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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de dezembro de 2024


O Papa Francisco propõe para o Novo Ano de 2025 o tema da Esperança como mobilizador dos cristãos e das pessoas de boa vontade num tempo muito exigente, pleno de incertezas e ameaças, a exigir o compromisso de todos para desfazer os sérios perigos que nos perseguem.
 


Papa Francisco © Paulo Novais/Lusa


“Exorto-vos a todos a viver este tempo forte de Natal com uma oração vigilante e uma esperança ardente”, sendo um “tempo de graça, irradiando a alegria que é fruto do encontro com Jesus” – acaba de proclamar o Papa Francisco. Mas acastelam-se nuvens negras no horizonte e o apelo é mais necessário que nunca.


Lembremo-nos que a singularidade e a solidariedade são faces da mesma moeda, obrigando-nos à recusa da indiferença e à noção positiva de compromisso. A nossa relação de uns com os outros, baseada no respeito mútuo, obriga-nos a uma ligação essencial entre pessoa e comunidade. A pessoa humana parte do que somos e do que nos distingue dos outros, segundo a própria etimologia, enquanto máscara do teatro grego. Já a comunidade é o que nos liga intrinsecamente, tornando-nos responsáveis uns pelos outros. E assim a autonomia individual demarca-se do egoísmo e do narcisismo, constituindo-se como valor ético, como eixo de abertura, de generosidade e de disponibilidade. Não nos reportamos, porém, a qualquer visão idílica de vida, destituída de diferenças e conflitos. Referimo-nos, sim, à necessidade de recusa da tentação do isolamento e da autossuficiência.


«O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana» - afirmava João XXIII na encíclica «Mater et Magistra» (1961). Os poderes públicos devem orientar-se no sentido do respeito, da harmonização, da tutela e da promoção dos direitos invioláveis prescrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Se uma autoridade não reconhecer os direitos ou os violar «não só perde a razão de ser, como também as suas injunções perdem a força de obrigar em consciência», insistia João XXIII há cinquenta anos, num documento moderno que se tornou mais atual do que nunca. De facto, a noção de serviço público não se pode ater apenas ao Estado e ao mercado, mas à comunidade. O Estado social tem de representar a sociedade e os cidadãos, devendo o serviço público corresponder sempre a uma rede de iniciativas e de cidadãos criadores e participantes. Falamos do catálogo de direitos aceites e reconhecidos pelas Nações Unidas, que a encíclica «Pacem in Terris» refere: a existência de um padrão de vida digno; o respeito pelos valores morais e culturais; o prestar culto segundo o imperativo da reta consciência; a liberdade de escolha do estado de vida; a satisfação justa de necessidades económicas; para além dos direitos de reunião, de associação, de migração e de participação política – assim o Concílio Vaticano II consagrou a liberdade religiosa e de consciência. E este conjunto completa-se com o elenco dos deveres de cidadania (e não deveres de servos ou de súbditos): reciprocidade entre direitos e responsabilidades, colaboração mútua entre pessoas, convivência na verdade, na justiça, no amor e na liberdade, bem como salvaguarda de uma ordem moral, cujo fundamento para os cristãos é o próprio Deus. Deste modo, encontramos um fundamento universal e não uma mera lógica de hierarquia formal. Não se trata de referir um modelo de bem comum ou uma noção estereotipada de democracia – mas sim de considerar que a pessoa humana é a medida comum dos direitos e responsabilidades.


Não esquecemos que Hannah Arendt coloca entre as Origens do Totalitarismo a atomização radical do indivíduo e a eliminação da espontaneidade e da liberdade política. O colapso da distinção entre os domínios público e privado conduz à invasão ilegítima do puro utilitarismo. Afinal, o crescimento livre dos interesses privados torna-se incompatível com a necessidade de termos instituições políticas estáveis e com a existência de instâncias de mediação capazes de representar os interesses legítimos, de suscitar a participação cívica, de garantir representação cidadã e de regular os conflitos de forma racional e pacífica. Afinal, o totalitarismo, distinto do mero autoritarismo, torna a ação política impraticável, através da capacidade de falar e de ouvir, porque destrói pelo terror a possibilidade de ações espontâneas entre as pessoas. A solidão e o abandono são causas que subjazem a todos os movimentos totalitários, ainda segundo H. Arendt – lembrando a pensadora o conceito de Santo Agostinho de “Amor ao mundo”. A pessoa humana sente-se em casa, podendo preparar-se na espera do bem e do mal. E assim, em lugar do isolamento e do abandono, o cidadão torna-se um participante comprometido, capaz de agir em prol do comum. E a essência dos direitos torna-se um direito a ter direitos, fundamento da coesão social e da confiança.


Eis por que razão a noção de liderança não se confunde com a aquisição de poder e de proeminência, mas deve corresponder ao serviço, à atenção e ao cudado. Serviço, na medida em que se trata de dar resposta e de corresponder ao que nos é solicitado pelos outros e se espera de nós. Atenção, uma vez que resulta de termos de estar despertos perante o nosso próximo – tornando viva a pergunta bíblica: “onde está o teu irmão?” E devemos considerar o cuidado, entendendo que, mais do que uma solidariedade formal do que se trata é de garantir que precisamos uns dos outros. Daí a necessidade de superarmos a superficialidade e o imediatismo, uma vez que quanto mais cedermos a tais condicionantes mais provável será deixarmo-nos aprisionar pelo mal e pelo desrespeito da dignidade. Jacques Maritain numa das suas conferências do período do exílio americano durante a guerra afirmou: «Dizer que o homem é uma pessoa, quer dizer que, no fundo do ser, ser é mais um todo que uma parte, e mais independente que servo».


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença