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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 20 a 26 de março de 2023


Eduardo Lourenço dirigiu a revista “Finisterra” entre o Inverno de 1989 e o ano em que nos deixou em 2020, recordamos essa experiência.


UM LUGAR DE ENCONTRO
«Finisterra: um sítio onde a História nos colocou como europeus do Sul, prometidos a um futuro nem de nós mesmos suspeitado, lugar de margem, de isolamento, de sonho e de vertigem. Apesar das aparências, num mundo, onde tudo é já centro e circunferência, este lugar que é ainda o nosso, que nos fala antes que nós o falemos como portugueses, é um lugar propício à consideração nua da nossa situação histórica, nacional, europeia, nos finais de um século que conheceu mais metamorfoses que aqueles que nos precederam: Em todo o ‘fim’ está inscrito o aspeto de um ‘começo’. Ou de um eterno recomeço». Assim se exprimiu Eduardo Lourenço, em novembro de 1988, nas vésperas de um ano de mil acontecimentos e de mudanças radicais, no início da revista “Finisterra”, que iria dirigir até à morte, com uma designação própria, apesar da coexistência de uma outra revista de âmbito científico e geográfico, animada por Orlando Ribeiro e seus discípulos. O ensaísta insistiu, porém, especialmente nesse título, uma vez que quis desde o início deixar claro que havia uma simbologia a preservar, que ultrapassava em muito uma lógica meramente topográfica. “Finisterra” significaria, assim, atitude e desafio, compromisso e programa. Tinha a ver com uma atitude, uma vez que chegados onde a terra acaba e o mar começa, haveria que considerar a construção do futuro como obra de vontade e de compreensão da sociedade. Do mesmo modo, significaria considerar um desafio, como exigência de organização social e política, centrada numa obra de cidadania. Relativamente à ideia de compromisso, pressuporia a ligação entre o pensamento e a ação, de maneira que o debate e a reflexão pudessem constituir-se em pedra angular de uma cidadania ativa. E, no tocante ao programa, a referência a “Finisterra”, revelar-se-ia necessária e profética, em nome do pensamento democrático na sociedade portuguesa, fundamento de uma instituição atenta e ativa.


UMA OPÇÃO DE LIBERDADE
Desde 1989 até ao presente, a ideia de um novo “fim da história” deu lugar no mundo à verificação da fragilidade do Estado de direito e a uma preocupante erosão dos direitos fundamentais. Nestes termos, para Eduardo Lourenço, “Finisterra propunha-se ser uma “tribuna de livre discussão de todos os discursos culturais em circulação”. Contudo, a realidade evoluiu de modo surpreendente, na qual a “apoteose do projeto liberal do Ocidente” cedeu lugar a uma estranha ambiguidade em que o elemento liberal se tornou consumista e mercantil, perdendo a prevalência da autonomia individual, dos direitos subjetivos e da coesão social. Quando Carlo Rosselli ou Norberto Bobbio falaram da importância do elemento liberal fizeram-no com a expressão “socialismo liberal”, que associava à justiça distributiva e a igualdade, às tradições da liberdade individual das revoluções inglesa, americana e francesa. Para um pensador como Eduardo Lourenço, contudo, a tradição liberal de Garrett e Herculano, ligava-se naturalmente à dimensão social e crítica da Geração de 1870. E assim a revista “Finisterra” tornou-se um ponto de encontro e um apelo de partida, capaz de pôr o socialismo democrático na ordem do dia. Estávamos longe de suspeitar que o conceito de “democracia iliberal” invadisse o espaço público, num supremo paradoxo, que põe em causa a capacidade emancipadora do primado da lei e da legitimidade democrática. “Finisterra: mais do que sítio particular onde enquanto portugueses devemos enfrentar os desafios de uma História sem sujeito, representa para os homens deste fim de século o espaço propício de uma reflexão de um estilo novo, como foi outrora o do Renascimento. A nossa época não é unicamente, nem essencialmente, a da robótica e da informática, mas a do fim da Terra”. Senão vejamos a chamada quarta revolução industrial – na qual encontramos desde a microinformática e das novas tecnologias de informação e comunicação até aos desafios do aquecimento global, da destruição do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável e da procura de energias limpas, passando pela inteligência artificial e pelos avanços no domínio da medicina e da saúde. Mas deparamo-nos ainda com a evolução demográfica, com o envelhecimento da população, com a destruição da biodiversidade – com as desigualdades, com o protecionismo, com a fragmentação, com o desperdício…


«O FIM DA TERRA»
No fundo, “o fim da terra” abrange duas metáforas – a da História, ao chegarmos a uma fronteira do tempo, e a da Cultura, ao abrirmos horizontes de emancipação, de desenvolvimento e de solidariedade. E o ensaísta demonstra a força e a originalidade da designação nestes dois domínios. “Tornou-se um lugar-comum descrever o comportamento das novas gerações como ofuscado pela fosforescência mais ou menos tumultuosa do presente concebido como único tempo de aderência a realidade, jovem humanidade sem memória nem pulsão futurante”. A indiferença e o imediatismo geraram, porém, a prevalência do curto prazo e a desatenção à complexidade. “Um longo rosário de deceções e massacres das utopias mais nobres, de sobra” justificaria a recusa da herança e da memória cultural e histórica. Daí importarem “menos as tradições, mesmo as mais veneráveis, que os atos que lhe dão vida e conteúdo”. Eis, como “Finisterra” correspondia à figuração de objetivos históricos pertinentes. Sem poder considerar as profundas alterações que ocorreriam no ano de 1989, com a queda do muro de Berlim, o fim da guerra fria, o início de um tempo de polaridades difusas e de regresso da fragmentação tribal, Eduardo Lourenço considerava profeticamente um tempo de contradições. E falava em sermos herdeiros de um outro tempo, precisando de interlocutores dispostos “a discutir, a renovar e transfigurar aquilo que por mais digno de ser continuado já não tem os olhos imersos no novo mundo dos homens que abandonaram a Terra para uma viagem sem fim assinalável”. Como o pensador disse em 2000: “uma utopia europeia assumida só é digna de ser vivida como vitória da Europa sobre a Europa, da ficção de si mesma que, consciente ou inconscientemente, tem condicionado o seu destino, contra a sua realidade. Em suma, do triunfo da sua sublime não-identidade sobre os fantasmas da sua alucinada identidade” (A Europa Desencantada, 2001, p. 240). Esta questão é crucial. E, se bem virmos, o ensaísta põe a tónica na projeção de Portugal para fora de si mesmo, segundo uma identidade aberta. E recordamos como as Heterodoxias constituíram a demarcação da autonomia da liberdade individual, a exigência de solidariedade e da justiça e a abertura cosmopolita (“Europa ou o diálogo que nos falta”) – como “convicção de que o real não é apenas a cabeça (de Migdar) mordendo sem hesitações nem a cauda devorada sem resistência, mas o inteiro movimento de morder e ser mordido, a paixão circular da vida por si mesma. O movimento da cabeça devorando com certeza de existir um só caminho, pode receber o nome de ortodoxia, assim como a convicção inversa de não existir caminho algum pode designar-se por Niilismo”. Mas a heterodoxia não seria o contrário da ortodoxia nem do niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos…     

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença