A VIDA DOS LIVROS
De 13 a 19 de março de 2023
Jürgen Habermas acaba de publicar uma importante reflexão sobre a Guerra e a Paz na Europa.
REFLEXÃO SÉRIA E NECESSÁRIA
Jürgen Habermas procede a uma reflexão séria e necessária sobre o perigoso momento que vivemos. A guerra da Ucrânia, às portas da Europa, obriga à consideração de diversos dilemas de difícil resposta, com milhares de vidas humanas sacrificadas todos os dias, que continuam a aumentar com o decurso do tempo. Importa, assim, agir, até para que não se cometam erros irreversíveis, que imediatamente podem resultar da natural preocupação de chegar a uma solução urgente que possa calar as armas, mas que poderão conduzir a prazo ao recrudescer mais intenso e trágico de um conflito de proporções e consequências imprevisíveis. Daí a necessidade de haver cabeça fria e nervos de aço, a fim de que os objetivos de curto prazo sejam pensados à luz de soluções de longo termo, que preparem o pós-guerra, que salvaguardem o respeito dos princípios da Carta das Nações Unidas e que permitam um equilíbrio durável no centro e leste da Europa. De facto, os acontecimentos de 1989 e a queda do muro de Berlim não permitiram a criação de um “modus vivendi” duradouro que integrasse a Federação Russa na balança da Europa e do Mundo, numa lógica de multipolaridade e com respeito e salvaguarda de uma cultura de paz. E essa é a urgência que agora se exige. O texto de Habermas, publicado no “Süddeutsche Zeitung” (15.2), procede à consideração da necessidade de não permitir que haja no terreno de guerra factos consumados, que abram caminho à violação de direitos fundamentais e à condenação irreversível de muitas vidas humanas inocentes. Partimos do reconhecimento «da importância do destino doloroso duma população que depois de vários séculos de dominação estrangeira – polaca, russa, mas também austríaca – apenas adquiriu a sua independência e a sua soberania depois da queda a União Soviética. Entre todas as nações europeias que registam um atraso de reconhecimento, a Ucrânia é agora aquela onde tal se manifesta mais claramente. Estamos, sem dúvida, ainda perante uma nação em concretização». Contudo os partidários do apoio à Ucrânia vêem-se divididos quanto ao momento e às condições considerados oportunos para as negociações de paz. Uma parte considera prioritária a exigência do governo ucraniano que reclama um apoio militar sem limites para vencer a Rússia e restaurar a integridade territorial do país, incluindo a Crimeia, enquanto a outra parte deseja forçar as tentativas para instaurar um cessar-fogo, a fim de se iniciarem negociações que possam evitar uma possível derrota, ao menos com o restabelecimento da situação anterior a 23 de fevereiro de 2022. Na análise de Habermas há referências marcantes: como afirmou o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Lituânia Gabrielius Landsbergis, “torna-se necessário ultrapassar o medo de querer vencer a Rússia”, devendo acrescentar-se que tal não pode ser visto de modo puramente voluntarista. Apesar das hesitações, a posição do chanceler alemão Olaf Scholz de apoio à Ucrânia está condicionada pela distinção entre o apoio a uma causa e a entrada efetiva na guerra. Urge, assim, considerar que a posição do governo alemão deve ser acompanhada por uma reflexão pública sobre o difícil caminho que deve conduzir a negociações. E Habermas junta-se a esta atitude, porque considera ser justo dizer que “a Ucrânia não deve perder a guerra”. Daí que a situação obrigue a negociações de carácter preventivo, para impedir que uma guerra longa faça mais mortos e destruições e para que não cheguemos no fim das contas a uma escolha dramática entre um envolvimento direto na guerra ou o abandono da Ucrânia à sua sorte. Urge, porém, impedir o desenvolvimento de um conflito, em termos semelhantes ao que ocorreu na primeira guerra mundial, com a agravante de agora termos potências nucleares. Há, no entanto, dois aspetos que obrigam a uma complexa reflexão – de facto, quando se fala em “não permitir que a Ucrânia perca a guerra” tal não significa “derrotar a Federação Russa”. Importa, sim, falar de um dever político de apoiar o direito da Ucrânia no combate corajoso contra a agressão lançada, de modo criminoso, pela Rússia em violação do direito internacional, contra a existência e a independência de um Estado soberano reconhecido pelas Nações Unidas.
DE NOVO COMO EM VERDUN
A que se assiste neste momento em Bakhmout no norte do Donbass? A um combate bárbaro com perdas muito importantes dos dois lados, à semelhança do que ocorreu na primeira guerra mundial em Verdun (de fevereiro a dezembro de 1916), na mais longa e mortífera batalha na guerra das trincheiras. Não podemos assistir indiferentes. “Nas guerras - diz Habermas – a vontade de vencer o adversário é acompanhada pelo desejo de terminar com a morte e a destruição. Mas na medida em que as devastações aumentam pelo poder das armas, a importância relativa das tais prioridades inverte-se”. É essa a tragédia a que assistimos. Não podemos esquecer, porém, que no fim da segunda guerra mundial a violência teve ser pacificada por meios políticos e jurídicos e por novas formas de regulação de conflitos. A Carta das Nações Unidas de 1945 e o Tribunal Internacional de Justiça da Haia revolucionaram o direito internacional, prevendo a regulação de conflitos internacionais por meios pacíficos. Ora, é à luz de tais princípios que tem de se afirmar que “a Ucrânia não deve perder a guerra”. De facto, esta guerra desencadeada por Vladimir Putin significa um recuo civilizacional, que suscita um dilema, já que regressamos à velha perspetiva amigo-inimigo que as Nações Unidas procuraram superar, mas a verdade é que não há sinais de que Putin deseje optar pela lógica da razão. A lógica multilateral tem de ser privilegiada. “E, de um modo geral, esta guerra chama a atenção para a necessidade urgente de uma regulamentação em toda a região da Europa central e oriental que ultrapasse os objetos do litígio dos atuais beligerantes”. Desde os acordos de desarmamento às condições económicas globais, importa encarar com clareza os diferentes aspetos em causa. E se os Estados Unidos estão disponíveis para participar em negociações globais, do mesmo modo que a posição da República Popular da China inclina-se para a limitação do recurso ao poder nuclear, importa criar condições para uma negociação séria que ponha termo à guerra. Referindo-se, deste modo, a uma rede de interesses bastante alargada, apesar das exigências imediatas parecerem diametralmente opostas, deve-se trabalhar para um compromisso que respeite princípios essenciais e que permita salvar a face das partes. O caminho parece ser muito estreito, mas a reflexão de Habermas merece especial atenção. Uma cultura humanista e uma civilização baseada na justiça têm de ser chamadas à ordem dia, até por uma questão de sobrevivência!
Guilherme d’Oliveira Martins
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