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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 30 de dezembro de 2024 a 5 de janeiro de 2025

 

Assinalamos hoje, no termo do ano 2024, o centenário de António Ramos Rosa (1924-2013), um grande poeta que marcou a tradição do Algarve na cultura da língua portuguesa.

 

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No último número dos “Anais do Município de Faro” recordei Nuno Júdice, como companheiro inesquecível. E nada melhor para o fazer do que lembrar o belo poema, que há um ano citei, sobre o silêncio das palavras. “Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio / suspenso dos gestos com que eles desenham / cada objeto, cada pessoa, ou as próprias ideias / que delas dependem. Por vezes, porém, as / palavras são o seu próprio silêncio. Nascem / de uma espera, de um instante de atenção, da / súbita fixidez dos olhos amados, como se / também houvesse coisas que não precisam / de palavras para existir.” (Pedro, Lembrando Inês, 2001). As palavras nascem da espera, da atenção - de realidades e acontecimentos que não precisam de palavras para existir. Sem palavras há coisas que não poderiam ter vida, porque o presente projeta-se no tempo que passou, no tempo atual e no futuro – para lembrarmos a expressão de Santo Agostinho. Melhor do que ninguém, o poeta põe-nos perante o insondável mistério do ser. Na sua ausência, não esquecemos a serena reflexão, que consideramos profética e que nos leva ao centenário de António Ramos Rosa, cujo espírito aqui está bem presente. 

 

LEMBRAR A POESIA 61

Este foi um ano de diversas partidas. Além de Nuno Júdice, deixou-nos Casimiro de Brito, cuja obra merece atenção. Foi uma presença da “Poesia 61” que seguiu Gastão Cruz e Manuel Baptista. E essa experiência continua presente entre nós, já que esses ecos do Sul correspondem não a uma escola, mas à compreensão da Arte e da Cultura como fatores inesgotáveis de criatividade e de inovação. Recordo, por isso, António Ramos Rosa, que não tendo participado na “Poesia 61” foi, podemos dizê-lo, um inspirador e uma referência. E se dúvidas houvesse descobrimos que a atenção à realidade, o não alinhamento e a recusa de uma atitude de grupo foram uma marca seguida pela geração mais nova de Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão, Luíza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito. De facto, para António Ramos Rosa “a poesia distingue-se da mística na medida em que constrói um corpo e reconstrói o ser na própria linguagem. A palavra do poeta é comparável à força muscular na sua extrema intensidade. Ela é uma descida iniciática à matéria. Por isso, podemos considerá-la uma espécie de densidade, de música. Não há diferenças entre a criação do sentir poético e o amor da terra. Afinal, no corpo da linguagem encontra-se a luz da terra”. E foi Eduardo Lourenço quem disse: “o coração é a essência da poesia de Ramos Rosa vertiginosamente ocupada pelos mistérios da realidade – de toda, da mais trivial à mais enigmática. Em suma, toda ela não foi mais do que uma conversa sem fim com o poema como esfinge do real”.

 

O GRITO CLARO!

Em homenagem a António Ramos Rosa, o referido número dos “Anais” publicou cinco poemas do livro inédito “A Duração do Gérmen”, escrito nos anos 90. São poemas que nos levam ao encontro do Mar e de uma ilha. A nudez pressupõe a pureza essencial da atenção, em vez dos “volúveis arabescos do desejo”. E assim o poeta privilegia a “obstinada avidez de compreender”. Como ir além da superfície? E só o silêncio pode permitir que se desvende a “inteligência do vento”, capaz de nos levar à necessidade de “separar a presença da ausência”. Com efeito, a alma assemelha-se a uma ilha que é “feita de acolhimento”, mas que também se define pela ausência. E é o silêncio que marca a sua existência, num desejo intenso de ir ao encontro do mistério insondável das diferenças, que nos completam e da palavra essencial que faz nascer o mundo. E oiçamos: “Ilha / uma pedra mais silenciosa do que as pedras / a plenitude de estar perante ti / com a fronte lavada / pelo teu silêncio / que é só o teu silencio nu / através da monotonia de um mar / que não quebra o teu silêncio / que o acentua / /que o prolonga / e o faz respirar / Cessaram as imagens / os volúveis arabescos do desejo / a obstinada avidez de compreender / Estou perante a nudez / e estou nu / Tenho a inteligência do vento e estou presente / sem separar a presença da ausência…”

 

A DURAÇÃO DO GÉRMEN

É esse mistério essencial da palavra que faz nascer o mundo que revela a um hóspede silencioso como só a palavra pode abrir horizontes. E se há palavras que têm dificuldade em fazer mover o mundo, há sempre a possibilidade de abrir novas oportunidades para entender melhor o imutável. E a palavra, sempre ela, torna-se a memória do murmúrio, que enche o silêncio do universo, enquanto marca da humanidade. Afinal, perante um poeta, apenas podemos aspirar a compreender-nos melhor. E António Ramos Rosa ajuda-nos a desvendar o mistério insondável das raízes do tempo e das coisas, já que “o ato poético é um ato de concentração, porque o poema se separa do mundo quotidiano, do mundo objetivo, de um mundo que está dividido e, portanto, mutilado. O poema busca uma realidade perdida e a sua integração nas palavras e nos objetos que são sensibilizados pela impulsão poética”. Nesta afirmação feita na entrevista concedida a Francisco Bélard, em 1988, por ocasião da atribuição do Prémio Pessoa está contida uma revelação importante, que permite compreender o coração aberto à terra, que singulariza o poeta. Ao tentar responder quem era verdadeiramente esse poeta, retratado no ocaso da existência, José Tolentino Mendonça aproximou-o dos místicos – “esses que se confundem facilmente com peregrinos, estrangeiros e deslocados ou com mendigos. Não têm dono, não são heraldo de ninguém, não convergem para uma meta precisa. São frugais e leves. São abertos e vigilantes. Preservam a sua humildade com mansidão. A sede de absoluto e a nostalgia dos grandes espaços que preservam é um espelho da imensidão interior que obstinadamente cultivam. Definem-se como errantes, hóspedes habituais da natureza e só eventualmente dos homens, vivem a itinerância como pátria espiritual. Se suprimirmos o que eles não veem, suprimimos também o que veem. Eles sabem que silêncios, solidões e desertos não são necessariamente lugares, mas estados do coração a percorrer sem fim, e tornam-se mestres porque antes se tornaram justos” (Prefácio a Poesia Presente – Antologia, Assírio e Alvim, 2014). É Pascal que regressa com verdadeiro “esprit de finesse”. E razão tem Maria Filipe Ramos Rosa (a quem renovo os agradecimentos pela confiança em permitir a revelação do projeto inédito) quando diz que nos anos 90 o caráter repetitivo do poeta lembra “exercícios diários de sobrevivência”. Mas, mais do que isso, são glosas de temas fundamentais, que encontramos desde o “boi da paciência” ou do “funcionário cansado de um dia exemplar”, sem esquecer as magníficas traduções de Foucault, Éluard ou Mounier.  E ouvimos: “Quem escreve / quer juntar-se / à pedra, / à árvore // E ser através delas /o tranquilo sopro / do inominável” (A Intacta Ferida, 1991).      

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença