A VIDA DOS LIVROS
De 21 a 27 de abril de 2025
Recordamos hoje um grande amigo, destacado intelectual brasileiro – Marcos Vinícios Vilaça, membro da Academia Brasileira de Letras.
As lembranças não são apenas memórias passadas, são referências da própria existência presente que fazem reviver as relações humanas na sua plena representação. Quando recebemos a notícia da partida de um amigo dileto, como Marcos Vinícios Vilaça (1939-2025), fica-nos a recordação de encontros inolvidáveis, animados por um espírito brilhante e versátil e por uma incontida generosidade, completada pela presença inesquecível de sua mulher, Maria do Carmo, que constituía sempre uma companhia que nos enchia, a seus amigos, de uma verdadeira alegria. O nosso conhecimento foi muito fácil e natural, até porque depressa encontrámos memórias comuns, através de meu avô, conferencista, no Recife, nas celebrações do Tricentenário da Restauração Pernambucana (1954), tendo-se tornado a partir de então amigo de Jordão Emerenciano (1919-1972), brilhante intelectual e orador, que conheci em Lisboa e sobre quem falámos longamente de vastas memórias pernambucanas.
Nascido no município de Nazaré da Mata, no estado de Pernambuco, Marcos Vilaça foi justamente considerado como um ensaísta brilhante, consciente da importância da relação estreita entre a cultura e a iniciativa económica, tendo desempenhado importantes responsabilidades, como no Conselho Federal de Cultura. Por designação do Presidente José Sarney, foi ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) durante mais de duas décadas. Desde 1950, viveu no Recife, onde estudou no tradicional Colégio Nóbrega, fazendo o “Curso Clássico”, onde aprofundou os campos das Letras e das Humanidades. Depois de 1958, foi professor de História do Brasil no Ginásio de Limoeiro, no Recife, e ingressou no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde se licenciou em Direito e obteve o grau de mestre, o que lhe permitiu tornar-se professor daquela instituição no ano de 1964. Marcos Vilaça lecionou as disciplinas de Direito Internacional Público e de Direito Administrativo, o que foi de grande utilidade para o desempenho de suas funções quando se tornou ministro de TCU. Na década de 1960, dedicou-se à literatura, à reflexão e ao ensaísmo, áreas que o consagraram no mundo cultural. Um pouco antes, em 1958, publicou Conceito de Verdade, o discurso que pronunciou no Salão Nobre do Colégio Nóbrega em dezembro de 1957, na condição de orador da turma de finalistas do Curso Clássico.
Em 1961, Marcos Vilaça publicou um dos seus trabalhos literários de maior sucesso e originalidade: Em torno da Sociologia do Caminhão, que recebeu o prémio Joaquim Nabuco da Academia Pernambucana de Letras. Na Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira 26, sendo eleito em 1985 na sucessão de Mauro Mota, seu conterrâneo, e recebido pelo académico José Sarney. Recebeu os académicos Ariano Suassuna, Alberto da Costa de Silva e Marco Maciel, tendo sido Presidente da ABL no biénio 2006-2007. Além do ensaio sobre a juventude de Gilberto Freyre (1980), escreveu o impressivo “O Coronelismo no Nordeste Brasileiro” (2004), que nos permite compreender como a influência política e social se repercutiu na evolução cultural da região. Marcos Vinícios era um conversador nato, uma companhia inigualável, as conversas com ele interligavam-se de modo ininterrupto e com uma cadência de grande vivacidade.
NOITE INOLVIDÁVEL
Tanto falávamos da sua experiência política no Recife e sobre José Sarney, grande artífice com Mário Soares da génese da CPLP, através do Instituto Internacional de Língua Portuguesa ou do papel desempenhado por José Aparecido de Oliveira, assim como invocávamos o ambiente dos romances de Eça de Queiroz, como aconteceu num jantar inolvidável no Grémio Literário, com José Carlos de Vasconcelos, Alfredo José de Sousa e José Tavares, em que Luís Santos Ferro nos pôde falar deliciosamente de Manuel Vilaça, a personagem romanesca fidelíssima de “Os Maias”, de quem ouvimos dizer: “Eu sou um homem de princípios e os princípios não se vendem” ou chamar a atenção para a importância do amor à casa em que se nasceu. Mas o prazer das palavras e da memória viva do ambiente queirosiano, ali mesmo onde o romancista terá lido pela primeira vez “Les Fleurs du Mal” de Baudelaire, culminou nas esperadas gargalhadas para o Taveira, amanuense do Tribunal de Contas. "Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara para o relógio. E eu aqui, empregado público, tendo deveres para com o Estado, logo às dez horas da manhã. - Que diabo se faz no Tribunal de Contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaqueia-se? - Faz-se um pouco de tudo, para matar tempo... Até contas!" E o efeito não se fez esperar. E Luís Santos Ferro com o seu humor e conhecimento das coisas animou aquela charla, lembrando, de seguida, naturalmente Maria Eduarda. E a descrição foi pontuada por natural volúpia, lembrando que a morada dela era a dois passos de onde se encontra o Grémio, hoje rua Ivens, outrora rua de S. Francisco. E todos relembrámos esse momento crucial da obra de Eça: ela era «uma senhora alta, loira, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz das suas botinas». Estava tudo dito. Maria do Carmo saudava o estilo irrepreensível de escrita e Marcos Vinícios a arte enaltecida pelo Luís. Todos aplaudíamos.
E a conversa continuava no elogio da nossa língua de um lado e do outro do Atlântico, com a lembrança de Machado e do extraordinário domínio das palavras e dos sentimentos. “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies”… E se Machado de Assis foi a alma da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinícios Vilaça fazia questão de pôr a tónica no convívio e no diálogo cultural, como centro da criatividade, institucionalizando o chá como ponto de encontro para o necessário ambiente de acolhimento e encontro capaz de reunir vontades e lembranças, desejos e esperanças. Nas nossas memórias ficou gravado para sempre o tom dessa amizade, verdadeira matéria-prima da língua comum e da cultura enquanto realidades indestrutíveis.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença