A VIDA DOS LIVROS
De 9 a 15 de outubro de 2023
Recordando a memória da antiga Presidente do Centro Nacional de Cultura, Helena Cidade Moura, salientamos o seu empenhamento em prol da Educação permanente.
EDUCAÇÃO PARA TODOS
A última vez que falámos foi na Residência Faria Mantero, no Restelo, onde viveu os últimos anos da sua vida, e onde também esteve António Ramos Rosa, que, aliás, nos deixou um “retrato” da sua amiga Helena Cidade Moura, num impressivo apontamento que se encontra no Centro Nacional de Cultura por gentileza da família desta. Falámos então longamente, essencialmente sobre projetos de educação popular, lembrando a sua própria experiência prática de alfabetização de adultos e de mobilização de iniciativas de participação cívica de norte a sul do país. Recordo-me de exaustivos documentos que me mostrou, com programas de descentralização de educação e formação, bem como de modos concretos de reconhecimento de formações adquiridas. A ideia de Educação permanente era para Helena uma prioridade absoluta e eixo de uma verdadeira política de cultura, não apenas como conceção programática, mas como mobilização de vontades e empenhamento de ações necessárias. O poder local e a importância da participação cívica eram fatores cruciais com os quais se poderia melhorar a qualidade da democracia. Mais do que um programa formal, a ideia de novas oportunidades para todos, era essencial. Exatamente nesse sentido a UNESCO consagrou em 1990, em Jomtien, como primeiro objetivo mundial a Educação para todos.
A PRIORIDADE DAS MULHERES
Mais do que o combate pacífico contra o analfabetismo, haveria que considerar a educação e a formação como uma troca de saberes e experiências, reconhecendo que por exemplo um artesão analfabeto não pode ser esquecido já que, além do direito e dever à educação, tem muito para dar à sociedade em termos dos conhecimentos, do saber e do saber fazer, do mesmo modo que a prioridade relativamente ao ensino das mulheres constitui fator crucial no tocante á igualdade e à transmissão de conhecimentos. O filho ou a filha de uma mulher alfabetizada não será analfabeto ou analfabeta e, a prazo, pelo efeito multiplicador da aprendizagem, toda a sociedade ganhará com a literacia das mulheres. Saber ler permite não apenas transmitir experiências, ler estórias às crianças, mas também ter o conhecimento dos planos de saúde e de planeamento familiar, ler as bulas dos medicamentos. Salvam-se vidas vacinando as crianças e tendo acesso a consultas médicas e a medicamentos e a uma alimentação correta e equilibrada, mas também beneficiando da esperança da poesia ou da ciência. Era todo este entusiasmo que motivava Helena Cidade Moura no seu combate pela Educação permanente e pelo valor incalculável do conhecimento e da cultura como fatores motivadores da democracia e do Estado de direito.
UM GRANDE EXEMPLO CÍVICO
Com um percurso cívico irrepreensível, desde o magistério literário ou da presidência do Centro Nacional de Cultura, onde contou com o apoio do Padre Manuel Antunes, S.J., até à função de deputada, depois de 25 de abril de 1974, foi sempre uma incansável militante da cultura e das artes. Como membro ativo da Civitas – Associação de Defesa e Promoção dos Direitos dos Cidadãos, fundada em 1987, lembrou-me o trabalho direto com desempregados, com trabalhadores em situação de exclusão social, resultante da emigração, da precariedade e da pobreza, habitantes de bairros degradados, cujo corte do laço social aponta para a exclusão. Havia que contrariar a rutura, entre o tecido social e as necessidades do País, no quadro europeu e no âmbito do desenvolvimento humanista, ao qual as novas tecnologias e os objetivos de coesão social trouxeram a exigência de um contexto de maior participação. “A busca desse contexto (continuava Helena) levou a um potencial de mudança, que nos foi aproximando da verificação de hipóteses teóricas fundamentais no pensamento de Chombart de Lauwe, segundo o qual a crise económica é uma crise cultural, na medida em que as escolhas de desenvolvimento, que estão na origem de erros de orientação, são fundamentadas em sistemas de representação e de valores, sobre as conceções do mundo, sobre as ideologias que recusam, em geral, de formas diversas, reconhecer nos factos, os direitos humanos e dos povos, mesmo se, em palavras, os defendem”.
Não esqueço esse nosso derradeiro encontro, e sobretudo o sentido das suas preocupações, a fim de que não esquecêssemos o dever essencial de fazer da Educação para todos uma responsabilidade partilhada, determinada e necessária. Mas devo lembrar ainda a honra que tive, enquanto Ministro da Educação, de nomear Helena como representante do Ministério na Comissão do Centenário da morte de Eça de Queiroz. Trabalhou então intensamente, sempre com a preocupação de aproximar a literatura das pessoas e de garantir a qualidade das aprendizagens no ensino obrigatório. Estivemos, por isso, juntos em Tormes, num momento inesquecível. E para sempre lhe estamos gratos pelo trabalho pioneiro na edição dos “Livros do Brasil” da obra de Eça. Em especial lembre-se o “salvamento” de A Cidade e as Serras, num episódio complexo de que hoje conhecemos os contornos algo estranhos. E concordamos com o que afirmou então, de forma diplomática, “que a profusão de emendas que o espírito-companheiro de grupo (referia-se a Ramalho) teria feito nos manuscritos de Eça está longe do que hoje nos pede o respeito pela obra literária”. Helena Cidade Moura abriu, assim, caminho à edição crítica, e devemos estar-lhe eternamente gratos. Oiçamo-la: “Eça, estilisticamente, foi um precursor. Ainda hoje nos espanta a novidade expressiva do seu estilo. Seria que no seu tempo, mesmo aqueles que o consideravam o maior de todos, não sentiriam segurança suficiente para expor aos olhos do publico uma prosa demasiado direta? O problema requer investigação. A verdade é que hoje uma edição cuidada das obras de Eça de Queiroz não se pode fazer apenas repetindo as primeiras edições, nos livros que mesmo considerados não póstumos por ter sido por ele organizada e tratada a sua impressão com o editor, foram na verdade publicados depois da sua morte”. E assim se criou um novo paradigma. O trabalho feito está à vista, realizado pelos melhores especialistas para benefício da cultura e da memória de Eça, mas a premonição de Helena tem de ser reconhecida, uma vez que pôs termo a uma inércia talvez respeitosa, mas inaceitável. Filha de Hernâni Cidade, que tive o gosto de conhecer, e que foi mestre no estudo da literatura portuguesa e um dos fundadores da revista “Colóquio” da Fundação Calouste Gulbenkian, nascida em 27 de agosto de 1923 e falecida a 20 de julho de 2012, pode dizer-se que foi, com Sophia de Mello Breyner e Helena Vaz da Silva, uma das mulheres que colocou o Centro Nacional de Cultura como importante referência cultural, para além de tudo o que realizou ao longo de uma vida cívica de grande importância.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença