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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 18 a 24 de novembro de 2024


Regressados de Marrocos, em mais uma viagem do ciclo “Os Portugueses ao Encontro da sua História”, recordamos hoje a presença portuguesa em Mazagão, hoje El-Jadida.


© Centro Nacional de Cultura


OS NOSSOS VIZINHOS DO SUL
Marrocos está muito perto, mas é muitas vezes esquecido pelos portugueses. No entanto, não podemos compreender a nossa cultura ancestral e a abertura e o diálogo sem darmos atenção aos nossos vizinhos do sul, com quem temos tantas afinidades. Não esqueçamos, por isso, Ibne Batuta (1304-1377) um extraordinário viajante, estudioso e explorador, que entre 1325 e 1353 atravessou o norte de África até à Península Arábica, o Iémen, as margens do Nilo, a Ásia Menor, o Mar Negro e a Rússia, o Afeganistão e a Índia, até à Indonésia e à China. É fundamental considerar a sua obra, ditada a Ibne Juzai, intitulada “Um Presente para Aqueles que comtemplam as Maravilhas das Cidades e as Maravilhas da Viagem”.  Foi sem dúvida o maior viajante da Idade Média e o seu testemunho é muito importante, como o do “Livro de Marco Polo”, trazido para a Corte portuguesa pelo Infante D. Pedro, duque de Coimbra, indispensável para o plano das nossas navegações. Não é possível visitar e compreender o Reino de Marrocos sem o conhecimento e o contacto com as raízes culturais partilhadas pelos nossos povos.  Partindo de Ceuta o primeiro destino de Além-Mar dos portugueses encontramos uma costa atlântica bem nossa conhecida, de pescadores e navegadores, que o algarvio Gil Eanes ajudou a conhecer melhor. De El-Jadida a Agadir, passando por Safi e Aguz, temos as marcas da presença e de um convívio de mais de dois séculos, feitos de contactos mútuos, de intercâmbio cultural e também de conflitos bélicos, naturais em relações de vizinhança. Este Ocidente, o Magrib al Aksa, onde o sol se põe, que se associa ao Garb do Al Andaluz, o nosso Algarve, foi na pré-história a passagem do Homem saído do berço africano para colonizar a Europa, porto de chegada de fenícios e cartagineses, que organizaram o embrião das cidades costeiras atuais. Durante cinco séculos, o território português integrou-se nessa matriz e os dois povos conviveram pacificamente e em conflito, sob a ação das cruzadas tardo-medievais, bem como da presença de Almorávidas e Almóadas. Entre cristãos do norte e mouros do sul, há uma história comum que hoje merece ser valorizada, num contexto de indispensável diálogo ente culturas e religiões com diferenças e uma herança comum.


UM PATRIMÓNIO EXTRAORDINÁRIO
O conhecimento do património cultural de influência portuguesa exige uma partilha de experiências e uma atitude aberta de entendimento da importância do culto pelo património comum da humanidade. Quando o Centro Nacional de Cultura leva a cabo no sul de Marrocos mais uma jornada do ciclo “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”, iniciado por Helena Vaz da Silva, merece referência especial o caso de Mazagão, El-Jadida, que permite compreendermos a diversidade das influências, o respetivo intercâmbio e as repercussões quanto ao diálogo cultural, presente e futuro, num tempo de tantos fechamentos e incompreensões. Hoje, a praia de El-Jadida é frequentada pelos habitantes de Marraquexe e de outras cidades do interior, mas afirma ainda a memória antiga da presença portuguesa na costa marroquina. Em 1506 Jorge de Melo solicitou ao rei D. Manuel licença para construir um forte, o que o rei aceitou, dando-lhe capitania da futura fortaleza “de juro e herdade para todo o sempre”. Contudo, não foi possível concretizar tão alto desígnio, por falta de recursos. Só em 1542 se concluiu a obra, sob a direção de João de Castilho, mestre de obras de El-Rei, com João Ribeiro, seguindo a traça de Benedetto de Ravena. Em 1562, a praça era, porém, um constante pesadelo, pois os mouros quase todos os dias a assaltavam. E apesar de Mulei Mohamed ter cercado a fortaleza durante dois meses, não logrou conquistá-la, em virtude da qualidade da engenharia utilizada por Ruy de Sousa Carvalho. Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis” fala da importância da praça pela grande riqueza da região na pesca, nos campos de cereais e no muito gado. No interior da cidadela, as ruas ainda guardam alguma da antiga toponímia, e neste magnífico conjunto situa-se a importante cisterna, construída no centro do corpo fortificado. Tal cisterna é um espaço quadrangular com mais de mil metros quadrados, coberto por abóbadas de nervuras apoiadas em doze colunas dóricas, constituindo quatro naves enquadradas por grossas paredes com cerca de três metros de espessura. As abóbadas e o piso são de tijoleira, tendo um tanque de limpeza. A alimentação da cisterna fazia-se por caleiras de aproveitamento das águas pluviais vindas do terraço superior e pelo abastecimento indireto a partir dos terrenos próximos. O modelo é em tudo semelhante ao da cisterna do Convento de Cristo em Tomar.


PARTIDA PARA O BRASIL
Mazagão é o único bastião português “moderno” em Marrocos, onde há uma articulação efetiva entre a artilharia e a arquitetura. Trata-se de um modelo inexpugnável, como encontramos nos fortes do Golfo Pérsico. O bastião do Anjo da Guarda ou o de S. Sebastião virado a noroeste tem um campo de ataque de 360 graus. E estamos perante uma verdadeira cidadela apta a abrigar uma população desprotegida com grande eficácia. A história de Mazagão é muito rica e termina com o grande cerco de 1768, perante o qual o futuro Marquês de Pombal ordenou, por falta de condições de permanência, a evacuação da população, que ocorreu em março de 1769. Os moradores perderam todos os seus bens por não poderem transportá-los, e tiveram de incendiar todos os móveis e roupas antes de se dirigirem para as naus. As pedras de ara das igrejas foram lançadas ao mar do alto do baluarte do Anjo, depois de quebrados. Os livros paroquiais e os arquivos do tesouro público foram, porém, preservados e trazidos, mas os bastiões da fortaleza foram armadilhados com barricas de pólvora. Os refugiados de Mazagão, cruelmente tratados, ficariam em Lisboa até setembro de 1769 e foram destinados à Província do Grão-Pará, onde nas margens Norte do Amazonas, no atual estado de Amapá fundariam Vila Nova de Mazagão, sendo acolhidos no mosteiro dos Jerónimos em Belém e depois na Quinta Velha, alimentados pela Coroa, mas mal assistidos, tendo “morrido mais de trezentos da doença de saudade”, segundo as crónicas da época.


Mazagão fica, no fundo, como um símbolo de fortificação emblemática, de cidadela exemplar, de construção marcante e de elemento patrimonial significativo do encontro de culturas. A permanência no Brasil desta memória projeta numa lógica global o património de influência portuguesa no mundo – pelo que independentemente das vicissitudes históricas constitui um elo referencial inserido numa das rotas da língua portuguesa.        


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença