A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 25 de maio de 2025
Recordamos hoje o primeiro centenário do nascimento de Maria Barroso.
No centenário do nascimento de Maria Barroso, importa lembrar um tandem com uma importância muito grande quer na preparação da democracia portuguesa, quer na sua institucionalização e consolidação. Leonor Xavier quando escreveu Um Olhar sobre a Vida de Maria Barroso (Oficina do Livro, 2012) compreendeu-o perfeitamente. Esse tandem associou Mário Soares e Maria Barroso. No percurso que analisou com grande cuidado e rigor dá-nos a dimensão da cidadã, com uma vocação própria, que se afirma com uma singular qualidade, como aluna do Conservatório, como estudante da Faculdade de Letras, como prometedora artista do Teatro Nacional, com reconhecimento unanime, e ainda como pedagoga e como parlamentar e militante da sociedade civil. Encontramo-la nascida numa família algarvia de raiz democrática, com o pai preso e deportado para os Açores. Frequenta o Liceu Dona Filipa de Lencastre e é aluna do curso de Arte Dramática. Depois de concluir o curso dos liceus no Pedro Nunes, inicia a frequência de Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras. David Mourão-Ferreira recorda esses tempos, no Convento de Jesus: “Mal nos apercebíamos da luminosa rede de afetos que ali se ia tecendo”. Tal grupo reunia personalidades que viriam a ser marcantes na cultura portuguesa: Sebastião da Gama. Luís Filipe Lindley Cintra, Matilde Rosa Araújo, Eurico Lisboa, Maria de Lourdes Belchior, Joel Serrão, Helena Cidade Moura. A jovem destaca como mestres Vitorino Nemésio, Jacinto do Prado Coelho, Hernâni Cidade, Andrée Crabé Rocha e Virgínia Rau. Maria de Jesus admira especialmente Delfim Santos professor da Filosofia Antiga ou Vieira de Almeida na cadeira de Lógica.
Vai às aulas da parte da manhã, vem a casa almoçar e segue para os ensaios no teatro. A mãe acompanha-a no caminho e fica à sua espera no camarim, durante as representações noturnas. Estreia-se no Teatro Nacional em 1944 no Auto da Pastora Perdida e da Velha Gaiteira de Santiago Presado. Norberto Lopes fala de “uma promessa radiosa com a qual o teatro português deve contar”. E é nos corredores da Faculdade que conhece Mário Soares num episódio ligado a uma injustiça de que foi vítima, com uma falta inexistente dada pelos compromissos com o teatro. Em maio de 1945, participa na grande manifestação estudantil do final da Guerra em que Mário Soares intervém. Maria Barroso não assiste até ao fim, pois tem de correr para o ensaio geral no Teatro Nacional. Representava o papel de Elsa, a dactilógrafa, na peça Vidas sem Rumo, com Raul de Carvalho, Paiva Raposo e José Gamboa. Pouco depois, por escolha de Amélia Rey Colaço desempenha no Frei Luís de Sousa o papel de Maria de Noronha, ao lado de Palmira Bastos, destacando-se junto do público e dos críticos, pela segurança e pela emoção com que representa. Fernando Fragoso dirá “É um atriz que sobe a olhos vistos. E defendeu-se briosamente envolta num halo de graça e de frescura”. Mário Soares é preso em 1947, o regime endurece na perseguição dos seus opositores. É o tempo do MUD juvenil e o final da Guerra exigia a abertura democrática. Maria de Jesus envolve-se na ação política em memoráveis recitais poéticos. Diz poesia como ninguém mais. São extraordinárias as suas aparições, começadas em Santarém, que alertaram a polícia política. Traz para a praça pública a poesia do Novo Cancioneiro empolgando um público entusiástico. O poema de Álvaro Feijó Nossa Senhora da Apresentação era emblemático – “Aquela que não tem mantos da cor do céu / Aquela que não tem fios nos cabelos”, como denúncia da injustiça, da miséria e da fome. Mas também fazia ouvir as palavras fortes de Mataram a Tuna, de Manuel da Fonseca – “Ah meus amigos desgraçados, se a vida é curta e a morte certa / despertemos e vamos / eia / vamos fazer qualquer coisa de louco e heroico / como era a Tuna do Zé Jacinto / tocando a marcha Almadanim!”. E havia ainda Dois poemas de Amor na Hora Triste, de Álvaro Feijó, Chácara das Bruxas Dançando, de Carlos de Oliveira, Elegia ao Companheiro Morto, de Mário Dionísio, Mar Atlântico de Manuel da Fonseca e Prometeu Agrilhoado, de Joaquim Namorado. A voz compassada e firme não podia deixar indiferentes os que a ouviam. Ecoa no nosso ouvido a lembrança da sua voz!
No Teatro Nacional, o seu desempenho continua a destacar-se. Robles Monteiro convida-a para protagonizar Benilde ou a Virgem Mãe de José Régio. E este faz confiança. É um grande sucesso, que entusiasma o próprio Régio. Logo a seguir representa Retablo de Maravillas em comemoração do centenário de Cervantes. No papel de Adela, na peça A Casa de Bernarda Alba de Garcia Lorc,a é aplaudida entusiasticamente pelo público. Norberto Lopes diz: “Dentre a gente nova (…) permitimo-nos destacar o nome de Maria Barroso, que está em plena curva ascensional de uma carreira brilhante, onde pode vir a ocupar um lugar de primeiro plano, se os fados não a desviarem do caminho florido que tem à sua frente”. O final do texto revelar-se-ia profético, por más razões. A polícia política rondava. Infelizmente, com a terceira prisão de Mário Soares, coincidente com a encenação da peça Paulina Vestida de Azul, de Joaquim Paço d’Arcos, vem a terrível decisão. Não poderia continuar a trabalhar no D. Maria II, por uma ordem vinda da polícia e do Ministério da Educação. “Foi um desgosto. Senti que era uma injustiça” – confessa Maria Barroso. Amélia Rey Colaço considera um golpe fatal, que atinge o coração do Teatro. Leonor Xavier sintetiza de modo exemplar uma lição de vida, que corresponde à coragem permanente de alguém que não se deixa abater, seguindo em frente. “Para o cenário de uma vida, há os momentos iluminado de palco, as emoções que se exprimem na força do significado, os silêncios quietos na sombra dos bastidores. Na história de Maria de Jesus, o cenário é arte de amor e de liberdade, de compadecimento e de paz”.
Ao reler Leonor, na biografia de Maria Barroso, senti uma grande gratidão. A admiração que sempre tive por uma cidadã exemplar, por uma mulher de armas, fica como um exemplo que o tempo se encarregará de afirmar e reavivar. Em tudo o que fez deixou uma luminosidade especial, que ainda persiste na herança que nos deixou. O tandem que comecei por referir é uma marca irrepetível da nossa democracia. Tive o raro privilégio de acompanhar essa ligação extraordinária, humana, cívica e política. E não esquecei nunca o dia em que, convidando-a para evocar os Cadernos da Poesia, e sem qualquer preparação, pudemos ouvir a sua voz fantástica a recordar a grande poesia como voz de liberdade. “Porque os outros vão à sombra dos abrigos / E tu vais de mãos dadas com os perigos. / Porque os outros calculam mas tu não” – como disse Sophia. E muito fica por contar.
Guilherme d'Oliveira Martins
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