A VIDA DOS LIVROS
De 8 a 14 de janeiro de 2024
Maria Archer (1899-1982) foi uma escritora multifacetada. Como romancista enalteceu os direitos da mulher, como cronista e ensaísta deu-nos um retrato da África e do mundo do seu tempo, temas que merecem leitura nos nossos dias.
AUDÁCIA E ENERGIA
João Gaspar Simões afirmou em 1930 sobre Maria Archer: «Não conheço outra escritora portuguesa que à audácia dos temas e das ideias alie uma expressão tão enérgica e pessoal. O seu estilo respira força e solidez.» Pode dizer-se que se trata de um juízo justo, sobretudo quando tomamos contacto com a rica e diversificada obra de uma escritora, que infelizmente é muito pouco conhecida na nossa República das Letras. Contudo, sempre que alguém regressa à sua obra escrita é invariável o espanto e a admiração.
Maria Archer nasceu em Lisboa a 4 de janeiro de 1899. Foi a primeira de seis irmãos e começou cedo, a viajar com os pais e a acompanhá-los - Ilha de Moçambique (1910-13) e Guiné-Bissau (1916-18). Uma vez que terminou tarde a instrução primária, por decisão própria, podemos considerá-la autodidata. Em 1921, vive em Faro com a família e aí casa com Alberto Passos, indo viver para o Ibo – Moçambique. Cinco anos depois regressam a Faro e de seguida vão para Vila Real, tendo o casamento durado apenas dez anos. Em 1932, parte para Angola, ao encontro de seus pais. Em Luanda, publica o seu primeiro livro - Três Mulheres (1935) – com o apoio de Pinto Quartin. Escreve para os jornais e vê-se confrontada com a incompreensão da própria família, designadamente aquando da publicação do romance Aristocratas (1945), uma vez que os elementos autobiográficos chocam os mais próximos de si. Em 1943, escreve com Branca de Gonta Colaço Memórias da Linha de Cascais. E no mesmo ano publica uma apresentação sobre os Parques Infantis, a convite de Fernanda de Castro. Participa em várias conferências, em Lisboa e no Porto, e faz várias entrevistas como jornalista. Em 1955, parte para o Brasil, por considerar a censura como intolerável. Os livros Ida e Volta duma Caixa de Cigarros (1938) e Casa Sem Pão (1947) tinham sido proibidos. Conhecedora da situação africana, desde muito cedo compreende a tendência para a emancipação dos povos coloniais, no que se aproxima de Henrique Galvão, quer nas preocupações culturais, quer nas políticas. Acompanha, por isso, o julgamento do antigo fundador da Emissora Nacional, tornado crítico da política de Salazar em Angola, que decorreu no Tribunal Militar de Santa Clara. Defensora dos direitos das mulheres tem na sua escrita a afirmação clara da exigência do necessário reconhecimento de uma igualdade substancial, deixando na sua obra a marca indelével da afirmação da democracia.
ENTENDER O FEMININO
Maria Archer é, de facto, uma das mais dotadas escritoras portuguesas do século XX. Soube entender o feminino até ao âmago, como nenhuma outra, o feminino nos seus sonhos, nos seus anseios e denunciar corajosamente a teia dos preconceitos absurdos que pendiam sobre as mulheres, sobretudo as que procuravam lutar pela sua dignidade. Em Ela é Apenas Mulher (1944) fica evidenciado não apenas uma capacidade extraordinária para definir quadros narrativos, mas também para retratar as personagens, em especial as femininas. A figura de Biluca Morgado, a protagonista de Nada lhe Será Perdoado (1953), é bem o símbolo do sofrimento de uma mulher ao pretender seguir, depois do divórcio, o seu próprio caminho de liberdade e dignidade... Já no Brasil e apesar da chantagem do regime, sobre o seu relato do julgamento de Galvão, publicará Os Últimos Dias do Fascismo Português (1959), que causará brado, pela natureza das acusações relativamente à política de Salazar. No Brasil, apesar da doença e da míngua de meios de vida, escreveu bastante para diversos jornais, nomeadamente para O Estado de S. Paulo, Semana Portuguesa e Portugal Democrático. São desse período as seguintes obras: Terras onde se Fala Português, África sem Luz, Brasil, Fronteira da África. A obra de Maria Archer foi bastante diversificada, designadamente em periódicos, como Correio do Sul, Diário de Lisboa, Eva, Fradique, Ilustração, Ler, O Mundo Português, Portugal Democrático, Seara Nova, Sol e Estado de S. Paulo.
De 1935 a 1944 foi sobretudo novelista ou contista. De 1944 a 1955 chega à maturidade na sua produção literária, revelando-se perspicaz observadora e narradora dos problemas que atingem a mulher dessa época. A partir de 1956, temos a fase da resistência no Brasil com a publicação de vários artigos no Portugal Democrático e do livro referido sobre o julgamento de Henrique Galvão. Há coerência nos ensaios e estudos sobre África e os costumes dos seus povos (13 obras), nos quais se sente um sentido emancipador que envolve a necessidade da autodeterminação colonial. A obra de Maria Archer traduz-se na publicação de trinta livros, três dos quais chegaram à terceira edição e cinco tiveram três, o que prova a apreciação positiva do público leitor, em especial das mulheres. Todos reconhecem um valor especial na literatura feminina do início do séc. XX, envolvendo novela, romance, ensaio e literatura de viagens. Escreveu, também, 5 peças de teatro, um romance de aventuras infantis e dois ensaios para que o público mais jovem aprendesse a História de forma lúdica. Como premonitoriamente reconheceu Gaspar Simões, foi na forma audaciosa como retratou a mulher portuguesa e os seus problemas familiares e sociais que se tornou uma referência essencial na literatura do séc. XX. Ainda no Brasil, em 1974, apesar de enfraquecida, continuou o seu combate na afirmação da democracia, em 1977 foi internada em São Paulo, donde regressou a Portugal em abril de 1979. Permaneceu em Lisboa até à morte em 23 de janeiro de 1982, há quarenta e dois anos.
Guilherme d'Oliveira Martins
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