A VIDA DOS LIVROS
De 25 de setembro a 1 de outubro de 2023
Homenagear hoje Eça de Queiroz é reconhecer o lugar cimeiro que o autor de “Os Maias” tem na cultura da Língua Portuguesa e não apenas no Portugal europeu.
DEMONSTRAÇÃO DE GRANDEZA
Quando lemos nas “Notas Contemporâneas” o artigo de Eça de Queiroz sobre “Os Grandes Homens de França”, escrito em 1892 na “Gazeta de Notícias”, encontramos um exercício de fina ironia que demonstra as qualidades do extraordinário prosador. Do que se trata não é de um juízo sobre o futuro, mas de uma crítica relativamente à procura artificial de grandes homens, como se tratasse de um jogo ou de um inventário de celebridades… Tem sentido a lição do autor de “A Ilustre Casa de Ramires”, distinguindo o reconhecimento do valor da cidadania e da contribuição para o bem comum da cultura de uma qualquer feira de vaidades. Falando de Vítor Hugo, Eça diz apenas que “a demonstração fica sujeita a dúvidas, a contestações, a protestos. Fica sobretudo incompreendida pela multidão. Vítor Hugo, pelo menos, é um grande homem – que não necessita demonstração”. Assim ocorre com os realmente melhores, que merecem o nosso reconhecimento. Uma leitura inteligente deste texto permite compreender que as sociedades têm o direito e o dever de reconhecer aqueles que se destacam e constituem exemplo para todos. E cabe a quem pensa e não abdica de ter sentido crítico afirmar, como fez Eça de Queiroz, de modo claro que o reconhecimento obriga a homenagear os melhores como exemplos e com um critério que não se confunda com um exercício ilusório sobre glórias passageiras e vãs.
Compreendamos assim o que o crítico nos quis dizer. Tem razão o reparo sobre a busca frenética de “grandes homens”. Não é disso que se trata quando afirmamos que o reconhecimento dos melhores tem de ficar demonstrado por si mesmo. Por isso, há muito considero que faz sentido o reconhecimento de Eça de Queiroz no Panteão, pelo que fez e pelo que nos legou como exemplo maior para a cultura da língua portuguesa. Haverá outros, certamente, mas importa fazer justiça e destacar este exemplo, já que uma sociedade se afirma e valoriza escolhendo quem não precisa de demonstração. A decisão de homenagear num edifício próprio e com um estatuto especial ilustres figuras portuguesas é apanágio das sociedades antigas, que aprendem a valorizar as suas raízes. Em 1836, o então ministro do Reino Passos Manuel decretou a edificação de um Panteão Nacional ainda sem local definido. O objetivo era dignificar os heróis que tornaram possível a Revolução liberal de 1820 e o início do constitucionalismo. E assim seria possível reerguer a memória coletiva de grandes referências que não poderiam perder-se no esquecimento, como, por exemplo, Luís de Camões. O Panteão Nacional destina-se, assim, a homenagear e perpetuar a memória dos portugueses que se distinguiram por “obras valorosas”, por serviços prestados ao País, pelo exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade. As honras do Panteão podem consistir na deposição, dos restos mortais dos cidadãos distinguidos ou na afixação de uma lápide alusiva à sua vida e à sua obra.
CONTRA QUALQUER BANALIZAÇÃO
Para impedir qualquer banalização, urge garantir o que preocupava o próprio Eça, escolhendo quem não precisa de demonstração. Em Portugal, o estatuto de Panteão Nacional está atribuído ao antigo templo de Santa Engrácia em Lisboa e ao Mosteiro Santa Cruz em Coimbra, onde se encontram os túmulos dos dois primeiros reis de Portugal - D. Afonso Henriques e D. Sancho I. No primeiro destes monumentos estão sepultadas diversas personalidades da história portuguesa: quatro Presidentes de República, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Sidónio Pais e Óscar Fragoso Carmona; e ainda Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Humberto Delgado, Aquilino Ribeiro, Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira. Estão ainda recordados, através de “cenotáfios”, os nomes de seis figuras históricas: Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Luís de Camões. O mosteiro dos Jerónimos, que funcionou provisoriamente como Panteão, antes de Santa Engrácia estar completada, não tem hoje esse estatuto formal, ainda que tenha os túmulos de Vasco de Gama e de Luís de Camões, na nave do templo, e do historiador Alexandre Herculano, na antiga Sala do Capítulo. Em 1985 o corpo de Fernando Pessoa foi transladado para o Claustro dos Jerónimos, sendo o seu túmulo da autoria de Lagoa Henriques. Importa ainda dizer que em Lisboa, no templo de S. Vicente de Fora, encontra-se o Panteão Real da Dinastia de Bragança, de natureza diferente, onde se encontram sepultados em número significativo os membros da família que reinou após a Restauração de 1640.
Desde a antiga Grécia e depois em Roma, a palavra Panteão designava o templo onde se honravam os vários deuses com culto reconhecido. A palavra é grega e significa literalmente “todos os deuses”. Em Roma, o Panteão que chegou aos nossos dias é uma homenagem ao cônsul Marco Agripa (63-12 a.C.), que o mandou construir em 27 a.C. No ano 80, foi praticamente destruído por um incêndio. Quatro décadas depois, o imperador Adriano (76-138) ordenou a sua reconstrução. Foi o cristianismo que, em virtude da doação de um rei bizantino ao Papa Bonifácio IV no século VII, salvou o monumento da pilhagem e da destruição, adotando o orago de Santa Maria e Todos os Santos. Já no Panteão de Paris, as obras para construção foram iniciadas em 1764, sob encomenda de Luís XV, em ação de graças por ter recuperado de uma grave enfermidade. O templo apenas foi concluído em 1790, depois da Revolução tendo sido então transformado num edifício secularizado, com a função de homenagear os vultos da França que se notabilizassem. Então o Panteão passou a funcionar como lugar de homenagem reconhecida da Pátria aos melhores dos seus filhos. Também na Abadia de Westminster, em Londres, estão sepultados grandes vultos britânicos como William Shakespeare, Isaac Newton e Charles Darwin. É assim a partir duma tradição religiosa e secular que foram criados os Panteões Nacionais. Os modernos Panteões nascem, pois, de uma tradição antiga de raízes heterogéneas, desde o paganismo ao secularismo, passando pela dimensão religiosa. Trata-se, em qualquer caso, de honrar os melhores através do reconhecimento dos cidadãos. É este o espírito que hoje devemos recordar. Eça de Queiroz é uma referência fundamental nas culturas da língua portuguesa, correspondendo a sua presença entre os nossos maiores no Panteão Nacional a um ato de elementar justiça, não um mero gesto formal, mas como apresentação de um exemplo para todos. Um reconhecimento de justiça.
Guilherme d'Oliveira Martins