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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

LXI - VIAGENS, VIAJANTES E O FATOR LÍNGUA (III)

 

Para além da perspetiva unitária do mundo via diversidade, as navegações portuguesas abriram uma brecha no conceito restrito de humanidade até então dominante na Europa. 

 

A Europa, incluindo a eclesial, ensinada nas escolas, não aceitava que o Homem fosse um ser existente para além do mundo europeu, da romanidade e, quando muito, das periferias africana e asiática. A antropologia europeia do século XV era restritiva, sendo tido como Homem o do mundo arábico-judeo-cristão, do mundo romano e, no máximo, o das regiões periféricas europeias. Pierre d´Ailly, o sábio, seguido no ensino, ensinava que, para além da periferia, o que se achava, em termos de seres vivos, lá para os extremos da terra, eram uns “seres selvagens”, “difícil de precisar se são homens ou bestas”. Para além dos mares pensava-se que houvesse seres que, mesmo parecendo homens, haviam de ser bestas. O episódio do Adamastor, em Os Lusíadas, representa a alegoria deste temor, a figura do “monstro humano”, ensinada por D´Ailly.

 

Era a tese oficial da Europa, que justificava caçar, dizimar, ocupar, deter, prender, sem problemas de consciência. Foi esta conceção que justificou as hecatombes na América, via extermínio dos Astecas, Maias, Incas, Apaches, entre outros.

 

Tese corroborada pela teoria aristotélica da inferioridade natural de algumas raças, adaptada à legalização da escravatura, tema enxertado na história do Antigo Testamento da maldição de servidão perpétua rogada por Noé à descendência de Canaã, filho de Cam, de quem se pensava que descendiam os negros (Génesis IX, 25). Outros afirmavam que descendiam de Caim “que havia sido amaldiçoado pelo próprio Deus”. Teólogos e leigos estavam convencidos que a escravatura negra era autorizada pela Bíblia, apesar de alguns, por razões humanitárias, censurarem o tratamento cruel infligido aos escravos. 

 

Portugal não foi exceção à regra, daí a existência de traficantes de escravos ou negreiros, veleiros e mercadores incluindo, não poucas vezes, a colaboração de indígenas com a mesma origem das próprias vítimas, embora desde o início das viagens   houvesse vozes portadoras de uma consciência humanista. Para narrar a chegada e a repartição dos escravos africanos a Lagos, no Algarve, o cronista régio Gomes Anes de Azurara entra na narração com um prévio clamor, tipo ato de penitência: “Eu te rogo (ó tu celestial Padre) que as minhas lágrimas nem sejam dano da minha consciência… E se as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto, conhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta humanal natureza, vendo assim diante dos meus olhos aquesta miserável campanha, lembrando-se de que são da geração dos filhos de Adão?” (Crónica da Guiné, cap. XXV). 

 

Álvaro Velho, roteirista da primeira viagem de Vasco da Gama, ao chegar à Guiné, tratou de vincar, para a Europa, que os seus habitantes eram homens com dignidade anotando, num traço de ternura e simpatia para com aqueles povos: “e têm muitos cães como os de Portugal, e assim mesmo ladram”. Um sinal para se compreender a identidade na diferença e que aquela gente era ser humano, tanto assim que tais homens (os da Guiné), são iguais aos daí, que até têm cães, que são iguais e ladram como os daí. No teto da Capela Sistina, Miguel Ângelo pintou uma alegoria: o português a elevar o negro africano. 

 

A maior dificuldade, porém, viveu-se na América, onde pessoas “mui avisadas” diziam que os índios “não eram próximos”, ou seja, não eram seres humanos, “e porfiam-no muito, nem têm para si que estes são homens como nós” (Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil). Os conquistadores queriam mão de obra índia, gratuita. Os frades queriam as almas dos índios, vendo neles homens. Os mercadores e ocupantes de terras queriam súbditos, vendo neles “bestas”, tendo apoio no reino de Castela onde predominava a tese oficial da não humanidade dos índios americanos. 

 

Não admira, assim, que o que causou estranheza à Europa foram os testemunhos a favor dos índios (entre os espanhóis, refiram-se Francisco Vitória, Bartolomé De Las Casas e Francisco Suarez). 

 

Significativa é a Carta do Achamento de Pêro Vaz de Caminha, onde o cronista régio do Brasil tem como principal missão informar que os índios brasileiros são homens, seres humanos: “segundo o que a mim e a todos pareceu esta gente, não lhes falece outra cousa para ser toda cristã”. E acrescenta: “parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos”. 

 

No filme “A Missão”, de Roland Joffé, a mensagem é que os índios são pessoas com dignidade humana, com alma, alfabetizados e cristianizados pelos jesuítas, que os ajudaram a resistir contra quem os tinha como coisas e os queria como mão de obra escrava.     

 

Os índios deixam de ser coisas, porque são homens, logo podem ser cristianizados, pelo que também não podiam ser obrigados a trabalhar, porque eram pessoas, indo-se então buscar os africanos como mão de obra escrava, justificando-se a escravatura africana.

 

14.08.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício