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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 26 de junho a 2 de julho de 2023


“A Mãe e o Crocodilo” de José Gardeazabal (Companhia das Letras, 2023) é uma metáfora sobre o tempo que atravessamos e vivemos, pleno de dúvidas e perplexidades.


A METÁFORA DA RECICLAGEM
E se encontrássemos Vladimir, que trabalha numa fábrica de reciclagem e partlha a sua vida com um estranho animal doméstico, que é nem mais nem menos que um crocodilo? Eis o que o autor nos propõe, ainda por cima em ligação como uma misteriosa história de ocultação ou de esquecimento de uma mãe, que se recusa a revelar o nome de um pai desaparecido, mas ominipresente. O cenário é a Europa central e oriental, hoje lugar de todos os perigos e dúvidas. A geografia é muitifacetada, como não seria difícil de imaginar – ou seja, um lugar ex-fascista, ex-comunista, ex-leste, ex-industrial, ex-tudo… Foi esta a Europa que herdámos. O inesperado crocodilo chama-se Benito e talvez seja a mais previsível das personagens do romance. Benito é um símbolo e uma sombra permanente. Sim, o nome não parece ser um acaso, vem de uma História perturbadora. A sombra manifesta-se de maneiras diferentes. O mesmo se diga de Vladimir, que pode lembrar Vladimir Ilitch Ulianov, cujo nome servia para iludir os censores anticomunistas, para que não se falasse expressamente de Lenine. Mas este Vladimir pode lembrar ainda uma outra personagem, essa viva, que hoje anda nas bocas do mundo. Este Vladimir observa os hábitos do crocodilo, mas ainda sonha com uma mulher que deseja amar.  A Alemanha é o horizonte que o motiva, por isso pergunta insistentemente “Warum?”. Cada vez mais próximo de Berlim…


UMA PERGUNTA INSISTENTE
De facto, ele compreende mal o que se passa em redor, desejando superar essa dúvida. Contudo, subitamente, a parte da Europa em que Vladimir se encontra é atravessada por um grupo de refugiados que perturba a rotina moral da reciclagem, e Noor torna-se a paixão de Vladimir. As língua diversas faladas são aprendidas a caminhar pela Europa. “Aprendi línguas estrangeiras da melhor maneira, a fazer fila, à entrada das fronteiras”. Sobre a fábrica de reciclagem, temos de falar do seu proprietário Lazarus e do seu discurso e estratégia. Num tempo de ameaças ambientais, a reciclagem parece estar na ordem do dia. “A reciclagem é um trabalho de mãos, quem diria? Há turnos noturnos, a salvação do mundo não dorme, os dias são iguais às noites, não foram separados, não é o princípio do mundo, as condições de trabalho são terríveis e não as vejo a melhorar. A reciclagem não é sobre o presente, a reciclagem trata do omnipresente, os horários são semanais, os dias iguais, das nove às cinco e transportes públicos, turnos noturnos e os dias assim iguais até ao fim do capitalismo”. E quando estão cansados, vêem um video de uma cidade japonesa que só existe em imaginação. Assim, tudo fica mais calmo, com novas expectativas. Quanto ao nome do patrão da reciclagem, parece intencional, soa a pseudónimo de homem morto. E a reciclagem, industria supostamente avançada, corresponde a algo que vai contratar imigrantes pobres, operário contra operário, pobre contra pobre, pobres contra os mais pobres ainda. E o patrão da reciclagem fala de salários emocionais. “Um salário emocional é uma coisa nova, uma coisa que não custa dinheiro. As pessoas ficam tristes, ficam furiosas, as emoções ao rubro”. Mas há um ponto em que o mundo se sustém. “A reciclagem ardeu e o vermelho desse fogo fez o tempo avançaer, não sabemos para onde. Esse tempo não volta. A fábrica não volta, perdemos o nosso lugar pequenino no grande concerto da salvação do mundo. Música lenta, em fundo”.


A CHEGADA DE NOOR
Eis o mundo do absurdo. Surge uma refugiada ou imigrante, chamada Noor. Acende-se o amor. Mas a situação da reciclagem é problemática. E Noor organiza as mulheres como os pobres e luta por um contrato coletivo, de que Lazarus não gosta. E acusa Noor de organizar sindicato selvagem…Este capitalismo verde tem muito que se lhe diga. O patrão não paga, fala de poesia e de terapia pela alma dos ricos.O mundo torna-se lixo… E a mágica reciclagem arde e faz o tempo avançar. “O desaparecimento da reciclagem faz-nos pensar no futuro Durante alguns dias, somos uma aldeia suiça. Estamos reunidos numa praça, fazemos um referendo de mãos nos bolsos”. E tudo se dilui. E a reciclagem deslocaliza-se, mas nem todos se deslocalizam – e a melhor entreajuda torna-se a fuga. E resta apenas a pergunta: “Warum?”. Porquê? E o mundo continua por revelar.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença