A VIDA DOS LIVROS
De 27 de janeiro a 2 de fevereiro de 2025
As Raízes Culturais de Portugal e da Europa serão tema do próximo curso do CNC. Os Roteiros Culturais estarão na ordem do dia e nada melhor do que começarmos por Ulisses e a sua viagem mítica de Troia até Ítaca…
(Ilustração de Jaime Martins Barata)
QUE ITINERÁRIOS CULTURAIS?
Quando Claudio Magris escreveu “Danúbio” deu-nos o paradigma dos Itinerários Culturais que constituem base para a compreensão das raízes e da diversidade do património cultural material e imaterial – monumentos, geografia, tradições, costumes e criação contemporânea. Num tempo de mal-estar e de grande incerteza, torna-se necessário regressar ao conhecimento da História, única forma de prevenir a repetição de erros antigos, tantas vezes devidos à pura ignorância e à tentação de reconstruir o mundo à luz de uma visão unilateral e fechada, tributária de uma conceção avessa ao diálogo entre culturas e à ideia de civilização. O mundo contemporâneo defronta-se com as noções de globalização e de complexidade, das quais importa tirar conclusões orientadas pela demarcação quer do absolutismo quer do relativismo nos valores éticos. Apenas o conceito de pluralismo, aliado ao respeito mútuo, à partilha de responsabilidades e a um verdadeiro intercâmbio de entendimentos diferentes quanto às raízes culturais, permitirá superarmos aquilo que Hermann Broch designou como “sonambulismo” e vazio de valores. Longe da tentação da procura de um lugar onde ninguém se possa encontrar, sob a ilusão de que assim se respeitariam as diferenças, importa garantir um consenso de sobreposição democrático que permita a todos sentirem-se em casa, enriquecendo-se mutuamente. Daí a importância da ideia de roteiro cultural, no qual se possa assegurar o encontro das diferenças e a complementaridade entre raízes múltiplas.
PORQUÊ ULISSES?
Lembremo-nos do paradigma de Ulisses e da sua viagem de Troia para Ítaca. Aí temos, num registo imaginário, o encontro das diferenças, e uma aprendizagem do inesperado pela experiência. E recorde-se que o projeto de Claudio Magris de seguir o caminho do Danúbio das nascentes até à foz, começou com um desafio centrado no projeto “Arquitetura da Viagem. Os Hotéis: História e Utopia”. Sim, História e Utopia encontram-se na ideia de viagem, uma vez que os acontecimentos históricos ocorrem sem repetição e dependem das circunstâncias concretas e do modo como os viajantes respondem aos diferentes desafios, enquanto a utopia leva à consideração de um horizonte de vários possíveis, que a cada passo nos confronta. Os dois polos coexistem e confrontam-se e a ideia de que o acontecimento é nosso mestre interior resulta dessa ligação. Que era o “Grand Tour”, praticado por várias gerações das elites europeias, príncipes e mercadores, intelectuais e aventureiros, senão a imersão total nesse confronto da aprendizagem entre a realidade e o sonho? Ruskin encontrou esse paradoxo entre realidade e imaginação na cidade de Veneza, já que a República Sereníssima simboliza essa misteriosa relação entre a cidade e a sua sombra – “um fantasma na areia do mar, tão frágil, tão silenciosa, tão despojada de tudo exceto da sua beleza, que por vezes, ao contemplarmos o seu lânguido reflexo na laguna, nos perguntamos quase como se fosse uma miragem, qual a cidade, qual a sua sombra”.
