A VIDA DOS LIVROS
De 12 a 18 de agosto de 2024
Angel Marcos de Dios é autor de “Unamuno – Textos Fundamentais sobre Portugal”, conjunto de reflexões fundamentais para a compreensão da importância da nossa cultura.
UM ENCONTRO NATURAL
“Que terá este Portugal – penso – para assim me atrair? Que terá esta terra, por fora curta e branda, por dentro atormentada e trágica? Não sei; mas quanto mais volto, mais desejo voltar. Cheguei a acreditar que estes extremos ocidentais deram-se as mãos aos extremos orientais, como a Índia, e chegaram ao triste cerne da sabedoria, à compreensão do carácter vão de todo o esforço, parecendo prevalecer a lúgubre sabedoria do Eclesiastes”. Era Miguel de Unamuno quem o afirmava, como um dos mais entusiastas do encontro ibérico. Como diz o meu amigo Angel Marcos de Dios, o maior lusófilo espanhol de todos os tempos, permite-nos compreender as nossas diferenças e complementaridades (Cf. Unamuno – Textos Fundamentales sobre Portugal – Luso-Española de Ediciones, 2016). A língua, a história, a cultura…, paralelamente, encaminham-nos no sentido de um destino comum. E assim, o salmantino diz que desde que começou a estudar o português – a linguagem, e sobretudo, desde de que começou a viajar por Portugal interessou-lhe a ligação cultural mútua de ambos os povos, o castelhano e o português. E dava dois exemplos, o da História da Civilização Ibérica de Oliveira Martins, que Menendez y Pelayo enaltecia como de leitura obrigatória para os espanhóis e a obra de D. Francisco Manuel de Melo sobre a guerra da Catalunha, enquanto clássico em castelhano e clássico em português como demonstração de um destino de convergências, deixando claro que as diferenças e as preocupações comuns servem para caracterizar as virtualidades de uma vocação de humanismo universalista.
“Para conhecer uma pátria, um povo, disse ainda Unamuno, não basta conhecer a sua alma – ou o que designamos como sua alma – o que fazem e dizem os seus homens; é mester conhecer também o seu corpo, o seu solo, a sua terra”. A paisagem é fundamental para compreender a essência de uma cultura. E lembramos com entusiasmo os dias passados nas faldas do Marão com o amigo Teixeira de Pascoaes. “Passei em sua casa, em casa de seus pais e irmãos, toda a bondade e carinho hospitaleiros, dos dias mais aprazíveis, mais gratos e mais fecundos da minha vida, saí dali cheio de gratidão e de gozo e nada ainda lhe disse (…). Mas quero que saiba, que saibam pais e família, que saibam todas as pessoas que me fizeram gostar da paz e encanto desse lugar que não fez passar em vão o reflexo das águas do Tâmega no meu coração”. Aliás, confirmaria tudo isto a Maragall – “Aonde anseio regressar depressa é a Portugal. Que dias passei em Amarante! Lugar delicioso!” Só estas palavras dizem tudo.
OBRA DE AMOR E DE CULTURA
“É uma obra de amor e de cultura fazer que Portugal e Espanha se conheçam mutuamente. Porque conhecer-se é amar-se. O conhecimento engendra amor e o amor conhecimento. São no fundo uma só e a mesma coisa vista por fora e por dentro” – diz noutra carta a Pascoaes. As amizades com Guerra Junqueiro e Manuel Laranjeira são fundamentais para compreendermos Unamuno. É uma atitude pessimista que prevalece, mas o Cristo português de Junqueiro é mais expressivo do que o castelhano, estando disponível para se juntar à festa, em lugar de manter a atitude de sofrimento, do mesmo modo o mestre de Salamanca se admira pela multiplicação em Portugal de nichos invocando as almas do purgatório. Há, assim, uma solidariedade entre tempos e gerações diferentes. É o paradoxo do português que permite a permanente coexistência da bela dimensão lírica e da história trágico-marítima, tudo isto sem esquecer o carácter contraditório e mofeiro do escárnio e maldizer. E então no mundo literário, Camilo Castelo Branco surge autenticamente ibérico: Falando do romancista de “Amor de Perdição”, Unamuno confessava que Junqueiro dizia que a alma tormentosa e apaixonada do romancista era mais espanhola que portuguesa, e que muitas vezes se assemelha o cariz fúnebre de Quevedo. Nele o romance parecia a novela de paixão amorosa das mais intensas e profundas que se tinham produzido na Península em livros representativos da alma ibérica.
QUE SOLIDARIEDADE?
Por outro lado, e regressando a Pascoaes, dizia com um misto de ironia: “Depois de Cervantes, é o seu génio o que tem mais força de expressão ibérica e mais poder de absorção. Se houvesse muitos escritores de Espanha com idênticas qualidades seria tal coisa um perigo para a nossa independência”. O S. Paulo de Teixeira de Pascoaes é um exemplo especial. Nas diferenças, há pontos de convergência. E uma lista de génios em diálogo surge com naturalidade a alimentar o Sentimento Trágico da Vida – Antero, Herculano, Junqueiro, soror Mariana, João de Deus, D. Sebastião, por contraponto a Dom Quixote, Santa Teresa ou Goya, este ungido por Dostoievski. E pode dizer-se que ninguém melhor define a essência do património cultural do que Unamuno: “Quando para os vivos apenas se construíram cabanas de palha ou de terra, que as intempéries destruíram, já se levantavam túmulos aos mortos, e a pedra encontrou emprego nos sepulcros, antes de servir nas habitações dos vivos. As casa dos mortos – as dos mortos e não as dos vivos – venceram os séculos pela sua solidez; não as estalagens, mas as moradas permanentes”.
Por um momento, lembramo-nos do gabinete de Miguel de Unamuno na Universidade de Salamanca e recordamos os dias agitados do fim da sua vida, ameaçado pelo grito tremendo: “Abajo la Inteligencia! Viva la Muerte!”. E silenciosamente numa fila discreta de fotografias, como heróis num altar, encontramos seis portugueses, entre a expressão estoica e a proclamação da vida e da sabedoria, da poesia e da história: Herculano, Oliveira Martins, Antero de Quental, João de Deus, Camilo Castelo Branco e Soares dos Reis. E Angel Marcos de Dios, como cidadão de pensamento: recorda-nos o que o mestre deixou dito na pedra: porque a Europa necessita da dimensão moral ibérica, plural, legitimada pela liberdade, pela vontade, pela justiça, pela dignidade e pela democracia. “Muitas coisas e as mais íntimas da minha Espanha não cabe compreendê-las – nem consenti-las – se não se conhece Portugal, que está unido ao resto da Península Ibérica em parte pelos seus espinhaços rugosos, mas sobretudo pelos grandes rios que enlaçam ambos os países atravessando-os”.
Guilherme d'Oliveira Martins