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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 26 a 1 de agosto de 2021

“A Velha Casa” de José Régio (1945-1966) é a obra de ficção mais importante do seu autor, que considera como obra de uma vida. Não se trata, porém, de uma autobiografia, nem Lelito é o seu herói…

 

SÍNTESE CULTURAL COMPLEXA
Se há herói neste romance de seis volumes é a própria casa. Mas “trata-se de uma meditação sobre a vida humana; sobre a condição humana. Apesar disso um romance: pois a condição humana não é aí meditada senão por meio de uma localização no espaço, duma situação no tempo, e através de personagens que vão vivendo o seu destino, tecendo e emaranhando a sua teia”…José Régio (1901-1969) merece uma atenção especial enquanto referência da cultura portuguesa do século XX. Cinco elementos poderemos salientar, que o tempo se encarregará de tornar mais evidentes. E a título de exemplo, podemos referir a apreciação que Régio fez de Camilo Castelo Branco e do lugar que ocupava na nossa literatura, que é de algum modo uma apreciação que poderemos considerar paralela relativamente ao seu próprio percurso, com as naturais distâncias. A história portuguesa e a síntese complexa que comporta demonstra bem como Régio segue as passadas camilianas, compreendendo a coexistência permanente entre o que puxa para a permanência e o que reclama as transformações. De facto, José Régio (a) compreendeu que a cultura portuguesa é múltipla e heterogénea; (b) ao salientar o papel de “Orpheu” e do primeiro modernismo, bem como a necessidade de o relembrar e continuar com a “Presença”, pôs em diálogo a modernidade e as raízes culturais permanentes; (c) o exemplo de Camilo é, assim, ilustrativo do modo como este via a nossa identidade, incompreensível sem a tensão entre uma arreigada tradição provinciana e castiça e o apelo do cosmopolitismo; (d) esta mesma tensão, na qual o eu se afirma, na relação com os outros (como em “A Velha Casa”, com Lelito), está bem patente na obra de Régio, como ponto de encontro entre diversas contradições, ora entre Deus e o Diabo, ora na distância entre a cidade e a província; e (e) Portugal viverá, assim, sempre entre a lembrança das raízes antigas e o apelo à metamorfose e à mudança, sendo a aparente homogeneidade identitária feita de um complexo melting-pot que permite acolher as diferenças e completá-las, mais do que proceder à sua mera adaptação.


UMA MODERNIDADE ABERTA
Como afirma Eugénio Lisboa, a obra de Régio “insere-se (…) numa conceção de moderno, não fanática, e aceita (…) uma ideia de originalidade irremediavelmente chumbada à noção de sinceridade”. O respeito pela singularidade obriga a pormo-nos no lugar do outro, para melhor o compreender a ele, e a nós também. E Jacinto do Prado Coelho dirá: “José Régio é um poeta moderno autêntico – pela desordem psicológica, pelo hipercriticismo dos próprios instintos, pela originalidade rebuscada, pela sobriedade vincante dos conceitos atirados à cara do leitor, pelo encerramento num castelo inacessível à maneira de Julião Sorel, de Stendhal, pelo arrojo e desencontro das formas”. Lembremos, de facto, a relação histórica de Régio com Camilo, sem tentação de anacronismo, ambos têm um diálogo natural, no qual prevalece a importância da sociedade, incapaz de se fechar numa das lógicas possíveis, a tradicional ou a moderna. “Em demasia foi encomiado Camilo por características estimáveis, sim, mas não de suprema importância na criação de um artista: o seu purismo, por exemplo, ou a extraordinária opulência do vocabulário, adquirido no trato com o povo e os clássicos. Outros dos seus admiradores – que, bem portugueses, reconheciam instintos e sentimentos seus próprios genialmente expressos nos livros do grande escritor – nem souberam descer ao fundo de si mesmos nem da obra dele. Balbuciaram razões de ordem acessória, eles que as tinham de boa categoria”. Régio chama, assim, a atenção mais para a obra de Camilo e menos para a sua imagem ou para a sua biografia, não confundível com as qualidades do escritor e do cultor da língua. Daí a citação de Luís Cardim, na “Seara Nova”, em que o crítico, ao escrever sobre a biografia de Oskar Wilde, de Hesketh Pearson, afirma que a melhor maneira de falar de um autor é “muito simplesmente, a de lermos as suas obras, e deixarmos em paz a vida, e até as idiossincrasias do autor que nas suas produções não estejam refletidas”.


OBRA DE ARTE, OBRA DE PENSAMENTO
Para Régio, a obra de arte, como a obra de pensamento, tem um valor em si – é uma “realidade concreta e objetiva”, cujo estudo desprevenido deve prevalecer sobre o da biografia, fisiologia, psicologia. A riqueza camiliana vem da simbiose entre a biografia  do autor e a criação literária que a transcende. E assim, Régio salienta que o escritor aparentemente popular é, no fim de contas, menos acessível na intimidade da sua verdadeira grandeza do que, por exemplo, um Eça. Longe de um velho escritor subjetivista ou sentimental, “incorrigível narrador de histórias de amores contrariados, pais tirânicos, meninas metidas em conventos e galãs fatais, com a morte ao fundo”, Camilo é um profundo conhecedor dos clássicos e da melhor criação literária, um conhecedor da vida do povo, um estudioso atento da realidade histórica e um fino analista do género humano. Contudo, vivendo da escrita, antecipou o que o tempo veio a tornar comum – a necessidade de encontrar modos de atrair e de fidelizar os seus leitores. Enganam-se, porém, quantos se limitam a lembrar as obras mais conhecidas, esquecidos da preocupação do escritor em ir além da receita romântica, designadamente no romance histórico ou na análise da sociedade. José Régio compreende esta lição, numa circunstância totalmente diferente. Importaria agora pôr em diálogo a melhor literatura e a reflexão individual. A “Literatura Viva” significa exatamente a compreensão da heterogeneidade e das diferenças. Como em “A Velha Casa”, metáfora da vida e da realidade: “O que lhe mostrava a experiência é que ninguém, senão ele, sabia na casa como ela tinha personalidade própria; como nessa personalidade compartilhavam todos os aposentos, tendo, embora, cada um o seu aspeto funcional; e como não só a personalidade da casa era insubmissa às coisas e pessoas que a povoavam, mas antes acabava por pesar sobre os seus gestos, palavras, atitudes, sentimentos”…

Guilherme d’Oliveira Martins 
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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