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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 20 a 26 de novembro de 2023


Evocamos um amigo, D. Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999), em «A Saga / Fuga de J. B.» a propósito do Encontro de Santiago de Compostela sobre o Património Cultural.


GONZALO, UM AMIGO
Escrevo de Santiago de Compostela onde participo no Congresso Internacional “O Património, uma responsabilidade partilhada”, iniciativa de Hispania Nostra, reflexão sobre o património cultural, encarado não como realidade do passado, mas como fator essencial para a compreensão de uma cultura viva. E nada melhor do que lembrar D. Gonzalo Torrente Ballester, que conheci e que, como José Saramago reconheceu foi um autor digno da estirpe de Cervantes e dos seus Quixote e Alonso Quijano. E recordo Castroforte del Baralla, em uma cidade imaginária, que não vem nos mapas e flutua acima da realidade. José Bastida relata-nos o desaparecimento de uma relíquia, o Corpo Santo. Trata-se de uma verdadeira metáfora sobre cultura, património e memória. A ironia e o picaresco aí estão, entre gritos, vozearia e realidades múltiplas, religiosas e profanas, virtude e pecado, realidade e fantasia. Qualquer cultura viva é, por definição, mestiça. E em Castroforte não existe passado nem futuro, apenas figuras do presente que ilustram mil anos de história. Eis como se põe em diálogo memória e futuro. E J.B. ou José Bastida multiplica-se, graças ao génio de Torrente Ballester, uma vez que o lugar retratado é a imagem da cultura das pedras vivas de Rabelais. E encontramos de tudo um pouco – literatura e mito, sonho e realidade, História e Geografia, psicologia e linguística, lembrança e esquecimento. E a relíquia, o Corpo Santo, simboliza o que importa preservar e defender, como raiz e perenidade, encontro e desencontro. Em torno dela tudo se move, como se nada acontecesse.


A CONVENÇÃO DE FARO
Devo falar de um instrumento de defesa do património, não como abstração, mas como compromisso. A Convenção de Faro de 2005 reconhece o “valor” para a sociedade do património histórico e da cultura, considerados como realidades dinâmicas, resultado de uma dialética entre o que recebemos e o que legamos. Mas os valores não são objetos ideais, são realidades imprevistas. Os fenómenos culturais participam dessa qualidade, não cabendo em “modelos estáticos” ou repetições, devendo, sim, inserir-se no horizonte da “experiência histórica”. Perante uma Convenção com clara referência universalista, como a UNESCO fez relativamente à diversidade cultural e ao património imaterial, torna-se indispensável pôr no centro das preocupações deste instrumento jurídico uma teia complexa de direitos e deveres, de garantias e responsabilidades, de instrumentos de acompanhamento e avaliação, que possam fazer convergir não só a salvaguarda concreta, mas também a proteção do património histórico e cultural no âmbito de uma cultura aberta e universalista, de direitos e deveres fundamentais.


Compreende-se, assim, a novidade do objetivo do Conselho da Europa “de realizar uma união mais estreita entre os seus membros a fim de salvaguardar e promover os ideais e princípios baseados no respeito dos direitos do homem, da democracia e do Estado de direito, que constituem o seu património comum”. Deste modo se entende a “necessidade de colocar a pessoa e os valores humanos no centro de um conceito alargado e interdisciplinar de património cultural” e de salientar “o valor e as potencialidades de um património cultural bem gerido, enquanto fonte de desenvolvimento sustentável e de qualidade de vida”. E reconhece-se que cada pessoa “tem o direito de se envolver com o património cultural da sua escolha, como expressão do direito de participar livremente na vida cultural. Com vista “a uma maior sinergia de competências entre todos os agentes públicos, institucionais e privados interessados” reconhece-se “que o direito ao património cultural é inerente ao direito de participar na vida cultural, tal como definido na Declaração Universal dos Direitos do Homem”; “uma responsabilidade individual e coletiva perante o património cultural”; e que a “preservação do património cultural e a sua utilização sustentável têm por finalidade o desenvolvimento humano e a qualidade de vida”. Daí a necessidade de reforçar o “papel do património cultural na edificação de uma sociedade pacífica e democrática, bem como no processo de desenvolvimento sustentável e de promoção da diversidade cultural”.  


MOBILIZAR VONTADES… 
Trata-se de mobilizar vontades, através de um instrumento com força própria, no sentido de tornar o património cultural um fator de paz e de cooperação, ao contrário do que muitas vezes aconteceu no passado, em que o património cultural e as diferenças culturais estiveram, ou estão, no epicentro dos conflitos. Um templo com diversas referências históricas e culturais, religiosas e sociais tem de ser visto como um ponto de encontro e de memória, facto que só enriquece a sua atual utilização, religiosa ou profana, em nome do respeito e da preservação do espírito dos lugares, segundo uma cultura de paz. Assim, o património cultural, longe de se submeter a uma visão estática e imutável, passa a ter de ser considerado como um “conjunto de recursos herdados do passado”, testemunho e expressão de valores, crenças, saberes e tradições em contínua evolução e mudança. O tempo, a história e a sociedade estão em contacto permanente. Nada pode ser compreendido e valorizado sem esse diálogo. O património cultural, material e imaterial, surge, nesta lógica, como o primeiro recurso em prol da dignidade da pessoa humana, de diversidade cultural e de desenvolvimento durável. A originalidade de adotar o conceito de “património comum da Europa” (longe dos nacionalismos) tem de ser vista como elemento dinamizador de uma cidadania ativa e aberta. Somos cidadãos e une-nos um sentimento de pertença comum e os elos que se reportam a uma história viva, simbolizada e representada por uma herança (heritage), pelo património material e imaterial e pela capacidade de tornar presente essa invocação, através da vitalidade da criação contemporânea. O património comum está, deste modo, na encruzilhada das várias pertenças e de várias complementaridades. Indo mais longe do que outros instrumentos jurídicos e políticos e do que outras convenções, esta ideia visa prevenir os riscos do uso abusivo do património, desde a mera deterioração a uma má interpretação enquanto “fonte duvidosa de conflito”. O mesmo bem patrimonial está ligado a tradições diferentes. Um templo pode ter na sua história referências muito diversas. As mudanças fizeram-se violentamente, e haverá a tendência para valorizar apenas a conceção dominante atual. Mas caberá à sociedade de cidadãos livres encontrar o denominador comum, que permita evitar que uma identidade, tradição ou monumento sejam fontes de conflito. Nesta perspetiva, o património cultural fica no ponto de convergência entre um passado de conflito e a procura de um consenso de valores e ideais no âmbito da cultura da paz. E a saga e fuga de J.B., como caleidoscópio, poderão ajudar.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença