A VIDA DOS LIVROS
De 16 a 22 de dezembro de 2024
Assinalamos o centenário do nascimento de Alexandre O’Neill, que ocorre no dia 19 de dezembro.
Fotografia de Fernando Lemos
MEU REMORSO DE TODOS NÓS
Pedro Mexia, ao reler No Reino da Dinamarca de Alexandre O’Neill, lembra “a pequena dor à portuguesa / tão mansa quase vegetal”, onde o poeta procura “pretextos para fugir ao real”, o que nunca chega a acontecer porque, de facto, há uma ligação incindível entre a poesia e a vida. Foi assim sempre com o poeta, que depressa se afastou de um campo onde pudesse haver dúvidas a esse respeito. E rapidamente se tornou inclassificável, já não dentro do redil surrealista. Quando lemos a sua obra, depressa compreendemos que o poeta se situou naquilo que um dia Antonio Tabucchi designou como domínio do picaresco, com tão sólidas raízes na tradição portuguesa, ao lado do lirismo e da história trágico-marítima. António Alçada, que continuo a recordar com imensa saudade, gostava muito de Alexandre. “Era bom conversar com ele. Ele era um precursor de leituras. Foi ele que me indicou o Borges, o Guimarães Rosa, os Cem Anos de Solidão, sei lá mais quê”. Era um repentista. Quando o António publicou os primeiros livros, comentou-lhe: “Apetece-me fazer um ensaio: Das tias em António Alçada Baptista”. Não o escreveu, mas foi como se o fizesse, pois daí em diante ninguém esqueceu a tia que mandou pintar os muros de uma quinta, para que quando viessem os comunistas, encontrassem tudo arranjadinho… Quando os dois se encontravam, era certa uma longa conversa, de rica cumplicidade. “Vá de Metro Satanás” – foi uma ideia inaproveitável para a publicidade do novo meio de transporte nascido no final dos anos cinquenta, que se tornou lenda. Tendo começado a viajar tarde, Alexandre O’Neill acompanhava as andanças políticas de António e em março de 1962 conheceu Giorgio La Pira, democrata cristão à frente do município de Florença, com fama de santo, que a Livraria Morais publicou – “Meu Caro António. O La Pira (que fisicamente se assemelha imenso ao Régio) é um tipo giro. Esta terra é maravilhosa. Até breve. Alexandre”. Na Peregrinação Interior está bem evidenciada a marca do poeta: « - Quem? O infinito? / Diz-lhe que entre. / Faz bem ao infinito / Estar entre gente.» (Abandono Vigiado, 1960). Quanto ao encontro com o Grupo Surrealista de Lisboa (1947), apesar de saudações sentidas a Breton (“Deflagraste em nós na sempiterna circunstância: a pasmaceira”) e Éluard (“Cantaste a beleza proferiste a verdade / (…) Disseste o que devias dizer”), o poeta considerou essencial demarcar-se de escolas. E em 1951 rompeu formalmente com o surrealismo, sem deixar o apego às marcas indeléveis dessa influência – “É tempo de acordar nas trevas do real / na desolada promessa / do dia verdadeiro” (Tempo de Fantasmas). A ironia será marca permanente: – “Ó Cesário Verde como eu queria / Que estivesses aqui!” Há humor e mágoa, riso e desgosto… “E se fossemos rir, / Rir de tudo tanto, / Que à força de rir / nos tornássemos pranto…” (No Reino da Dinamarca). E contra a intolerância, ainda em Abandono Vigiado: “Teima? Que topete! / Que se julga ele / Se um tigre acabou / nesta sala em tapete?”.
Concordo ainda com António Alçada quando este afirma em Pesca à Linha – Algumas Memórias: “Julgo que nenhum poeta contemporâneo foi como ele capaz de captar com mais subtileza o halo poético do quotidiano, o estofo lírico-épico-dramático que está por baixo da banalidade dos dias. Mesmo nos seus poemas que parecem circunstanciais têm implicações perenes pela necessidade de detetar o que há de essencial no acontecimento que parecia fugaz. Com isso atingia o âmago das situações comuns, cujo enigma não foi desvendado: a morte, o amor, o medo, a Pátria, a palavra. (…) No seguimento da sua relação intrínseca com o mistério da palavra foi incomparável na invenção de novas palavras e também na de recuperar a riqueza do vocabulário extinto ou em desuso, que redescobriu e repôs em circulação”. Leia-se Caixadóclos e tirem-se conclusões: “- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim? / - Que és o esticalarica que se vê. / - Público em geral, acaso o meu nome… / - Vai mas é vender banha da cobra! / - Lisboa, meu berço, tu que me conheces… / Este é dos que fala sozinho na rua… / - Campd’òrique, então não dizes nada? / - Ai tão silvataváres que ele vem hoje! / - Rua do Jasmim, anda, diz que sim! / - É o do terceiro, nunca tem dinheiro… / - Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você… / - Dos dois ou três, que o surrealismo… /- Ah, agora sim, fazem-me justiça! / - Olha o caixadóclos todo satisfeito a ler as notícias… (Feira Cabisbaixa, 1965).
UMA OBRA MARCANTE
Quando foi lançado, em 1958, na Guimarães da Rua da Misericórdia, No Reino da Dinamarca, conjuntamente com Mar Novo de Sophia, com O Livro do Nómada Meu Amigo de Ruy Cinatti e Rosa Rosae de Merícia de Lemos, Jorge de Sena afirmou profeticamente: “Não podereis contar com nenhum destes quatro poetas para vos salvar (…). É típico da poesia autêntica, da que não é evasiva, não ter por onde se pegue para fugirmos à consciência, à lucidez, à crua luz da verdade moral”. De facto, tinha razão, uma vez que a palavra que aí se revelava significava era um inequívoco apelo à não indiferença. Alexandre O’Neill perscruta sempre o quotidiano, não como realidade pacata, mas como reflexão, excesso e divertimento. A vírgula – “Quando estou mal disposta / (e estou-o muitas vezes) / mudo o sentido às frases, / complico tudo”. O ponto – “Que eu saiba / só em Éluard sou único e final”.
Eis-nos perante a libertação da arte e pela arte – este o programa, a que O’Neill voltou sempre, conversando e desconversando, moendo e remoendo incessantemente as palavras, com recusa sistemática de uma Poesia com maiúscula, já que preferiu o retrato “à la minuta” do país em diminutivo. E na “Feira Cabisbaixa” desenha Portugal (“…se fosses só três sílabas…”), o tal cadinho onde cabe toda a nossa diferença (“se fosses só o sal, o sol, o sul, / o ladino pardal, / o manso boi coloquial”…). Das doceiras de Amarante aos toureiros da Golegã, “não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, / galo que cante a cores na minha prateleira”. Mas quem é, afinal, Portugal? “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, / golpe até ao osso, fome sem entretém, / perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, / rocim engraxado, / feira cabisbaixa, / meu remorso, / meu remorso de todos nós”. Portugal magistralmente esboçado por um impressionista de génio. “País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano”. O’Neill impagável, da genealogia de Nicolau Tolentino, com olhar atento, para dentro de nós: “Subamos e desçamos a Avenida, / enquanto esperamos por uma outra / (ou pela outra) vida”… (Abandono Vigiado).
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença