A VIDA DOS LIVROS
De 26 de agosto a 1 setembro de 2024
Ao lermos o “Diário Incontínuo” de Mário Cláudio (D. Quixote, 2024) apercebemo-nos da vida heterogénea do escritor.
No Diário Incontínuo de Mário Cláudio (D. Quixote) encontramos fragmentos, confidências e inconfidências. “As personagens da chamada ‘vida real’, e ao contrário das da ficção, acabam inexoravelmente por transcender o destino que se lhes previu. Daí que não seja necessário averbar-lhes com minudência as andanças, não vá instalar-se no texto a incoerência, isto porque o itinerário que desenham escapa a todas as tabelas”. O diário é um modo de acompanhar a vida real, por isso permite antever destinos e imaginar enredos. Não se trata neste caso de um percurso exaustivo, mas de apontamentos significativos. Não temos, por exemplo, os fastos do serviço militar, os períodos que bordejam a Revolução de Abril ou o tempo da escrita dos primeiros romances, bem como a permanência no Reino Unido ou parte da estada em Veneza… Mas nesses pontos, os leitores do romancista são levados a lembrar os testemunhos ilustrativos do inconfundível Tiago Veiga e de Astronomia. Eis como nos deparamos com as personagens da “vida real”, que constituem, no fundo, a matéria-prima da ficção, a começar no prolífero autor, que é o que mais importa quando nos embrenhamos nos mistérios da narrativa.
COMPRA AUSPICIOSA
Quando testemunhamos em Salisbury a compra auspiciosa do primeiro volume de Modern Painters de Ruskin, numa convergência natural com o mundo das artes, também recordamos William Beckford, regressado de Portugal, com memórias inesquecíveis. É, porventura, a melhor crónica de um viajante estrangeiro sobre este país à beira-mar plantado. E inesperadamente deparamo-nos com a paixão do autor pelas adoráveis histórias de Beatrix Potter. O rol de lembranças vai-se sucedendo: a morte de Carlos de Oliveira, a presença de Graça Lobo no esteio de António Nobre, e a recorrente leitura de Eugénio de Andrade e de Vasco Graça Moura e do seu mundo. E Veneza surge como a cidade de todo o mistério e magia. “É claro que a maior dificuldade nesta cidade, consiste em descobrir alguns momentos – o Giovanni Bellini, de San Zaccaria; o Giambattista Tiepolo, na Scuola del Carmine; o Cima da Coneglieano, na Chiesa del Carmine – contra uma horda de turistas que só pretende conquistar os grandes lugares”. E a virtude da viagem é sempre acompanhada pelo desejo do regresso. As recordações misturam-se nostalgicamente entre a lembrança da partida e da chegada. E estamos sempre gostosamente a regressar a Venade, à Casa da Ramada. “Eis-me nos campos de Venade, por entre uma nuvem enorme, de insetos rumorejantes, que muito agradaria ao ouvido de Bartók, e que surgiu, pelo cair da tarde de hoje, logo após uma curta trovoada e um aguaceiro brevíssimo”… “A Casa da Ramada, as estrelas por cima do telhado, as folhas largas da videira, tudo me pertence, afinal”.
UM ALBUM FOTOGRÁFICO
O livro é um extraordinário álbum fotográfico, com relatos familiares, com a presença de amigos, com animais de estimação, visitas diversas, exposições, leituras de livros e recordações de viagens e com a beleza dos pequenos instantes. Desfilam Manoel de Oliveira, José Rodrigues, Carlos Avilez, António Lobo Antunes e Gonçalo M. Tavares demonstrando que a cultura pressupõe sempre a conversa e o saber ouvir. Uma afirmação de Chateaubriand no segundo volume das Memoires d’Outre-Tombe atrai especialmente o escritor: “Felizes aqueles em quem a idade tem o efeito do vinho, e que perdem a memória quando estão saciados de dias”. Esta a chave das lembranças e das narrativas. A memória apenas se perde quando se consumam os projetos, mas a lembrança não pode sucumbir enquanto a esperança persistir. Numa visita a Agustina, os temas de conversa são múltiplos: o Brasil, a Europa, os judeus e os arianos, “os poderes secretos, num espírito larguíssimo de conciliação e fervor. Cita-me de Paracelso, que lê agora duas frases. ‘A fé é o oculto’, a primeira; ‘Não sou da raça das violetas’, a segunda, que diz gostaria de vir a usar numa autobiografia que escrevesse. Oferece-me um exemplar da tiragem especial de Sebastião José, com uma belíssima dedicatória. Acontece isto exatamente no dia em que concluo a leitura da edição normal, e me pergunto como resistir à grandeza desta prosa inarticulada, tanto mais saborosa como descosida, de modo igual àquilo que faz de um pudim deformado iguaria maior do que, tantas vezes, o pudim escorreito”. A genialidade de Agustina está exatamente nesse culto da aparente imperfeição. É o culto do paradoxo que permite ir além do lugar-comum. Em cada afirmação inusitada está a razão de ser de uma explicação, que permite entender o que no íntimo caracteriza uma personalidade e explica uma atitude. E em Sebastião José encontramos a síntese de uma personagem que pôde lançar pistas novas no sentido de uma sociedade reformada, pelo encontro da razão e da desrazão. E Agustina encontra-se num terreno de eleição, desenhando uma figura plena de determinação e perversidade.
A VIZINHA GALIZA
Em plena Galiza, em Ferrol, Mário Cláudio apercebe-se de que os ventos da história, em geral são bem menos frescos do que uma brisa poderosa carregada de maresia que varre a retilínea Rua de Dolores. Do ditador Franco já não se fala, antes permanece uma placa de bronze que refere José Saramago e Gonzalo Torrente Ballester, outro amigo, este sentado à direita de Cervantes, para glória das letras ibéricas. Mas, este Diário Inconcluso faz confluir a realidade e a ficção, e em 27 de abril de 2010 lemos a anotação cronológica, rigorosa e fantasmática, como se de realidade efetiva se tratasse (e quem o duvida?): “suicida-se Tiago Veiga na sua Casa dos Anjos em Venade, Paredes de Coura, isto é, aos 7 de Agosto de 1988. Revendo as provas tipográficas de Do Espelho de Vénus, de Tiago Veiga, dou-me conta de como pode a poesia consolar-nos quando a prosa apenas nos satisfaz”. Talvez possamos dizer que nesta anotação se encontra a razão de ser da incontinuidade deste diário, cuja leitura e compreensão nos obriga a encontrarmo-nos com o romancista que faz da escrita a companhia permanente da vida. E não esqueço o encontro que tivemos em Paredes de Coura com o escritor a recordar-me raízes comuns da minha própria ancestralidade. Por isso, encerro esta recensão, citando Etty Hillesum, morta num campo de concentração: “Há a cólera da revolta perante uma injustiça, e a cólera de a termos causado. Eu vou ajudar-te, meu Deus, a não te extinguires em mim. Desde que a totalidade esteja perdida, tudo se torna arbitrário. Há sofrimento dos dois lados de todas as fronteiras, e é preciso rezar por todos”.
Guilherme d'Oliveira Martins