A VIDA DOS LIVROS
De 10 a 16 de junho de 2024
Lembrar Camões (1524-1580) é mais do que louvá-lo. É abrir horizontes para a sua obra, no momento em que, no século XVI, foi com ele, que se atingiu a maturidade da língua portuguesa na poesia.
E não é indiferente dizê-lo, uma vez que falamos de um idioma nascido na poesia dos trovadores e que teve no rei D. Dinis o impulsionador que permitiu tornar a língua vulgar língua de cultura e meio de expressão formal para legistas e tabeliães. Essa decisão permitiu que em três séculos tenhamos podido ter com Camões a afirmação das origens do português moderno e no século seguinte a maturidade da prosa com o Padre António Vieira. Este é um caso especial no contexto das línguas europeias, que justifica plenamente que o dia nacional não se refira a uma batalha ou a um acontecimento político, mas a um ato de cultura que é a evocação da vida de um grande poeta. A língua italiana tem em Dante e na sua “Comédia” a definição suprema do paradigma da língua nacional, mas enquanto nesse caso é a unificação política nacional que determina a adoção do idioma, no caso português é a identidade que se afirma originalmente através da língua. O Estado precede a Nação, como apontou Alexandre Herculano, mas é a afirmação da língua que constitui um fator de congregação. E Camões é um símbolo natural de unificação, que constitui corolário de um caminho no qual a afirmação literária e poética assume um papel agregador fundamental. E a maturidade da poesia antecede a maturidade da prosa e da oratória, numa língua que se vai desenvolvendo pela comunicação da palavra. Como lembrou Vítor Aguiar e Silva, António Sérgio, em primeiro lugar deu um fundamental contributo “para a descoberta de um Camões pensador profundo e dramático”; José Régio elaborou uma admirável análise “interpretativa desta dialética do amor e do desejo”; Rodrigues Lapa advogou o regresso ao texto das primeiras edições das “Rimas” e Jorge de Sena foi quem pôde descobrir com a sua fulgurante inteligência teórica e crítica as virtualidades de um poeta que revelou a vitalidade cultural do seu tempo e a força do diálogo cosmopolita da riquíssima experiência renascentista. E a admiração e amor de Jorge de Sena pelo “maior escritor da língua portuguesa e cremos que um dos maiores poetas do mundo”, na sua própria expressão, merecem uma especial atenção (Cf. V. Aguiar e Silva, Jorge de Sena e Camões – Trinta Anos de Amor e Melancolia. Angelus Novus, 2009). Daí a importância da tese segundo a qual “o génio de Camões é um génio abstrato, ou seja, em que se define o universal concreto hegeliano – o qual consiste na unidade do universal e do particular, “que reduz sempre as emoções a conceitos, conceitos que não são ideias, mas a vivência intelectual delas”. Afinal, haveria que olhar Camões à luz da sua verdadeira grandeza e não de qualquer projeção de uma biografia construída, pouco consistente e tantas vezes falsamente imaginada. E o pecado mortal do biografismo camoniano teria a ver com procurar-se interpretar a poesia do épico a partir de leituras arbitrárias, erróneas e transviadas da vida e obra e da própria poesia de Camões, baseada em muitos poemas apócrifos ou pertencentes a outros poetas. Haveria, assim, um círculo vicioso, desde a utilização de factos supostamente surgidos de modo a justificar as construções biográficas. Daí a importância das revisões críticas de Audrey Bell que visavam desmontar várias invenções tecidas por imaginativos biógrafos. Por isso, Jorge de Sena afirmou em 1951: “Apenas desejo aqui deixar consignada a mais calorosa adesão ao Camões humano que, entretanto, Aquilino Ribeiro tentou, em tão boa hora, ‘desbiografar’, se assim se pode dizer do que não é mais que uma nobre e veemente obra de humanização de um ‘mito’ nacional”. Porém se Aquilino romancearia essa reconstrução, o que importava para Jorge de Sena era essencialmente a necessidade de desconstruir o mito e os ilegítimos aproveitamentos do mesmo…
Como dirá no célebre discurso sobre o Dia de Portugal de 1977, importava «dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência». Jorge de Sena deixava, assim, claro que, «sendo Camões o maior escritor da nossa língua que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um escândalo».
Para Jorge de Sena, Camões é «o homem universal por excelência, o português estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo». Fora de qualquer tentação de autossatisfação ou de ilusão, «ninguém, como Camões, desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exatamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares». No essencial, «ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa». Eis a legitimidade própria para considerar Camões como um verdadeiro símbolo, em que o sentido crítico sobreleva quaisquer argumentos de oportunidade. José Bento insistia, aliás, em que Sena não se ficava pelo meio – “procurava sempre a totalidade”. Porventura sem querer, ou querendo-o intimamente, Jorge de Sena deixou nesse dia a mensagem fundamental de um grande poeta e ensaísta moderno. Aliás, em “Sinais de Fogo”, obra-prima, apesar de incompleta, que começa no tempo da guerra de Espanha, sentimos “a tensão existencial entre conhecer e o agir, na vida social, amorosa, sexual, desencadeia a criação poética”, como disse João Fazenda Lourenço. E de facto raramente se terão harmonizado, numa mesma personalidade, o poeta, o dramaturgo, o ficcionista, o crítico, o ensaísta, o erudito, o investigador, o historiador da cultura, o professor, o engenheiro, o cidadão do mundo. E, como afirmou ao grande amigo Ruy Cinatti, aos 22 anos, “Viver é coisa de mar, cheira a horizonte. Que mais é preciso? Só é preciso o que existe – eu é que exijo tudo o que existe”. E o discurso da Guarda remata com o apelo para Camões: «Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E esquecermos que Portugal como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida».
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença