A VIDA DOS LIVROS
De 31 de março a 6 de abril de 2025
O papel desempenhado pela cultura portuguesa na génese do Renascimento merece atenção especial. O pano de fundo da história portuguesa dos séculos XV e XVI abrange, assim, em termos culturais, referências fundamentais. Neste ano em que se celebra o quinto centenário de Camões referimo-las.
PARA ALÉM DA TRADIÇÃO LÍRICA
Na grande tradição da lírica poética, vinda dos trovadores galaico-portugueses e das cantigas de amor e de amigo, chegamos à maturidade da língua portuguesa com Luís de Camões (1524-1580), antecedido por Garcia de Resende (1470-1536), coordenador e artífice do Cancioneiro Geral, acompanhado por Francisco Sá de Miranda (1481-1558), o grande introdutor em Portugal da medida nova de Petrarca, ou pelo autor de “Menina e Moça”, Bernardim Ribeiro (1488-1552). Ao lado deste fundo lírico, temos o domínio épico, de que Camões é o supremo representante, em paralelo como a “História Trágico-Marítima” (obra impressa no século XVIII, baseada em publicações dos séculos XVI) – que levou Miguel de Unamuno, a considerar a cultura portuguesa, a um tempo, lírica e trágica. A estes dois campos, junta-se, porém, o domínio picaresco, na tradição das cantigas de escárnio e maldizer – a que urge juntar o teatro de Gil Vicente (1465-1536), que António Tabucchi exemplificou com o extraordinário “Prato de Maria Parda”, podendo acrescentar-se, dentro de uma produção riquíssima, o “Auto da Lusitânia”, com as inconfundíveis personagens de Todo o Mundo e Ninguém (que Almada Negreiros considerou gémeos). Por outro lado, há um dos fundadores da moderna narrativa Fernão Mendes Pinto (c.1510-1583) com a obra fundamental “Peregrinação” – obra-prima de moderna transição romanesca, que nos permite compreender a diversidade de experiências dos portugueses no mundo, em que o autor se define como «treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. Por outro lado, temos as primeiras Gramáticas da Língua Portuguesa datam respetivamente de 1536 com Fernão de Oliveira (também autor da “Ars Nautica”) e de 1540 com João de Barros. Se referimos João de Barros, não podemos deixar de aludir a sua notável função de cronista, em que seria sucedido por Diogo do Couto, o célebre autor do “Soldado Prático”, repositório fundamental sobre as fragilidades do império. Nessa plêiade de grandes escritores, não podemos deixar de referir Damião de Góis, diplomata, intelectual prestigiado na Europa, amigo de Erasmo e de Dürer, alvo de desconfianças em virtude da sua relação com os maiores humanistas.
O DOMÍNIO DAS ARTES
No campo artístico, temos no século XV os exemplos notáveis de Nuno Gonçalves (c. 1450-1491) e de Vasco Fernandes (Grão Vasco) (1475-1542) – sendo primeiro autor de uma das obras-primas europeias de sempre, os Painéis ditos de S. Vicente (c. 1470), redescobertos no final do século XIX e identificados pela representação do Infante D. Henrique tal como se encontra na edição da Crónica dos Feitos da Guiné da Biblioteca de Paris. Na arquitetura, Nicolau de Chanterene (1470-1551), Diogo Boitaca (1460-1528) e João de Castilho (1470-1522) criaram o que conhecemos como o manuelino de que é paradigma o mosteiro dos Jerónimos, além de Francisco de Arruda (m. 1547), que assina a Torre de Belém, merecendo todos especial destaque, ao lado do grande mestre teorizador Francisco de Holanda (1517-1585), não se esquecendo na ourivesaria a preciosidade da Custódia de Belém, possivelmente da autoria de Gil Vicente. Na música, encontramos figuras de relevância europeia como Mateus de Aranda (1495-1548), Pedro de Escobar (1465-1535), Filipe Magalhães (1571-1652), Manuel Mendes (1547-1605), Pedro Cristo (c.1545-1618) e Duarte Lobo (1565-1646).
O SABER DE EXPERIÊNCIAS FEITO
Aos domínios referidos, importa acrescentar no que designamos como a primeira globalização as seguintes referências. Na ciência, há a figura maior de Pedro Nunes (1502-1578) matemático e cosmógrafo-mor do reino, de dimensão mundial, mas ainda a de Abraão Zacuto (1450-1522), autor da “Tábuas Astronómicas”; além de Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), autor do “Esmeraldo de Situ Orbis” e elemento crucial na preparação e concretização do que veio a ser o Tratado de Tordesilhas; de Garcia de Orta (1501-1568), médico e naturalista; de Amato Lusitano (1511-1568), médico e fisiologista, e de D. João de Castro (1500-1548), político, cartógrafo e naturalista. Deste modo, até ao reinado de D. Manuel, há uma assinalável convergência de influências, num caleidoscópio de povos e crenças. No entanto, com a expulsão dos judeus, no início do século XVI, depois do massacre de Lisboa de 1506, houve, também uma dispersão e a perda de vantagens económicas e de conhecimento. Pode dizer-se que a saída dos judeus sefarditas da Península Ibérica teve consequências desastrosas no tocante aos investimentos e ao apoio científico – tendo resultado de uma forte pressão diplomática e religiosa, que um século depois o Padre António Vieira procuraria inverter na Restauração da Independência (1640). A primeira globalização, que Arnold Toynbee designa como era gâmica (por homenagem a Vasco da Gama), abre novos horizontes à língua e à cultura portuguesas nos diversos continentes. A língua franca dos mercadores e missionários da Ásia será o português, designado como “papiar cristão”, enquanto a miscigenação promovida, através dos casamentos mistos, por Afonso de Albuquerque vai permitir o surgimento de um relevante diálogo entre culturas – que Jaime Cortesão considerará como base do humanismo universalista dos portugueses…
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença