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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 23 a 29 de outubro de 2023


Umberto Eco – A Biblioteca do Mundo
de Davide Ferrario é mais do que um documentário. É um elogio da Biblioteca e da leitura como lugares de memória.


COMO TUDO COMEÇOU… 
Tudo começou na Bienal de Veneza em 2015 quando nasceu a ideia de fazer uma vídeo-instalação sobre a memória. O melhor seria organizar uma conversa com Umberto Eco, enquanto “estrela” do mundo da cultura, como especialista das linguagens e das línguas. Depois de uma primeira troca de ideias, Eco aceitou e convidou o realizador a visitar a sua biblioteca. A resposta foi positiva, mas Ferrario compreendeu que teria de fazer algo diferente do que tinha inicialmente pensado. Haveria que ir a um sétimo céu, a um labirinto com corredores mágicos, paredes integralmente forradas de livros de todas as idades e épocas, com os mais variados temas, e diversas escadas móveis capazes de permitir o folhear livros reveladores do carácter inesgotável da procura do conhecimento. Património de cultura e memória desperta ali estavam ao alcance de um qualquer visitante numa espécie de montanha-russa em que se juntavam incunábulos austeros, contos infantis, cancioneiros eruditos e populares, romanceiros e enciclopédias… E tratando-se de um labirinto, haveria que ter cuidado em munir-nos com um indispensável fio de Ariadne que permitisse não nos perdermos nos milhares de caminhos, travessas, becos, encruzilhadas e armadilhas encontráveis num espaço misteriosamente indecifrável.


UM SANTUÁRIO EM MILÃO
A casa de Umberto Eco fica no centro de Milão, na proximidade do castelo dos Sforza, tem um longo corredor com trinta passos de estantes totalmente cheias, com encadernações diversas, de pergaminho, de pele, de couro macio, de pano, dos mais diversos tipos de papel, de diferentes cores. Percebia-se uma curiosidade infinita por parte do anfitrião, com gosto pelo insólito. E compreende-se a lenda verdadeira de que Umberto Eco se refugiava na sala ampla, com aparência de arquivo, com uma mesa-redonda cheia de livros em montes, para tocar flauta, rodeado daquele universo de memórias vivas. Qual o grande enigma da cultura senão essa possibilidade transcendente de encontrar os maiores espíritos de todos os tempos e de dialogar com eles ao folhear o que escreveram e pensaram? E a própria flauta é a metáfora da vida, como diria o alquimista Robert Fludd – “o ar soprado por Deus para dar vida ao mundo” passa pelo tubo escuro que o escritor prefere a qualquer instrumento eletrónico… E vem a definição daquele lugar (ou livraria, como diria meu avô): “Bibliotheca, semiológica, curiosa, lunática, mágica e pneumática”. Lembramo-nos dos ocultistas de O Pêndulo de Foucault, que acreditavam em tudo com fanatismo. Baudolino era um falsário genial. A ciência falsa e oculta, as linguagens imaginárias – tudo isso entusiasmava Eco. Mais importantes do que a obra fundamental de Galileo Galilei eram as respetivas refutações falsas. É a mentira que revela a verdade. E qualquer obra revela-se como necessariamente aberta. Poética ou artística a obra abre-se a uma série infinita de leituras possíveis. Autor de uma tese de doutoramento em filosofia sobre S. Tomás de Aquino e a teoria da beleza na Idade Média, Umberto mostrou-se avesso à ideia de escrever um romance. Mas a oportunidade veio inesperadamente. Nascia O Nome da Rosa, e o convite para um pequeno conto, tornou-se oportunidade para uma trama romanesca iniciado com uma lista de monges medievais e com a perigosa pergunta discretamente a um especialista amigo: como se poderia envenenar uma pessoa que estivesse a ler um livro… E a continuação da história é sabida. Conheci Umberto Eco em Lisboa, quando aqui veio a convite de Mário Soares, por sugestão de Fernando Gil. Com António Tabucchi fomos buscá-lo ao Aeroporto, contando com o seu fino humor e uma aversão sistemática aos idiotas. A conferência que realizou na Fundação Calouste Gulbenkian, apresentada por Eduardo Prado Coelho, em 11 de fevereiro de 1988, foi magnífica – “O Irracional, o Misterioso e o Enigmático”, e começava pela afirmação: «Há uma frase de Chesterton de que não consigo recordar o contexto original e que cito de memória: ‘Desde que os homens deixaram de acreditar em Deus, isso não significa que já não acreditem em nada, acreditam em tudo».


RECORDAR FUNES
Nesse tempo, não havia ainda nem telemóveis nem internet, mas profeticamente Umberto Eco já temia a tentação de abarcar o conhecimento universal através de uma espécie de super-memória, como no caso do conto de Jorge Luís Borges “Funes ou a Memória”, de 1944 (in “Artifícios”, Ficções), lembrado no filme, como referência preventiva, perante a evocação dos perigos das tecnologias de informação…  Ireneo Funes era um rapaz uruguaio com qualidades inatas que o singularizavam por algumas estranhezas, como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre as horas como um relógio. Um dia foi derrubado por um cavalo bravo e ficou paralisado sem esperança. Não saía da enxerga, de olhos postos na figueira do fundo ou numa teia de aranha. Ao cair perdera o conhecimento, mas quando o recuperou “o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido que se tornara, e também as memórias mais antigas e mais triviais”. Tornou-se um extraordinário cadinho de memórias, afirmando: “Mais recordações tenho eu sozinho do que devem ter tido todos os homens desde que o mundo é mundo”. Ireneo não só se lembrava de “cada folha de cada árvore de cada monte, como também de cada uma das vezes que a tinha notado ou imaginado”. Mas resolveu reduzir cada uma das suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças para poder abarcar o que poderia valer a pena. Uma vez, pediu emprestados alguns volumes com os mais difíceis problemas do latim, como a Naturalis Historia de Plínio, que está na origem das enciclopédias modernas. E desenvencilhou-se perante as mais difíceis sentenças, designadamente no inusitado primeiro parágrafo do capítulo 24 do livro sétimo, exatamente sobre a memória, como “ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum”, ou seja, “de modo que nada seria reproduzido sem ouvir as mesmas palavras”. Funes tinha “aprendido sem esforço inglês, francês, português e latim. Suspeito, no entanto, de que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos”. O exemplo do “memorioso” era, afinal, uma verdadeira metáfora atual sobre o pequeno clique digital que nos dá acesso a uma bibliografia de dez mil volumes, quando ninguém, de facto, poderá lê-los. Por isso, Ireneo Funes tinha a estranha angústia sobre a multiplicação de gestos inúteis. Antigamente líamos três ou quatro livros e ainda poderíamos aprender qualquer coisa. Agora somos obrigados a ter de eliminar o máximo de informação, protegendo-nos o mais possível dos ataques de quem nos quer importunar a todo o custo, num mundo sobrecarregado de mensagens. Naquele mágico labirinto, o verdadeiro enigma continua a ser o que permitiu a Teseu libertar-se de Minotauro…       


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença