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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 8 a 14 de abril de 2024


Nuno Júdice é, no panorama da literatura portuguesa, uma referência fundamental que o futuro se encarregará de valorizar cada vez mais.


LER POESIA – CELEBRAR A CULTURA
Na celebração do Dia Mundial da Poesia, que teve lugar no Centro Cultural de Belém, escolhi para a maratona da leitura, um poema de Nuno Júdice que recorda as origens algarvias, mas também lembrei a evocação dessas paragens da autoria de Miguel Torga, regressando ao dia já distante em que aí encontrei o Mestre. E, por um momento, vieram-me à memória os pioneiros, António Mega Ferreira e Vasco Graça Moura, que iniciaram esse hábito salutar de leitura, em nome do culto da Poesia. Li “Estrelas”, publicado em Pedro Lembrando Inês, e senti um sentimento de gratidão, pois o Algarve que ali está representado é a saudosa terra que a poeta definia como o lugar que afirma as pequenas marcas do seu carácter único. “Desfaço nas mãos, os figos / fugazes de setembro, enquanto o seu leite / escorre pelas folhas verdes que / os envolvem. Esses figos, que me traziam / em cestos de vime, eram mel na boca / que os saboreava. Secos iam parar / aos frascos fechados para o inverno, de onde / os tirava para meter no bolso, / antes de sair. ‘O que tens aí?’, perguntavas-me. E /eu passava-te para a mão um desses figos, e via / como o abrias, chupando os seus grânulos, / e passeando na boca a amêndoa que / o recheava. Onde estarás ?, pergunto. Poderia / ainda hoje partilhar, contigo, um / desses figos do inverno? Ou o seu leite secou, / nos cantos dos lábios, roubando-te / as palavras, e o húmido murmúrio / do amor?”.


Num tema aparentemente tão simples, está toda a grandeza do poeta e da sua atenção. Nuno Júdice seguiu o melhor lirismo, que vem dos trovadores, desenvolve-se nos grandes cancioneiros e culmina na herança inesgotável camoniana e em tudo quanto se lhe seguiu. Um pormenor do quotidiano, o figo, maduro e seco, e o diálogo da amizade e do amor, ingredientes indispensáveis à compreensão da vida. António Carlos Cortez acaba de publicar Um Canto na Espessura dos Textos – Leituras da Poesia de Nuno Júdice (D. Quixote, 2024). Em boa hora encontramos aí a expressão viva, do que para o poeta é mais do que um balanço ou do que uma homenagem. É a demonstração da relevância de uma figura maior da nossa literatura, em confronto com os nossos maiores. Afinal, a justa projeção internacional que Nuno Júdice alcançou corresponde a muito mais do que uma afirmação individual, para ser uma fecunda manifestação da cultura da língua portuguesa além-fronteiras.


UMA NATUREZA VIVA
E ouvimos o discurso direto do poeta: “Quando começo um poema nunca sei para onde estou a ser conduzido. Há muitas formas de encontrar linha de desenvolvimento, umas vezes lógica, outras mais contraditória ou paradoxal, mas o que é comum é o modo como o poema se fecha a si próprio, quase sempre de uma forma inesperada que surpreende através de várias formas, desde a ironia até esse encontro como o que posso chamar uma transcendência que obriga a ler o poema e a reinterpretá-lo. O que importa é a surpresa no final, que subverte ou transforma o que vinha antes”. De facto, para o autor não pode haver Poesia sem passado e sem memória. Todavia, a memória não vem apenas da experiência pessoal, mas de uma poesia perene, dos poemas lidos, das situações próprias, mas também da partilha de experiências. E então a memória reinventa-se, como na genial lição de Eduardo Lourenço, na revisitação de Fernando Pessoa sobre a falsa influência de Walt Whitman na “Ode Triunfal” e a verdadeira repercussão do americano em Caeiro, numa inversão de termos, que reinventa a unidade da criação poética de Pessoa…


“O título é a última coisa que aparece quando estou a compor um livro (confessava a António Carlos Cortez, num diálogo recente, de 2023). Tem de conter em simultâneo uma síntese, mas também a forma como vou distinguir um livro de outro, encontrando essa ‘personalidade’ que o distingue”. E se falamos de passado e de memória, importa enfatizar o necessário diálogo com as diversas artes. As experiências de Berna e depois de Paris permitiram ao poeta desenvolver uma relação forte com a pintura, os museus, os artistas com quem conviveu, os livros de arte que escreveu, de Manuel Amado a Graça Morais, de Jorge Martins a Júlio Pomar, que conferiram à poesia de Nuno Júdice um lado visual, que se tornou paradigmático. Como ele disse ainda: “Não há poesia sem imagem, tal como não há poesia sem ideia (embora no meu caso a filosofia seja algo mais interrogativo do que explicativo)”. No fundo, para Eduardo Prado Coelho, estávamos perante um poeta da imaginação, que esclarece, não se considerando neorromântico nem surrealizante. É verdade que há, sem dúvida, a imaginação, mas também “uma razão que inscreve essa imaginação não num plano delirante (…), mas numa dimensão que vai buscar uma lógica nem sempre previsível no início do poema para criar uma surpresa e uma transformação na forma de ver a realidade”.


O CULTO DA PALAVRA
“Desde o início (continuamos a ouvi-lo) que o poema longo faz parte da minha poesia. Isso deve-se à leitura de Campos, de Caeiro, de um Eliot ou de um Pound, mas também de poetas franceses como Saint-John Perse. E resulta de uma necessidade que, nesses anos 60, senti de transformar a escrita poética numa forma de narrativa, ou conto (o Jorge Luís Borges é essencial nesse processo)”. Há aí, assim, a rejeição da poesia formalista, que se empobrece e esgota no processo da sua invenção…  Nesse ponto Antero de Quental e Fernando Pessoa têm um papel fundamental. Antero reconcilia-o com o soneto, e reforça a força da ideia e do pensamento que sempre atraiu Nuno Júdice.  Pessoa transforma a poesia em ficção e o final de Antero corresponde a uma transformação ficcional “naquele banco onde se suicida de uma forma perfeitamente encenada”. Deste modo, “memória, imaginação e ficção são partes essenciais da criação poética, mas se na sua origem não se encontra uma experiência, uma relação próxima com a realidade, o poema soa a vazio, a falso”. E o certo é que a poesia se torna não só uma forma de resistência, mas também de sobrevivência. E no diálogo que temos vindo a seguir, Nuno Júdice considera-se beneficiário de um privilégio – “nasci em Portugal e o país pese a essa tendência masoquista da nossa ‘inteligência’ para nos autodestruir, é uma exceção que permite respirar um pouco melhor quando olhamos o mundo. E tem uma grande história literária e paisagens e espaços únicos”… Essa é a natureza viva que constitui matéria-prima de um autor de exceção, cuja descoberta é ainda inesgotável.   


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença