A VIDA DOS LIVROS
De 9 a 15 de dezembro de 2024
Publicamos a intervenção feita no Panteão Nacional, em 7 de dezembro de 2024, no encerramento das comemorações do centenário da morte de Guerra Junqueiro.
Lembrar o poeta e o cidadão Abílio Guerra Junqueiro significa, antes do mais, situá-lo na História da Cultura Portuguesa, no exato lugar a que tem direito. Sendo uma figura controversa, a verdade é que não podemos ser-lhe indiferentes, compreendendo a grande admiração que lhe votaram várias gerações dos seus contemporâneos. Como personalidade multifacetada, a verdade é que é indiscutivelmente um grande nome, quer pelo talento intelectual e literário, quer como cidadão empenhado na defesa dos ideais da República e da Pátria. Ao longo da vida, pôde afirmar-se como militante da cultura crítica e do domínio da palavra, sendo pioneiro no reconhecimento e na valorização da importância do património cultural na riqueza das nações.
Miguel de Unamuno tinha uma grande admiração por Junqueiro, que considerou como um verdadeiro símbolo cultural de Portugal – “el primero de los poetas portugueses de hoy y uno de los maiores del mundo”. Temos na memória a ideia do Cristo português definido por Junqueiro a Unamuno, sempre disposto a ir para o terreiro a conviver com o povo, a entregar-se humanamente à vida, ao invés do Cristo espanhol, condoído e dramático. Ao anotar “Os Simples” dirá: “Li com sofreguidão milhares de páginas. Dias, noites, semanas, meses, revolvi no cérebro escandecido todos os enigmas torturantes. (…) Questionei a razão, ouvi a consciência”. E insiste em que entre “Os Simples” e a “Velhice do Padre Eterno” não havia contradição, já que o lirismo é o reverso da sátira e a indignação o comentário da elegia. O cristianismo de “Os Simples” era o inocente e meigo cristianismo popular, feito com ignorância absoluta do dogma e com a intuição humana dos Evangelhos. De facto, “a exegese do povo na sua rudeza nativa e embrionária é por vezes de uma penetração sublime e reveladora”. E assim o misticismo naturalista procura a fórmula transcendente do espírito divino.
Muitas vezes houve quem tivesse dificuldade em compreender um genuíno espírito que encarou a cidadania como a busca de um patriotismo futurante, capaz de entender a capacidade popular de amar a terra e a grei. “Uma República larga, franca, nacional, onde caibam todos” – eis o seu projeto. Assim, numa leitura atualista, devemos ouvir a lição completa de Guerra Junqueiro e da sua geração, longe de qualquer derrotismo sem horizonte – por isso recorda Camões, como sinal duma perene capacidade regeneradora – “Esta é a Ditosa Pátria minha Amada”. Gonçalves Crespo retratou-o de um modo acutilante e determinado: “Olhos dum pardo vivo e brilhante… A fonte escantoada, tendo como que reflexos, faz-nos lembrar a lisa transparência dos espelhos de Siracusa… O cabelo curto, corredio, negro: o nariz um pouco pronunciado, ligeiramente aquilino; o bigode áspero e pequeno como o de Scaramouche, desguarnece os cantos de uma boca francamente rasgada e onde bastas vezes desabrocha a flor doentia e satânica do sorriso de Voltaire. O queixo ousado e enérgico, as mãos compridas, ósseas e fortes. Junqueiro é baixo como Horácio, como Átila e como Castellar; há todavia no seu pequeno corpo esbelto a linha ondeante e elástica de um capitán sanguíneo e resoluto…”
É este o poeta jovem que encontramos nas fotografias que nos chegaram do grupo dos Vencidos da Vida, no almoço em casa de Bernardo Pindela num tempo que deixara para trás a promessa de “A Morte de D. João” de 1874, que visara a burguesia dissoluta e o clericalismo reacionário. Oliveira Martins vira nele o cultor de um tempo novo e de uma nova literatura combativa.
Hoje, cem anos depois da sua morte, lembramos, neste Panteão Nacional, Guerra Junqueiro na atitude positiva da sua vida. Neste dia, que é também do centenário de Mário Soares, símbolo da determinação da democracia, como ponto de encontro e realização de um sistema de valores, recordamos a lição essencial de Junqueiro, para quem a democracia não se constrói com soluções providencialistas, mas com a determinação e a vontade dos cidadãos, que Alexandre Herculano considerou serem a alma e o ânimo que nos mantém como portugueses de sempre, dispostos a continuar a herança dos nossos maiores, generosamente disponíveis para as Sete Partidas e para a aventura do encontro com outros povos e outras culturas. Como João Grave afirmou na lembrança sentida da última visita que fez a Junqueiro, havia no poeta uma espiritualidade genuína, que o levou então a recordar o mestre Antero de Quental, animada pela vontade indómita de reerguer a Pátria, - querendo ser justo até ao alento final. É esse o espírito que entusiasmou Unamuno e nos mobiliza, numa celebração que não é apenas formal, mas que projeta aqui e agora uma responsabilidade cívica sempre atual e necessária.
Guilherme d'Oliveira Martins
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