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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 9 a 15 de setembro de 2024

 

Falamos hoje de Nuno Bragança, autor de “A Noite e o Riso” (Moraes, 1969) e de José Sesinando Palla e Carmo e sobre a importância literária da Ironia.

 

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LEMBRAR A IRONIA

No mundo das crónicas, relembrado no último JL, merecem recordação especial dois exemplos sobre a necessidade de humor, capaz de valorizar o que marcou a exigência do espírito, que Jorge Luís Borges considerava ser essencial para que a imaginação pudesse dar cor à vida. Nuno Bragança recordava um episódio bem conhecido na paisagem popular portuguesa. Em duas palavras recordamo-lo. Numa noite de santos populares, aqueceram os ânimos e uma cena de pancadaria grossa estava para acontecer. “Subitamente, um homem muito alto abriu caminho ao encontrão, até alcançar o epicentro da contenda. Aí chegado, ele soltou um ‘Alto aí!’ de autoridade imensa. A reforçar o berro, meteu a mão no bolso interior do casaco, enquanto fuzilava os circunstantes com um olhar de algemas. As pessoas imobilizaram-se, mesmo as mais acaloradas. E toda a gente aguardou, resignada, que o desconhecido exibisse um crachat da Polícia.” O episódio vinha a propósito da opinião de um camionista italiano de longo curso, segundo o qual os portugueses eram muito tristes, mostrando-se abatidos no dia-a-dia. Isso desagradava-o. Daí a recordação da história. “Sucedeu que a mão oculta no casaco reapareceu empunhando uma gaita de beiços, que o homem logo meteu na boca para começar a tocar o fandango. Estalou então uma gargalhada geral, seguida de uma salva de palmas. E a zaragata que estava prestes a estragar tudo não se deu”.

 

Moral da história: para o autor de A Noite e o Riso (que deve ser lembrado e lido) o que nos falta é o espírito desse homem da gaita. Falta-nos explorar a “face oculta da lua” e a capacidade de rir e desarmar com esse riso o drama de uma vida de sobrolho carregado. É o “país relativo” de Alexandre O’Neill que temos de ter mais presente. Mas o riso de que aqui se fala não é o riso contra ou o riso à custa de alguém. O riso que salvou o arraial foi o da propensão para o humor puro, o tirar partido da caricatura ou do picaresco, que encontramos no nosso anedotário, e que António Tabucchi encontrava no paradigma do “Pranto de Maria Parda” de Mestre Gil. Somos, de facto, uma simbiose cultural da lírica, da tragédia e do escárnio e maldizer, que o mesmo é dizer, da ironia. A atitude do homem da gaita foi, afinal, um gesto de sabedoria. E Nuno Bragança diz que o homem conseguiu mostrar que aquela agressividade era evitável e desnecessária. “Mas tal só foi possível graças à resposta que o seu gesto obteve, isto, que aconteceu num beco de Lisboa, não será possível no beco nacional?”. E vem, por associação, à baila o verso: “País purista a prosear bonito / a versejar tão chique e tão púdico. / enquanto a língua portuguesa se vai rindo, / galhofeira, comigo”. De facto, o reparo de Nuno Bragança ou o retrato português de O’Neill põem-nos perante a necessidade de nos compreendermos melhor, entre o humor e o drama, tal como somos: “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém / perdigueiro marrado e sem narizes nem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”.

 

QUE ESCRITURALISMO?

Se falo do humor e voltando ao terreno das crónicas, lembro outro saudoso cronista do JL, que deve ser relembrado pelo domínio da língua e pela inesgotável capacidade de usar as palavras como modo de fazer dos segundos sentidos a suprema descoberta da ironia. José Sesinando Palla e Carmo (1923-1995) foi escritor, ensaísta, crítico, tradutor e especialista em literatura anglófona. A sua crónica designava-se “Escrituralismo”. É inesgotável a lista dos seus jogos de palavras. A sua escrita e as suas obras merecem ser mais bem conhecidos... Não resistimos a dar uma breve lista – recordando as suas impagáveis colunas... Saborosos trocadilhos, numa imaginação fertilíssima.

 

Eis alguns exemplos: «Na serra da Estrela, o povo é quem mais ordenha». «O solitário não é solidário».  «Foi Copérnico quem primeiro viu a estrela pular». Mas como pensam os que não se conformam? «Os terroristas raciocinam por explosão de partes...» E musicalmente como distinguimos o que ouvimos? «O Adágio de Albinoni, depois de muito tocado na rádio, tornou-se um adágio popular». E até podemos pedir emprestadas ideias ao Alexandre O’Neill, num caso em que o Metropolitano não achou graça ao trocadilho: «Vá de Metro, Satanás!». E se nos metemos na teologia, podemos perceber que «Os conferencistas ateus não têm Papas na língua». E diz verdade o vidente? «É vidente: mente! Evidentemente». E sobre endereços de correio? «Você sabe onde é que o Alberto moravia?» E chegamos ao melhor automobilismo: «Quem não tem Rolls, rói-se». E quando se fala de literacia? «Os tecnocratas estão classificados por ordem analfabética»... Mas nem sempre a aritmética funciona, sobretudo quando se trata de pares: «Tudo leva a crer que os doze pares de França quando visitaram Portugal pernoitaram na Casa dos 24»... E se chegamos à alta literatura as coisas fiam mais fino: «Por não querer vestir-lhe a pele, o escritor Lobo Antunes vai passar a assinar apenas Antunes (isso é o que se chama uma lobotomia)». E na gastronomia há que ter cuidados: «Sanduiches de casa não fazem milagres». Também nos sentimentos, há que compreender que «Desgostos não se discutem».  E até Cervantes não escapa à desconstrução: «Dom Quixote comia sem guardanapo e enchia a roupa de nódoas; por isso lhe chamaram Dom Quixote de la Mancha». E quando tanto se fala de impostos e de Orçamento: «Nem a morte escapa aos impostos, por isso se fala de taxa de mortalidade», mas também dizemos “Orçaminto!». E voltando à literatura e ao mundo da escrita: «De que país veio o José Blanc? De Portugal». Mas José Sesinando vivia deveras preocupado, quando se tratava de cumprir os ditames do médico de família: «A julgar pelos impressos que acompanham todos os remédios que tomo, sofro de uma doença chamada Posologia».

 

Em breve o Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian apresentará uma extraordinária mostra de Fernando Lemos, o artista multifacetado que ombreia com os maiores mestres mundiais do surrealismo na fotografia e no grafismo. Aí podemos encontrar bons exemplos sobre o modo de ver a cultura como um permanente encontro entre a imaginação e a ironia, enquanto ilustração do que Nuno Bragança e José Sesinando nos ensinaram. E se falámos do poeta, ensaísta, crítico musical e meteorologista José Blanc de Portugal, fundador dos “Cadernos da Poesia” com Ruy Cinatti e Tomaz Kim, atemo-nos á legenda que Lemos apôs à fotografia: “Escuta o Vento da Poesia e o Sopro da Música”. Eis como a ironia permite compreender melhor a realidade. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins