Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 2 a 8 de dezembro de 2024


No centenário de Mário Soares lembramos a amizade com António Alçada Baptista e a fundação de “O Tempo e o Modo”.

 


Regresso sempre com muito gosto ao magnífico diálogo biográfico sobre uma vida plena entre Maria João Avillez e Mário Soares, agora reeditado pela Imprensa Nacional. E permito-me recordar o momento em que o futuro Presidente da República integrou o corpo da revista “O Tempo e o Modo”. Foi um momento especial, em que se nota uma certa premonição sobre a institucionalização da democracia. Aliás, a capa do primeiro número da revista é um raro prenúncio do futuro de liberdade que onze anos depois se tornou realidade. Mas comecemos pelo início dessa história, citando o próprio Mário Soares… “Só conheci o Senhor D. António (Bispo do Porto) (…) quando ele se encontrava já no exílio, em Roma, para participar no Concílio Vaticano II. Depois vim a encontrá-lo em Lourdes e, mais tarde em Tormes, perto de Salamanca. Mas isto já no consulado de Marcelo Caetano. Logo que apareceram os chamados ‘católicos progressistas’, compreendi a sua enorme importância política para o combate a um regime que se reclamava do catolicismo e que, pelo menos na sua fase inicial, tivera a bênção da Igreja. Nessa época, tive grande contacto com o Francisco Lino Neto, que conheci durante a campanha de Delgado. Antes, havia já conhecido o Francisco Sousa Tavares, a Sophia, o padre Felicidade Alves. O António Alçada Baptista, conheci-o quando era ainda proprietário da Livraria Morais, e tive contactos com ele desde os tempos em que era advogado. (…) Achei que o corte de setores significativos da Igreja portuguesa com o regime salazarista tinha uma enorme importância estratégica, porque retirava ao regime o seu principal argumento: dizer que a Oposição Democrática era constituída tão-só por comunistas e por velhos republicanos ultrapassados que, por despeito faziam o jogo dos comunistas”. De facto, no princípio dos anos sessenta, algo muda, é o tempo do Concílio Vaticano II, sob o signo renovador do grande Papa João XXIII. E um dia, conta Mário Soares, António Alçada pergunta-lhe se queria participar numa revista de cultura que desejava fundar, “O Tempo e o Modo”. “Não hesitei um momento, apesar da minha posição de ‘laico, republicano e socialista’, que ele conhecia. Disse logo que sim”. Nesse tempo, tentou empurrar o grupo fundador no sentido da democracia cristã. Falou com Giorgio La Pira, síndaco de Florença, e outros democratas-cristãos, mas sem sucesso. “Se os católicos tivessem ajudado pelo seu lado, teria sido muito mais rápido e fácil. Não quiseram, por razões de coerência ideológica, que, aliás, compreendo”. Se tivesse havido esse passo, teriam sido criadas outras condições para um abalo mais rápido da situação. Francisco Sousa Tavares foi o único que compreendeu a ideia de Mário Soares, ele que se envolvera no golpe da Sé com Jorge de Sena. Mas nessa altura ainda era monárquico, “o que atrapalhava um pouco as coisas”. Mesmo assim, entrou em contacto com o grupo de monárquicos democratas, desiludidos com o fracasso do Integralismo Lusitano, cujos melhores acabaram todos anti-salazaristas confessos, de Luís Almeida Braga a Vieira de Almeida – estabelecendo-se ainda a grande amizade com Gonçalo Ribeiro Telles.


Para Soares, o fundamental desse encontro e dessa abertura era dar credibilidade à Oposição Democrática, alargando-a para além do que Manuel de Lucena designava como um “grupo de velhos”, dividido entre o “reviralho da baixa” e a “social-democracia”. Havia que levar a água ao seu moinho, sentindo-se satisfeito por estar no grupo de “O Tempo e o Modo” – “janela aberta para outra geração e outra realidade”. E Nuno Bragança compreendeu bem esse entendimento. Porém. se alguns amigos o acusavam de andar “metido com os católicos”, Mário Soares respondia: “Não se preocupem! Sei o que quero e o que estou a fazer”. E Francisco Salgado Zenha concordava inteiramente. Em 1963, houve uma violenta diatribe que envolveu Sottomayor Cardia, então ainda no PC, contra uma “aliança encapotada” entre os católicos e a social-democracia, mas tudo seria passageiro e a coerência de Mário Soares não saiu abalada. E Cardia entraria no PS. Ficou, contudo, sempre uma profunda admiração e amizade com António Alçada – “uma figura humana encantadora e um grande escritor. A política sempre o interessou secundariamente, como mero imperativo ético. (…) arruinou-se alegremente, com a Livraria Morais, O Tempo e o Modo e a revista Concilium. Mas realizou uma obra extraordinária! (…) A par de Lino Neto, de Teotónio Pereira e de Sousa Tavares, desempenhou um papel corajoso e importantíssimo na tentativa de separar a Igreja do salazarismo. Como, décadas antes, tinham ensaiado os irmãos Alves Correia, o grupo Metanoia, com Ferreira da Costa e João Sá da Costa e o Professor Vieira da Luz, entre outros”. Quando realizou a entrevista com Marcelo Caetano, foi criticado e incompreendido. “Não foi grave, mas pagou-o caro, depois do 25 de abril. Alguns apressados ‘revolucionários’ voltaram-lhe então a cara, com muito mais oportunismo do que convicção. Sempre o estimei muito e tive ocasião, nessa época difícil, de lho demonstrar. Consolidámos então uma amizade muito grande, que perdura (estava-se no ano de 1996), e a que, pelo meu lado, se junta a admiração muito sincera pelo Homem, pelo maravilhoso contador de histórias e pelo escritor”. Sou pessoalmente testemunha disto mesmo sem qualquer dúvida.


