A VIDA DOS LIVROS
De 14 a 20 de agosto de 2023
Recordamos o testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023).
UMA ESTRANHA ESCOLHA
Conta-se que um dia, em 1995, a Cinemateca pediu a Agustina uma sugestão de filme para apresentar na iniciativa “Terças-Feiras Clássicas”. Então sugeriu o filme As You Like de Paul Czinner, de 1936, raríssimo, e que nunca fora exibido naquelas sessões cinéfilas. Era uma opção misteriosa, que causou surpresa entre gente muito habituada a este género de escolhas. Moveram-se céus e terra, e lá apareceu a cópia. Quando houve oportunidade, perguntaram qual o motivo de tão inusitada escolha. E a resposta veio para espanto de todos. Não se tratava de qualquer memória de algo que a escritora tivesse visto alguma vez, nem se tratava de lembrar a primeira interpretação de Sir Laurence Olivier de Shakespeare. Não, Agustina nunca tinha visto o filme e tinha curiosidade em vê-lo pela primeira vez. Interessava-lhe ver o desempenho de Elisabeth Bergner, de quem ouvira falar, quando teria oito ou nove anos, como uma grande atriz, superior à Garbo, e desejava confirmar com os próprios olhos e ouvidos o que ouvira aos amigos de seu Pai, no tempo em que este a levava às matinées do Passos Manuel no Porto. Era assim Agustina, sempre desarmante na enorme capacidade de surpreender.
O testemunho de Rita Azevedo Gomes no texto que escreveu na revista “Electra” (Ausência Imperfeita – Agustina - nº 20, Primavera de 2023), confirma que Agustina Bessa-Luís é um caso especial. “Lembro a Helena e o Alberto Vaz da Silva, o Manuel Lucena e o João Bénard da Costa, que não parava de falar do prodígio da inadjetivável escrita da autora d’A Sibila”. Jorge Alves da Silva, João Botelho e Manuela Viegas juntavam-se a tal grupo de admiradores. “Descíamos juntos a Rua da Misericórdia, ao Chiado, pelo passeio da Guimarães na expectativa de ver exposto na vitrine o último romance de Bessa-Luís”. E havia histórias contadas por Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, do tempo em que visitavam a escritora na sua casa no Porto. E temos de lembrar, na continuação deste preito de homenagem, o outro caso de uma relação contrastada que tem a ver com Manoel de Oliveira. Tratou-se de Francisca. Sem entrarmos nas clássicas discussões sobre as soluções de títulos e de enredos, Agustina teria gostado mais que tivesse sido assumido o título do romance original, Fanny Owen, mas Oliveira preferiu a proximidade, até para que o ambiente romântico ficasse mais evidente. Para o cineasta haveria que garantir a fidelidade aos textos e à palavra, mas igualmente o recurso à magia da representação. Mais do que na representação do teatro, teríamos a fixação das imagens em movimento, suscetíveis de ser repetidas, como se o tempo pudesse ser revisto e a reflexão tivesse uma nova oportunidade. A cena recordada é a dos momentos finais da protagonista no suspiro derradeiro: “Não há por aí um homem que ame?”. Paulo Rocha estava investido no papel de médico e Agustina, fora do plano de cena, assistia ao desenrolar da cena. Rita Azevedo Gomes ocupava-se em ver o desenrolar da filmagem – “a voz ondulada do Paulo Rocha; o riso menineiro e sagaz de Agustina”. E depois importaria que o cerimonial do passamento fosse adequado e sentido: “Os pés nus têm de ficar descobertos”.
LEMBRAR “FRANCISCA”
Teresa Menezes, no papel de Francisca, deveria aparecer como alguém que assumia em pleno o drama representado. E não poderia esquecer a ligação entre as palavras escritas e a vida vivida e mortal. “A alma não é uma cadeira que se oferece a uma visita. A alma é um vício”. De facto, falar de Agustina é assumir um paradoxo, uma aposta, a capacidade de ver o avesso e o direito das coisas. Por isso mesmo, ela se lembrou de Elisabeth Bergner em As You Like, preferindo falar não de algo que pudesse conhecer realmente, mas de uma impressão original, apreendida sem preconceitos. Por certo que teria ouvido falar das lendas de Bergner (até nos misteriosos ecos no celebrado All About Eve de J. Mankiewicz), mas o que lhe interessava verdadeiramente era cultivar a surpresa em diferentes registos – para si própria e para os seus interlocutores. Frederico Lourenço, não por acaso, fala de «um percurso, afinal de contas, demasiado desconcertante na sua mescla de arrojo e de convenção para poder almejar esse estatuto incolor, outorgado aos pouquíssimos escritores que têm o azar de ser aclamados por todos os críticos, que é o de serem ‘pardamente consensuais’».
Rita Azevedo Gomes lembra o seu filme A Portuguesa, baseado num texto de Robert Musil. Sobre esse conto, Agustina disse em 1966: “como quem atinge um segredo através do anódino, ele aflorou como ninguém essa sombra melodiosa e fria”. Mas que fique esclarecido: não é infiel a portuguesa; contudo é mais do que isso. “A fidelidade da portuguesa é o que aniquila o marido; é uma fidelidade que não tem nada a ver com a mesura da virtude nem com o reflexo do tédio. “É um estado de graça, algo blasfemo talvez e não se sabe desafiador”. Para quem lê o conto e vê o filme encontra imbrincados dois caminhos paradoxais – a virtude e a sua recusa. Musil terá ido buscar esta portuguesa ruiva ao extraordinário quadro póstumo de Ticiano, feito por encomenda de Carlos V, da muito bela Imperatriz Isabel de Portugal, sentada “como quem espera a confirmação de uma notícia importante, sem ansiedade e também sem abandono”. E, com base nesse conto, emerge um diálogo misterioso escrito por Agustina, a pedido da realizadora. Musil dá-nos o enigma e a romancista encarrega-se de o completar com outra interrogação perturbadora: “Dizem que tenho amor pelos gatos que têm um pacto com o demónio. Os gatos têm uma alma de filósofo. É só isso. O diabo não é filósofo porque inveja Deus e a criação do mundo”. Tudo, afinal, se liga. Agustina era portentosa na definição emblemática dos temas. O lançamento das narrativas envolvia um surpreendente jogo de ideias e de palavras. Por isso, o testemunho de Rita Azevedo Gomes permite compreender encontros e desencontros na representação das palavras. É o princípio da incerteza que funciona, há o ganhar e o perder e os dois eram fascinantes para Agustina. “Portugal é tímido e ama a sua rotina: preza uma felicidade que tem de pagar pelo preço das suas submissões” (As Fúrias). Tinha, ao invés, o prazer da audácia. E volto a Frederico Lourenço: “À cigarra compete apenas concentrar-se no seu próprio canto, independentemente da zurraria dos burros que criticam (cito aqui os termos bem conhecidos do poeta helenístico Calímaco). Lição em que Agustina foi exemplar».
Guilherme d'Oliveira Martins