Nos percursos culturais, importa revelar as referências históricas, mitos, lugares e acontecimentos, origens e raízes. Trata-se de peregrinar ao encontro da memória, ilustrando a aventura com o que é digno de interesse e atenção. Montaigne, Stendhal, Goethe, Chateaubriand, Thoreau, Júlio Verne, George Sand, Magris, Canetti, André Gide, Bruce Chatwin ensinaram-nos a construir uma síntese entre história, geografia, literatura, filosofia, política, economia e artes. As Viagens Extraordinárias de Verne envolvem, por isso, a realidade e o fantástico, os mundos conhecidos e desconhecidos. Em A Volta ao Mundo em Oitenta Dias faz-se a divulgação do novo sistema horário universal e da linha internacional de mudança de data, que salvará a aposta de Phileas Fogg. Em Da Terra à Lua antecipa-se o que apenas em 1969 se concretizará. E com Miguel Strogoff, o correio do czar revela-nos todo o mistério do maior império de sempre.
A VIAGEM MODELAR
Comecemos por Ulisses, o grande viajante mítico, perdido entre a saudade de Ítaca e o perigo das viagens. Trata-se da história do “herói de mil estratagemas que tanto vagueou, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos, quando lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros”. Ulisses levará dez anos a chegar à sua terra natal, depois da guerra de Troia, que durara outra década. Encontramo-lo cativo da bela ninfa Calipso, que o libertará, ao fim de sete anos, pela intervenção de Atena. Depois de novo naufrágio, o herói alcança a praia de Esquéria, lar dos Feaces, hábeis construtores de navios, sendo recebido por Nausícaa, que lhe dá hospitalidade e o ajuda, em contrapartida do relato das suas aventuras desde a partida de Troia. Aí recorda a aventurosa estada na Ciclopia, onde se vira confrontado pelos Ciclopes e pelo ameaçador Polifemo, contra quem teve de usar a proverbial astúcia, cegando o único olho que o monstro tinha, o que causaria a ira de Poseidon. A viagem envolveu ainda o encontro com Éolo e Circe, as previsões de Tirésias, e a ida à última fronteira dos Oceanos, ao limiar dos infernos e ao reino dos mortos. Nas tempestades entre Cila e Caríbdis perde alguns dos seus companheiros e, ao passar pela ilha das sereias protege-se, evitando deixar-se seduzir pelos cantos encantatórios, conseguindo regressar à luz e à alegria, não sem que sofresse ainda as vicissitudes na ilha do Sol, antes de regressar a Ítaca, para junto de Penélope e seu filho Telémaco, vencendo os pretendentes oportunistas que procuravam suceder-lhe no poder e influência. Temos aqui o exemplo supremo de uma viagem iniciática, que influenciou obras tão diferentes como a Eneida de Virgílio, Os Lusíadas de Camões ou Ulisses de James Joyce.
Referindo os itinerários que se tornaram modelos, importa seguir o Livro de Marco Polo, que relata a experiência do veneziano na Rota da Seda, que passa por Samarcanda e chega a Pequim e vai até ao contorno da Ásia, da Índia e do Golfo Pérsico, até aos lugares do domínio futuro do Império de Alexandre o Grande no Levante Mediterrânico. E eis como chegamos ao itinerário do nosso Infante D. Pedro das Sete Partidas, Duque de Coimbra e de Treviso, no Veneto, o mesmo que trouxe para a corte portuguesa o Livro das Maravilhas de Marco Polo. E assim o conhecimento do Império Romano-Germânico leva-nos à redescoberta do Mediterrâneo, lembrando a viagem Ibn Batuta, o extraordinário visitante que foi até ao fim do mundo. E interrogamo-nos sobre o encontro dos portugueses com Génova, Veneza e Roma, na génese do Plano da Índia do Príncipe Perfeito e na demanda do Preste João, encontrando-nos com Pero da Covilhã e Afonso de Paiva no Cairo até ao mar Arábico, culminando na Etiópia. E como não evocar os grandes cientistas portugueses e o seu decisivo contributo para a humanidade – Pedro Nunes, Garcia de Horta e D. João de Castro, com a demonstração de como o saber de experiências feito nos deu o conhecimento do mundo?
Guilherme d'Oliveira Martins
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