No primeiro número de “O Tempo e o Modo” (janeiro de 1963), Mário Soares tratou do tema “Oliveira Martins e a Questão do Regime”. Mais do que um ensaio histórico, tratou-se de situar a génese do republicanismo em 1910, perante a crise do final do regime monárquico. Não poderiam, porém, confundir-se os aspetos ideológicos dessa conjuntura com as novas circunstâncias perante o salazarismo. Por isso, salientou a proximidade socializante de António Sérgio e Oliveira Martins, demarcada de uma lógica jacobina. Contudo, Mário Soares pensava na conjuntura do início dos anos sessenta, com a guerra colonial a despontar, a questão social a desenvolver-se e a renovação religiosa a ter lugar – como salientei a propósito de D. Alexandre Nascimento. Por isso, distinguia a diferença dos tempos e considerava as razões que levaram à vitória republicana, perante a incipiência socialista. “Só a história (que está por fazer!) das ideias vistas no seu contexto económico e social, nos poderia dar resposta para este problema” (quem teria razão sobre a resposta à crise do regime do princípio do século XX – Oliveira Martins, Antero e Eça contra Teófilo Braga ou Junqueiro?). “No entanto, apenas como solução provisória – seja-me lícito chamar a atenção (dizia M. Soares) para o seguinte facto sintomático: a adesão popular inegável que encontrou a doutrinação republicana, especialmente a partir do centenário de Camões, em 1880 – adesão que sobretudo avulta em confronto com o fraco eco que respondeu, mesmo nas massas operárias, às aspirações socialistas dos nebulosos doutrinários do século XIX! Não nos inculca esta fácil constatação – que resulta, aliás, de dados incontroversos – o problema da viabilidade do socialismo numa sociedade retrógrada como a do nosso século XIX e o da sua difícil articulação aos anseios mal definidos e às necessidades vitais do português comum?” E havia que compreender a existência de diversas correntes republicanas, devendo ficar claro que a questão do regime se tornava num “autêntico problema de sobrevivência nacional. É condição prévia de qualquer esforço renovador”. Nestes termos, a escolha da “questão do regime” para tema era um alerta para a urgência da construção da democracia, representada pela tentativa da geração de 1870, e em particular de Oliveira Martins para a criação de uma vida nova. A alusão histórica funcionava como uma verdadeira metáfora para os novos tempos, sem criar suspeitas para a censura, que tão duramente atingiria a nova revista. E o ponto de encontro para esse debate era uma iniciativa de ideias que abria caminhos novos, em nome de uma Oposição democrática plural, onde havia, além das oposições tradicionais, católicos inconformistas, que punham em causa o eurocentrismo e chamavam a atenção para a descolonização e para a autodeterminação e independência dos povos africanos, que davam importância ao Estado Social e aos movimentos emancipadores da sociedade e que estavam distantes do velho anticlericalismo. Aliás, a finalizar o texto que referimos, uma nota desenvolvida citava Bernardino Machado sobre a necessidade da tolerância em matéria religiosa. Por outro lado, a presença de um jovem dirigente estudantil, como Jorge Sampaio (também ele futuro Presidente da República), com o título inequivocamente atual, “Em torno da Universidade”, não poderia ser mais significativa. A renovação geracional era (e é) fundamental e a prioridade educativa exigia-se.


Assim, a presença de Mário Soares é, a vários títulos, marcante, como o tempo viria a demonstrar amplamente. Se politicamente a construção da democracia resultou de um compromisso complexo a partir do Movimento da Forças Armadas e do seu desenvolvimento e consolidação, tornando o 25 de abril uma data emblemática (que Francisco Sousa Tavares comparou ao primeiro de dezembro de 1640, do alto da guarita do Largo do Carmo), incompreensível sem o entendimento do processo dinâmico que se lhe seguiu e que permitiu a aprovação da Constituição da República fruto de dois grandes compromissos, envolvendo as Forças Armadas (e lembramos a coerência de Ernesto Melo Antunes) e os partidos políticos, que levaram ao respeito escrupuloso, apesar das naturais vicissitudes, por uma transição do poder militar para o poder civil democrático. Como dizia o primeiro editorial da revista, “o mal-estar geral e não localizado” existente entendia-se “como um estado de crise de consciência coletiva, mas partimos certos de que não enunciaremos todas as perguntas, nem estamos seguros de que as respostas que daremos serão as melhores”. A participação de Mário Soares e Salgado Zenha nesse projeto, que, seguindo a lição de Emmanuel Mounier, deveria envolver crentes e não crentes, constituiu uma espécie de premonição e de profecia – antecipando a institucionalização de uma democracia plural centrada numa cidadania inclusiva pela qual tantos cidadãos se bateram em nome, afinal, do que Mário Soares designou como uma questão de sobrevivência nacional. 


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença