A VIDA DOS LIVROS
De 8 a 14 de maio de 2023
No dia em que Chico Buarque de Holanda recebeu o Prémio Camões, não apenas recordámos todos quantos ao longo dos anos, desde Miguel Torga, receberam esse galardão, mas sobretudo compreendemos, porventura melhor, a riqueza de uma língua multifacetada e enriquecida pelas várias culturas que a constituem e lhe dão vida.
AGRADECIMENTO DE CHICO BUARQUE
Nas palavras de agradecimento, o artista, poeta e homem de cultura levou-nos à memória de seu pai, um dos grandes nomes das culturas de língua portuguesa. A obra de Sérgio Buarque de Holanda é de leitura indispensável para quem queira entender a pluralidade que forma o património cultural que é a língua que nos une. “Raízes do Brasil” acompanha-me há muito e a sua leitura obriga sempre a entender o que está para além do que parece dito. Essa é a consequência de estarmos perante uma inteligência arguta que procurou compreender o caleidoscópio que não pode reduzir-se ao singular de uma lusofonia, já que sem as diferenças e a diversidade não podemos perceber esta língua de várias culturas. Antonio Candido salientou, aliás, que a obra de Sérgio Buarque era constituída pela “admirável metodologia dos contrários”. “Trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e percurso afetivo – são pares que o autor destaca no modo-de-ser ou na estrutura social e política, para analisar e compreender o brasil e os brasileiros”. O premiado de agora lembra que muitas vezes interrompeu os estudos do pai “para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária”. E considerou normal que o filho se inclinasse para a música popular, pois “gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua”. E, ao lembrar a sua genealogia, vemos em Chico Buarque a ilustração do extraordinário Brasil brasileiro: “O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica”. E lembrou Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado do grande João Cabral de Melo Neto, o primeiro brasileiro a receber o Prémio Camões, quando foi encenado o poema Morte e Vida Severina, com músicas de Chico, então estudante de arquitetura. E, afetuosamente, lembrou agora, para quem o recebe como referência da cultura da língua comum, que “por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim”.
LÍNGUA QUE UNE E SEPARA
No dia em que o Prémio Camões foi entregue, tive o gosto de almoçar com o meu fraternal amigo e confrade Marco Lucchesi, na companhia de Rui Vieira Nery, e reli em “Cultura da Paz” (Oficina Raquel, 2020) a melhor definição sobre a partilha do idioma: “Língua que une e separa, integra e desintegra, partilhada por avaros e pródigos. Língua indomável, nas dobras e rizomas da interlíngua, no espaço entre as palavras, vogais e consoantes. Somente aqui a língua portuguesa assume toda a sua vocação especular, como na hóstia do Padre Manuel Bernardes. Brilha no fragmento o sinal de uma totalidade interrompida, sem exclusão do sujeito, de seu irredutível espaço, de sua corrente identidade”. Que melhor definição poderíamos encontrar. E fica bem clara a força de uma língua sem barreiras, capaz de receber novos e inesperados contributos, com a impureza da criatividade. E lembrámos Eduardo Lourenço – “é no espaço cultural, não só empírico, mas intrinsecamente plural que os novos imaginários definem que um qualquer sonho de comunidade e proximidade se cumprirá ou não. (…) Esperemos que nos encontremos em qualquer coisa como a antiga casa miticamente comum por ser de todos e de ninguém”. De facto, este é o ponto em que devemos encontrar-nos, com a possibilidade de compreender a distância e a proximidade, como fica bem patente na genealogia lembrada de Chico Buarque. Todos somos essa procura complexa do muito que define essa casa miticamente comum, labirinto ético e estético de tempos em suspenso.
Se dedico esta prosa a Alberto da Costa e Silva, o amigo de sempre, inesquecível visionário de uma compreensão profética, faço-o porque tem entendido melhor que ninguém o Atlântico como presença influente no continente africano, designadamente no complexo movimento triangular que une as nossas diferenças. A pluralidade da língua portuguesa compreende-se a partir da reflexão sobre “A enxada e a lança” até “A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700” ou a “Um rio chamado Atlântico” – sobre a África que moldou o Brasil e o Brasil que ficou na África”. Assim, invocando a língua e as lusofonias, basta estudarmos um Atlas prospetivo sobre o que será o Atlântico Sul dentro de meio século para entendermos o surgimento de um “rio” de incomensuráveis partilhas, nova casa miticamente comum, desde a Macaronésia ao planalto do Huambo e ao grande e múltiplo território brasílico. Não por acaso, António Correia e Silva, no estudo do caso de Cabo Verde, como ponto de encontro dos polos fundamentais do Atlântico Sul, tem salientado a importância da “crioulidade” que admite variantes dialetais insulares, enquanto língua e rica cultura popular, fundamentais para a coesão social e para a afirmação da unidade nacional. O crioulo é uma criação multissecular, com uma base na língua portuguesa e ligação a variantes culturais africanas. E quando lemos “Chiquinho” de Baltazar Lopes, mas também a criação poética e literária do movimento “Claridade”, podemos perceber como este contributo específico se projeta e enriquece na diversidade de uma língua que se afirma com síntese de várias culturas.
Guilherme d’Oliveira Martins
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