de tempo e de espaço e capaz de eliminar qualquer tipo de segregação. Na verdade nunca se assistiu a uma reforma urbana profunda, capaz de influenciar a sociedade, na sua ordem e na sua estrutura. Segundo Lefebvre, o urbanismo tende a ser fragmentário, de curto prazo e de consumo imediato - reduz-se a uma mistura de considerações ideológicas que resultam de um conjunto de medidas administrativas, tomadas entre o poder público e os interesses privados. 

 

Para Lefebvre, o funcionalismo urbano modernista tudo separa. No passado, a cidade apresentava uma vida urbana intensa porque era polifuncional - por exemplo, a praça servia de mercado, de espaço de encontro, de espaço de expressão e de discussão de ideias e até de espaço de decisão política. O modernismo trouxe a especialização e o isolamento dos espaços. O funcionalismo corresponde à divisão do trabalho parcelar cada vez mais específico no conjunto da sociedade - um espaço especializado, é um espaço perdido, pois é preenchido apenas por uma determinada atividade em certo momento. 

 

Como foi visto na semana passada, Lefebvre argumenta que são os gestos mais pequenos e simples do dia a dia que transportam todo o saber do ser humano e essa consciencialização deve ser o centro da sua existência, da sua vida. Como materializar então um espaço que acompanhe esta mudança e que elimine a tendência contemporânea de alienação e da falsa ideia de que a vida do dia a dia é aborrecida e que poderá destruir o ser humano? Mas é preciso não esquecer, que a vida do dia a dia que deve ser valorizada e a que Lefebvre se refere, não é a vida urbana desgastante que se encaixa entre a deslocação - o trabalho - o dormir. É uma vida que valoriza o ser humano como ser pensante (e até mesmo hesitante) que sonha, que se exprime, que está atento aos momentos de revelação, de claridade emocional, de presença do ser e que pode levar a um preenchimento e a uma totalidade. Sendo assim, ao mudar-se a vida e a sociedade, deve inevitavelmente revolucionar-se o espaço.

 

Por isso, para Lefebvre, o verdadeiro espaço urbano deve ser polifuncional, deve ser um compromisso físico social, cheio de significado, entre habitantes que vivem integrados numa rede interminável de relações, num determinado tempo e num determinado espaço.

 

Lefebvre, na verdade, pensa que os urbanistas e os arquitetos deveriam refletir mais sobre o que é um espaço habitável. Se na vida urbana se assiste a um desaparecimento do conceito espacial de habitar poderá paralisar-se o conhecimento e a imaginação do ser humano. Lefebvre deseja acreditar que o reencontro com o verdadeiro sentido do habitar poderá ser descoberto e resgatado através da poesia e da filosofia.

 

O espaço urbano deverá assim ser concreto e não absorto. Deverá ser um influenciador ativo nas relações sociais. Deverá ser uma centralidade que faz coincidir o espaço do pensamento, com o espaço vivido, com o espaço percecionado e com o espaço concebido. Deverá promover a heterogeneidade, a integração, a subjetividade, a criatividade e o divertimento. Lefebvre propõe acima de tudo criar um espaço urbano através da intuição humana mais próximo do sujeito e não através de uma mente altamente treinada, lógica e abstrata. 

 

Uma mudança social só poderá vingar se o espaço onde vivemos nos permitir a liberdade de apropriar e de manipular - Lefebvre afirma mesmo que poder sobre o espaço é poder sobre a vida! E talvez seja através da presença física e do corpo que experiencia, que poderá concretizar-se a reforma urbana que se anseia. O corpo do ser humano é vibração, é frequência, é energia e está em constante comunicação com as energias que o circundam - tudo se transforma e influencia mutuamente numa relação constante (todas as vidas e todas as suas formas se intersecionam perpetuamente, como num fluir interminável). O corpo é o espaço físico último capaz de juntar espaço e tempo. Quanto mais liberto o corpo, mais presença e expressão física terá - mais facilidade haverá para que se crie uma nova linguagem espacial apropriada e múltipla. Quanto mais participado, mais heterogéneo, mais complexo, mais polifuncional for o espaço urbano, onde se desenrola a vida, mais adequado será para que o ser humano seja total.

 

Ana Ruepp