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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 27 de maio a 2 de junho de 2024


Ao terminar em 23 de maio a celebração do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, a Gradiva acaba de publicar “Eduardo Antes de Ser Lourenço – Textos de Juventude” coordenado por Luciana Leiderfarb, um conjunto dos primeiros textos do ensaísta.

 


Falaremos oportunamente da obra, assim como da nova edição de “Do Colonialismo como nosso Impensado” – com organização de apresentação de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi. Hoje publicamos parte de um ensaio sobre a relação do ensaísta com Antero de Quental no período de Vila do Conde vivido pelo poeta.


«Aqui as praias são amplas e belas e por elas passeio ou me estendo ao sol com a voluptuosidade que só conhecem os poetas e os lagartos adoradores da luz». É Antero que o confessa a João de Deus, em 13 de janeiro de 1882. Desde os finais do ano anterior mudara-se ao encontro de paz, sossego e da proximidade dos seus amigos mais próximos. «Fixei atualmente a minha residência em Vila do Conde, terrinha antiga, plácida e campestre, muito ao sabor dos meus humores de solitário» - diz a João Machado de Faria e Maia. «Vivo aqui como um verdadeiro ermita» (2 de janeiro). Sentia-se bem e confessara a Jaime Batalha Reis, nos últimos dias de outubro de 81: “Eu aqui consigo uma coisa rara, prodigiosa: dormir. Faço-o como se fosse a coisa mais natural deste mundo! Veja se não hei de considerar esta terra, além de maravilhosa, salvadora».


De facto, na vida de Antero, há um tempo e um “espírito de Vila do Conde”, que merece atenção especial. E se a relação de Eduardo Lourenço com a memória de Fernando Pessoa é especialmente relevante, a ponto de podermos dizer que é a descoberta do mistério fundamental dos heterónimos um dos maiores contributos do ensaísta para o conhecimento do modernismo português no seu conjunto, o certo é que há com Antero de Quental um elo incindível que ilumina todo o fascínio que a obra do autor de Psicanálise Mítica do Destino Português nos reserva. É, realmente, o poeta de Odes Modernas que constitui referência fundamental para o entendimento da raiz de Heterodoxia, o que leva entender-se justamente que Eduardo Lourenço é um herdeiro legítimo da Geração de 70.  Como, aliás, está afirmado e reafirmado, há uma presença indelével do tema matricial das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, nas duas visões complementares que o ensaísta considera, a da segunda Conferência do Casino de Antero e a da releitura de Oliveira Martins na História da Civilização Ibérica. Com efeito, podemos dizer que a marca desses dois textos está claramente presente quando Eduardo Lourenço se demarca de uma interpretação tradicional da cultura portuguesa, marcada a um tempo pelos ecos das glórias antigas e pelo peso do decaimento moderno. No fundo, reinterpretando Antero e Oliveira Martins, Eduardo chega a um enigma subjacente à Mensagem segundo o qual o destino português está marcado pela revelação crítica dos mitos, marcados pelos dois textos. Se o Fernando Pessoa não esconde a importância que reconhece à herança poética de Antero, deixa na penumbra a influência de Oliveira Martins na interpretação deste relativamente ao auge da afirmação histórica da dinastia de Avis e de Os Filhos de D. João I. E Eduardo Lourenço não tem dúvidas de que na Mensagem, a matriz fundamental utilizada por Fernando Pessoa corresponde à leitura que fez do autor da História da Civilização Ibérica. Como diz Eduardo Lourenço: “Em sentido próprio só com Oliveira Martins e a partir de Oliveira Martins, Portugal é história e tem a sua História. À perceção do destino português como ‘epopeia’ (transcendente ou positiva), Oliveira Martins opôs a ideia do nosso destino como ‘drama’ permanente e ambíguo. A integração do ‘mito’ no discurso histórico separa o grande Herculano, homem ainda do século XVIII, de Oliveira Martins, o autêntico romântico. Paradoxalmente, contudo, o discurso histórico do autor de Portugal e o Socialismo se tem o mérito de integrar a sombra no processo épico da visão tradicional, confere-lhe, por outro lado, um perfil fantasmagórico ao separar na escrita dele o plano vital e psicológico do plano material que condiciona o permanente balancear entre euforia e tragédia característico, segundo a sua visão, da nossa peripécia nacional” (Prefácio a Oliveira Martins, Uma Biografia, INCM, 1986, pp 16-17).


Sabemos a importância do período de Vila do Conde e não será demasiado audacioso dizer que, não por acaso, esse momento marcou especialmente a relação entre Eduardo Lourenço e o poeta de Sonetos. Sem sombra de saudosismo, o ensaísta encarou o tempo de Vila do Conde de Antero como uma oportunidade serena, de modo a pensar o inconformismo como atitude necessária, ditada pela tensão entre transcendência e imanência. Por isso, o ensaísta lembra que há entre Antero e Pessoa uma diferença intransponível, entre os sonhos sonhados e as frustrações que os acompanham. “Foi na vida mesma – na sua e na da sociedade que o cercava – que Antero quis realmente encarnar os seus sonhos, não seus apenas, mas os de uma longa utopia humana, sonho de igualdade, de justiça, de fraternidade, todos muito século XIX, que nunca foram – se não ironicamente os de Pessoa. Os sonhos de Pessoa foram, desde a origem assumida e provocatoriamente sonhos, de negação ou viagem numa outra realidade, que aquela que assim chamamos, loucura calma ou arrebatamento proposto como a sabedoria suprema. Como se tivesse nascido, e de facto teve consciência disso, sobre as ruínas do sonho anteriano que mesmo utopia de vida era já a consumação de um desastre (A Noite Intacta, pp. 140-141).


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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