A profundidade última
Um dia Kavi quis confrontar o deus da Criação, queria interroga-lo sobre as razões do mundo. Aceitou então que um fantástico falcão conhecesse as razões desta sua vontade. Disse-lhe o quanto era importante para ele debater com esse deus o para quê das coisas e da própria Coisa. A ave, acedeu ser mensageira e breve lhe chegou com a aceitação do deus ao seu encontro, impondo, todavia, uma condição: usaria o deus uma máscara pois que assim o exigia a proximidade da verdade absoluta. Kavi, que bem sabia o quanto o rosto fala sempre a verdade oculta da alma, propôs de imediato usar também uma máscara para que o encontro-confronto fosse leal, e mais, pediu à ave majestosa das altitudes que ajuizasse o diálogo com o deus do Começo.
E ambos se encontraram usando máscaras de jade, não sem que antes, Kavi, na sua, escrevesse por dentro: “surpresa perante o mundo, estranheza ante a morte”. E de repente Kavi sentiu-se no topo do mundo, no cume da Coisa e bem percebeu o quanto jogava a vida sem que o deus jogasse a sua imortalidade.
E saiu-lhe a pergunta:
De onde provéns tu próprio? Não se sai assim do nada para um Mundo….
- Eu sou de aquém do Ser, e saí do Informe.
(…) Diz-me como foi o princípio do tempo?
Como falar-te com palavras, remédio vão dos homens (…) são números, não palavras (…) que formam o filtro e o fogo do Principio.
(…) O universo é brinquedo dos deuses? ou és tu mesmo brinquedo da Coisa já criada? quem joga? quem é jogado? e o que joga?
Tu, Kavi não te conformas com a condição humana que te coube.
E assim durante o dia Kavi foi interrogando o deus, interrogando até perceber que este, nada lhe diria que não estivesse no Livro, e, por essa razão, não sairia nunca mais sábio do confronto tão desejado. Perguntava-se mesmo se sentiria tédio o próprio deus? Tédio que o levaria também a sentir-se exausto? A sentir uma necessidade de casa já sem máscara? As múltiplas equações que saberia o deus do Começo, rodariam sempre pelos céus e pelas noites não lhe tirando o sono de tanto as conhecer e afinal? afinal até se distraíra o deus tal como um mortal e junto aos elementos da montanha, do céu, das nuvens, das rudes pedras, deixara perto de Kavi, esquecida, a sua máscara de deus. Dentro dela inscritos símbolos e números desconhecidos dos homens. E logo que encontrado este trilho de nova procura, uma súbita atrapalhação faria cair das mãos de Kavi a máscara do deus, escaqueirando-se esta em pedacitos minúsculos, antes mesmo que Kavi tivesse tido tempo de fixar os símbolos.
Regressou enfim, à Terra, Kavi intuindo a sua condição humana como uma fatal arma que o matava porventura até.
Julgo que Kavi se acolheu de novo no caos, acreditando que uma eventual hesitação do deus face à Criação fizera surgir a imperfeição do mundo. Julgo também que Kavi deixou de procurar o útero das ânforas com a ideia de por aí se decifrar, e, olhou a indiscrição, de novo, olhou-a por todos os ângulos, como forma viva de receber o inesperado: como sempre fizera. Julgo ainda que Kavi não se metamorfoseou. O seu cérebro ligava-o à vida e num relance olhou a ave majestosa que a tudo assistira, enquanto ela, com incrível precisão me pousava no ombro, me pousava na cumplicidade das ideias.
Para mim é assim que me resulta a leitura do brevíssimo e excelente conto de António Vieira (António Bracinha Vieira) intitulado “O Confronto” e inserido no seu livro “Dissonâncias”, livro este que leio e releio desde a sua edição em 1999 pela &etc.
Teresa Bracinha Vieira
Janeiro 2016