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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 13 a 19 de novembro de 2023


Na passagem dos oitenta anos do nascimento de Manuel António Pina, recordamos a sua obra e o seu percurso intelectual de jornalista, escritor e poeta. “Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança” (Assírio e Alvim, 1999) é, sem dúvida, uma das mais sentidas expressões do seu talento.


UM ARTÍFICE DA ESCRITA
A última vez que estive com Manuel António Pina foi em S. Pedro de Rio Seco, a terra-natal de Eduardo Lourenço.  E lembro a presença discreta de quem admirava genuinamente o ensaísta, permanente interrogador do destino português. O certo é que à medida que cada um dos géneros que cultivou se desenvolveu, soube sempre, com fino humor e cuidada reflexão, tratar do destino como coisa muito séria, como matéria-prima do carácter e da dignidade humana. Nasceu em 1943, no Sabugal e faleceu, quando muito haveria a esperar dele, em outubro de 2012, no Porto. Era um apaixonado da vida, e quando abraçou o jornalismo, depois de uma incursão pelo Direito, fê-lo pelo amor aos acontecimentos, em toda a sua vitalidade. No Jornal de Notícias, onde foi editor, tornou-se um mestre reconhecido por todos, quando a banca de um jornal era a melhor tarimba e a melhor forma de ser artesão da palavra. É certo que, além da palavra escrita, usou os seus talentos de jornalista na rádio e na televisão, mas o seu campo de eleição era o da palavra escrita e das colunas dos periódicos numa cidade de tão grandes tradições. Depressa o jornalista tornou-se cultor de vários géneros literários desde as obras para a infância e juventude à poesia. E assim a sua obra desde cedo apresenta uma grande coesão estrutural e uma evidente criatividade. Amante das palavras e dos seus jogos, Manuel António Pina tornou a sua obra um constante "jogo de imaginação", como um caleidoscópio ou um labirinto que obriga a um trabalho permanente de descodificação, para a compreensão e a procura da solução dos mais intrincados enigmas literários.


Que melhor forma cultivar a literatura senão pela busca permanente das várias cambiantes dos caldos de literatura e das várias tonalidades da cultura? Nesse sentido, por uma aturada pesquisa de trovador, cada vez mais experimentado, tornou-se uma voz das mais originais da língua portuguesa, sobretudo a partir de Nenhum Sítio, com curiosos ecos de T. S. Elliot, Milton ou Jorge Luis Borges, numa tendência para a exploração das possibilidades reflexivas do poema, transportando, como disse Manuel Frias Martins, a palavra poética "quer para a investigação do processo de conhecimento quer para a investigação do processo de existência literária”.


Reveladora de uma perspetiva aberta dos valores éticos e de um apurado sentido pedagógico, a sua obra infantil e juvenil tem sido escolhida selecionada para manuais escolares, sendo também integrada em antologias portuguesas e espanholas. Por outro lado, os seus textos teatrais foram frequentemente representados em todo o país e a sua ficção tem constituído o suporte para séries televisivas, como  Histórias com Pés e Cabeça, 1979/80.


Recordemos na poesia obras como o citado Nenhum Sítio (1984), além de O Caminho de Casa (1988), Um Sítio Onde pousar a Cabeça (1991), Algo Parecido Com Isto da Mesma Substância (1992); Farewell Happy Fields (1993), Cuidados Intensivos (1994), Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança (1999), Le Noir (2000), Os Livros (2003). Na novela, temos O Escuro (1997). Nos textos dramáticos - História com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas (1984), A Guerra Do Tabuleiro de Xadrez (1985). Não devemos esquecer o ensaio - Anikki - Bóbó (1997), sobre a obra transposta para o cinema por Manoel de Oliveira.  Na crónica, escreveu - O Anacronista (1994). E na literatura infantil - O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973), Gigões e Anantes (1978), O Têpluquê (1976), O Pássaro da Cabeça (1983), Os Dois Ladrões (1986), Os Piratas (1986), O Inventão (1987), O Tesouro (1993), O Meu Rio é de Ouro (1995), Uma Viagem Fantástica (1996), Morket (1999), Histórias que me contaste tu (1999), O Livro de Desmatemática e A Noite.


UM CULTOR DA IRONIA E DO NON SENSE
Dotado do especial dom de cultivar o non sense, escreveu um dia «A poesia vai acabar, os poetas / vão ser colocados em lugares mais úteis. / Por exemplo, observadores de pássaros / (enquanto os pássaros não / acabarem). / Esta certeza tive-a hoje ao / entrar numa repartição pública. / Um senhor míope atendia devagar / ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum / poeta por este senhor?»    E a pergunta / afligiu-me tanto por dentro e por / fora da cabeça que tive que voltar a ler / toda a poesia desde o princípio do mundo. / Uma pergunta numa cabeça. / — Como uma coroa de espinhos: / estão todos a ver onde o autor quer / estão todos a ver onde o autor quer chegar?»


Prémio Camões de 2011, Manuel António Pina foi justamente reconhecido por diversos prémios, como o da Casa da Imprensa, em 1978, por Aquele Que Quer Morrer; ou o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens e a Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua, em 1988, por O Inventão; além do Prémio do Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude, em 1988, pelo conjunto da obra; o Prémio Nacional de Crónica Press Clube/Clube de Jornalistas, em 1993, pelas suas crónicas; o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 2001, por Atropelamento e Fuga; e o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, ambos pela obra Os Livros (2005). Já a título póstumo foi ainda galardoado com o Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes, pelo livro «Como se Desenha uma Casa», e com o Prémio Especial da Crítica dos Prémios de Edição Ler/Booktailors 2012, pelo livro Todas as Palavras – Poesia Reunida.


E Eduardo Lourenço, em homenagem à versatilidade do autor e à sua ironia, lembrou-se o seu gato quando dele se foi despedir: «Em cada gato há outro gato / um pouco menos exato / e um pouco menos opaco // Um gato incoincidente / com o gato indecente / caminhando à sua frente ou a seu lado, / espírito alado / do que é terrestre no gato. // É o segundo gato / (…) / às vezes assomando / nos olhos do gato / como um passado móvel e // enclausurado. / O próprio gato / não sabe que anda por ali / algo que não cabe dentro nem fora de si»…


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença